O conserto do mundo

Moacir Amâncio se debruça sobre a cabala, o tema do duplo sexual e a obra da poeta israelense Yona Wollach
Moacir Amâncio, autor de “Yona e o andrógino”
01/06/2011

O leitor possivelmente já conhece o nome de Moacir Amâncio como um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos, e que teve os seis volumes de sua obra poética reunidos em Ata (Record, 2007). Além disso, Amâncio é estudioso de literatura e cultura hebraicas, tendo vertido para o português trechos do Talmud Babilônico (Iluminuras, 2003), estas compilações e comentários rabínicos que desde a sua origem vêm inspirando toda sorte de meditações, sejam elas existenciais, filosóficas, poéticas ou propriamente religiosas. Haja vista as belas meditações talmúdicas de Levinas. Com seu novo livro, Yona e o andrógino: notas sobre poesia e cabala, Amâncio adentra esse campo tão rico quanto pouco estudado: o das relações entre literatura e religião. E aqui, deve-se deixar claro, a questão não é propriamente um parti pris religioso de qualquer índole, mas sim um alargamento hermenêutico que promove um trânsito da crítica literária à antropologia. Afinal, é a própria constituição simbólica humana que está em questão. Nesse sentido, a obra de Amâncio dialoga com a de Cláudio Willer, Gnose, gnosticismo e poesia moderna (Civilização Brasileira, 2010), à medida que ambos analisam a literatura a partir do que se pode definir como uma antropologia simbólica, buscando conexões entre a história das religiões, a filosofia, a teologia, a psicologia e a estética. Tarefa árdua, mas das mais gratificantes e pioneiras. Espera-se que ambas estimulem mais estudos nesse sentido. Afinal, embora haja há décadas linhas de estudo semelhantes a essa em todo mundo, incluída a chamada escola mítico-ritualística de teoria literária (Ruthven, Frye, Mielietinski, entre tantos outros), abordagens desse tipo ainda são uma completa raridade na teoria da literatura no Brasil.

No caso da poeta israelense Yona Wollach (1944-1985), a análise de Amâncio necessariamente resgata o vínculo com a tradição judaica. E dado o teor de sua poética, seria impossível não o fazer. O leitor logo entenderá o porquê. Porém, ele o faz demonstrando exatamente o diálogo ruidoso que a sua poesia mantém com essa tradição, recriando de maneira surpreendente elementos da cabala, que é a mística ou a gnose do judaísmo. Como demonstrou Gershom Scholem em suas obras decisivas sobre o assunto, grosso modo a cabala nasceu na Espanha, no século 13, com estudiosos rabinos que se propuseram a entender as relações motivadas existentes entre letras e números nas Escrituras Sagradas. Dentre eles se destaca o rabi Moisés de Leon, autor do Livro do Esplendor (Zohar), uma das maiores obras cabalistas. A tradição e a prática cabalísticas são das mais complexas. Vão desde a vertente mais contemplativa (iunit), de base neoplatônica, da qual o maior representante, como destacou Moshe Idel em seus impecáveis estudos, talvez seja Abuláfia (século 13), até a mais prática (maassit), cujo objetivo é conhecer as forças ocultas do poder terreno. Entretanto, alinhando as diversas tendências, um dos eixos unificadores da cabala é o conceito de tikun olam, o conserto do mundo.

Como nos lembra o filósofo Franz Rosenzweig, não há conceito de natureza na Bíblia Hebraica (Antigo Testamento). A língua hebraica carece de uma noção cosmológica, em geral de origem grega, que designe o conjunto da physis. Ao contrário, se o mundo é criado pelo Verbo divino, apenas a atuação infinita da Palavra o sustenta e lhe confere realidade. Talvez por isso, como enfatiza Amâncio, o termo davar, em hebraico, queira dizer tanto palavra quanto coisa. É nesse âmbito da linguagem-mundo e da coisa-palavra que a cabala se move. Reconduzir o sentido literal das letras do texto à sua nascente soprada por Deus nos leva a um processo de recomposição do próprio sentido oculto das coisas cifradas do mundo desde a Origem, ou seja, a uma regeneração da Queda e a uma recuperação da condição adâmica. Texto e mundo se encontram em uma construção contínua de sentido que ultrapassa o escopo instrumental da linguagem e se baseia na crença de que a Palavra seria a realidade última. E, provavelmente, única. Tudo o que existe são palavras-coisas divinas, multifacetadas, caleidoscópicas e infinitas manifestações sopradas e mantidas por Deus. Assim, baseado em Handelman, Amâncio opera aquela necessária distinção, já feita por Leo Strauss e Leon Chestov, entre Atenas e Jerusalém, diferenciando o conceito grego de logos, que está no coração de uma ontologia substancialista, da concepção hebraica, baseada em um “fluxo diferencial infinito”. Eis-nos diante da ruidosa crítica da totalidade perpetrada por Levinas, em benefício do infinito, da repetição que retorna e apenas retorna como movimento diferencial assimétrico, como ritornello, e por isso, infinitamente. Desconstruir o real e a si mesmo até o limite, na interpretação cabalística, é o sentido simbólico que levou Moisés a tirar as sandálias para pisar a terra santa (Êxodos, 3:5). O quarto e último nível da hermenêutica da cabala pode ser entendido como desconstrução. Não por acaso já foram aproximados a teoria de Derrida e a tradição rabínica cabalística. Não por acaso o judaísmo é uma religião fortemente secularizadora. Deus se encontra tão distante da Criação e das criaturas que o negar ou agredi-lo são só formas mais enfáticas de demonstrar sua existência. Como diz Yona: a blasfêmia é uma das maneiras de amor de Deus.

