“Ao fim e ao cabo, ao se lembrar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma”, escreve Jorge Luis Borges no conto O outro, presente em O livro de areia (1975). Nele, Borges é um personagem de sua própria narrativa, o que era comum na literatura borgiana, como podemos observar nos textos O aleph, O zahir e Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, entre outros. No Brasil, a recém-lançada coletânea de contos Sol artificial, do também argentino J. P. Zooey, flerta exatamente com essa mesma característica.
O primeiro dos doze contos começa com o autor encontrando-se consigo mesmo por meio de seus textos escritos no passado: “Compreendi que eu mesmo havia me enviado aquela carta para relembrar algumas coisas que a universidade me faria esquecer”. No entanto, no envelope há também diversas histórias que vão compor os outros contos. Neles, talvez sob influência borgiana, o autor se faz presente como personagem e em muitos dos textos chega a entrevistar os protagonistas.
Um exemplo é O melancólico grito de um giga prestes a cair da cabeça de um alfinete. Durante a suposta entrevista, Zooey procura entender como Diego Grenstein começou a pesquisar a presença de um campo de concentração no interior de um computador e libertou pessoalmente “um bilhão de bytes”. Este não é o único texto em que o autor pressupõe “formas de vida” que se desenvolvem na tecnologia.
No conto A questão Hamlet, um sistema altera, por decisão própria, uma letra na famosa obra de Shakespeare. Portanto, a frase “Ser ou não ser: eis a questão”, se torna “Ser & não ser: eis a questão”. A esse ponto, o entrevistado conclui que a modificação da peça é simultânea à criação de uma linguagem própria e comenta com Zooey: “O senhor pergunta: ‘Mãe? Mamãe, é você?’. E ela responde: ‘Sou & não sou sua mãe, eis a questão!