Paradoxos morais
Esses paradoxos morais estão no âmago de sua poética, e são o leitmotiv da análise de Amâncio. Bem como o tema da linguagem edênica, explorado no capítulo “Língua da Criação”, com a análise do belíssimo e sugestivo poema Deixa que as palavras. Já o tema da androgenia é bastante complexo, mas Amâncio não recua diante dele e o explora em minúcias, ao longo de toda obra e especialmente no capítulo “Pássaros, Pássara”. E nesse tema estamos no âmago do cruzamento entre poesia e história das religiões, pois ele guarda diversos correlatos com a literatura. Por isso, não à toa, Mircea Eliade, em seu ensaio clássico sobre o assunto, Mefistófeles e o andrógino, não só relaciona a androgenia ao milenar debate teológico sobre o Mal, como parte de duas cenas literárias para iniciar sua investigação: a demonstração explícita de intimidade de Deus pelo diabo (Mefistófeles), em uma passagem do Fausto de Goethe, e o personagem andrógino que Balzac cria, entre outras obras, na novela Sarrasine. O duplo sexual deita raízes em uma das mais arcaicas representações da díade divina, e no fundo seria a primeira imago Dei que demonstra a unidade de Bem e Mal em Deus. Seu correlato são os irmãos antagônicos, presentes em quase todas as religiões do mundo, e cuja origem monoteísta vem da Mesopotâmia e da mitologia iraniana zoroástrica, com Ormuzd e Ahrimã. A representação da díade macho-fêmea no interior de Deus seria uma forma imagética de figurar a própria ambivalência divina, misto de terrível e fascinante, de tremendum e fascinas, na formulação nuclear de Rudolf Otto. Na obra de Yona, essa unidade de Bem e Mal vem bem tematizada em poemas como Cornélia, cujas diversas camadas de sentido são cuidadosamente analisadas por Amâncio, e no fortíssimo Se queres um lugar ruim.

No caso da poesia de Yona, o conserto do mundo, entendido como regeneração, se dá mediante uma das mais cruas anatomias da sexualidade. Em especial, justamente a partir do tema da androgenia. Para Amâncio, esta encontra sua origem na tradição mítica cabalística da unidade dúplice de Deus antes da Criação. O caminho para essa unidade é Shekinah. Feminino de Deus e ao mesmo tempo a presença materializada de Deus em todas as coisas, Shekinah é para a cabala uma das sefirotes (energias criadoras de Deus), justamente aquela que promove a conexão entre mundano e o divino, até o En Sof, o Inefável. Entretanto, para Yona nada é puro espírito. E a profanação dos códigos é também uma das manifestações de Deus, da mesma forma que a blasfêmia é um modo de adorá-lo. Por isso, em Se queres um lugar ruim, o tema do feminino de Deus nas criaturas é mimetizado como a descida do sangue menstrual e este, por sua vez, transforma-se em metáfora das mortes da guerra. Também é nessa condição limítrofe entre sagrado e profano que Yona assume para si a persona da prostituta sagrada. De dificílima definição para as línguas modernas (etaira, prostituta, cortesã), o termo grego hieródula talvez seja o que melhor descreva essa figura arcaica, cuja origem remonta ao Oriente Médio e à Mesopotâmia, que desempenha um papel fundamental no Gilgamesh, primeira obra literária da humanidade, e também está presente na Bíblia, em figuras como Tamar. Consagrada ao templo, é por meio da relação sexual que ela consuma o ato religioso. Essa paradoxal profanação consagrada é bem típica da poesia de Yona, e o estudo de Amâncio a alinhava exatamente neste meio-fio. Assumindo para si o asco, sendo em si e para si, como queria Bataille, a parte maldita na economia simbólica geral da sociedade, o poeta é aquele que não tem álibis. Aquele que livremente optou por não os ter. Aquele que renunciou livre e premeditadamente a toda imunidade, para falar com Peter Sloterdijk.

Igualmente interessante, nesse sentido, é o diálogo que Yona estabecele com a tradição, não apenas literária, mas também religiosa. Além de poeta maldita, Yona parece aspirar a um posto ainda mais nobre: o de profeta maldita. E Amâncio reconstrói a complexa trama de citações e possibilidades de leituras de seus poemas, por meio das quais a poeta se refere a si mesma como o fim de uma linhagem composta de Esaú, Jesus, Shabtai Tsvi e Jacob Frank. Ora, Esaú, filho de Isaac e Rebeca, irmão gêmeo de Jacó, é visto como um heterodoxo da tradição judaica pois se tornara inimigo do irmão após este lhe ter usurpado a primogenitura. Jesus, por seu turno, do ponto de vista judaico, pode ser entendido como o protótipo do herege judeu, que se ungiu a si mesmo como Messias, como Cristo, a contrapelo do veredicto da tradição. Por seu turno, Scholem dedicou uma monografia exaustiva em três volumes ao estudo da controvertida figura de Shabtai Tzvi (1626-1676), pseudo-messias de Esmirna, paladino de seu profeta Natã de Gaza. Após converter uma multidão de fiéis à crença de que ele seria o Messias e produzido assim um abalo não pequeno no judaísmo, para não ser morto Tzvi foi forçado a converter-se ao islamismo. E assim o fez, em 1666, originando os dönme, grupo de criptojudeus da Turquia cujos membros são publicamente muçulmanos, mas praticam secretamente os ritos judaicos sabatianos. A reviravolta produzida por Tzvi foi tão profunda que seu culto persistiu, seguindo pelo Iêmen e chegando a uma nova formalização, na Polônia, na segunda metade do século 18, pelas mãos de um sucessor de sua mensagem, Jacob Frank (1726-1791).

A escolha dos profetas feita por Yona não é arbitrária. Visa àqueles que, do ponto de vista do judaísmo, seriam, em linhas gerais, falsos profetas. Eis o ponto no qual a inversão paródica e picaresca de Yona encontra o seu nó górdio, o seu coração. E que é analisado por Amâncio em “A inversão da Lei”. Obviamente, distâncias enormes separam Jesus e Esaú de Tzvi e Frank. Porém, a reversibilidade entre veradeiros e falsos profetas, sendo paródica, nem por isso é cômica. O intuito é fazê-los por fim se equivalerem. E em um só golpe Yona produz um duplo efeito. Primeiro, força o judaísmo a um diálogo ainda mais profundo com a longa tradição cristã, levando-o a colocar-se em uma posição que lhe seja quase consubstancial, tal como era nas origens do cristianismo, que afinal nasceu como heresia judaica. Segundo, relativiza a condição profética, equiparando-a à do poeta no mundo moderno. Ou seja, à sua própria posição.

Em virtude disso, a poesia de Yona não se reduz a um mero jogo de cartas poéticas ou de figuras históricas no baralho da linguagem e das religiões. Tampouco a exegese de Amâncio mantém em sigilo seu objetivo oculto. Além da tradução de diversos poemas, sua obra destrincha muitos sentidos subliminares na própria língua hebraica, de modo a ampliar o leque de leituras possíveis. Assim, ao analisar Yona em relação à cabala, e usando aqui uma comparação poética, Amâncio o faz cabalisticamente. Torna-se ele próprio um cabalista da poesia. A produção de sentido de poemas como Yonnatan, eu sou a Virgem Santa e Avshalom, como Amâncio os interpreta com fineza crítica, extrapola o teor estritamente literário e diz respeito ao próprio valor da religião e da poesia no mundo contemporâneo. Dessa maneira, sua poesia, oportunamente, acaba por se revelar como uma inesperada e secular hermenêutica da religião. E, por conseguinte, como uma paradoxal religião da poesia. Ao borrar a dinâmica entre sagrado e profano por meio da secularização das figuras religiosas, é ela mesma, Yona Wollach, que acaba sobressaindo, como dos fundos de uma água-tinta ou de uma gravura em maneira negra, cujos traços do rosto se embaralhassem aos de outros rostos, em palimpsestos. Desse modo, Yona parece encarnar a sentença e o exemplo de Baudelaire: Deus é o único ser que para reinar não precisa existir. Parafraseando Santo Anselmo, Yona deixou as provas ou refutações da existência de Deus aos teólogos e aos políticos. Com sua poesia, ela nos propôs algo muito mais modesto — e bem mais arriscado. À revelia da existência ou não de Deus e de sua improvável demonstrabilidade, exigiu-nos o dever de cumprir o seu Reino.

Yona e o andrógino: notas sobre poesia e cabala
Moacir Amâncio
Nankin/Edusp
160 págs.
Moacir Amâncio
Poeta, professor de literatura hebraica, tradutor e jornalista. Autor de Ata (Record, 2007), que reúne sua produção poética, Dois palhaços e uma alcachofra, estudo sobre o romancista israelense Yoram Kaniuk, e tradutor do Talmud Babilônico (Iluminuras, 2003).
Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho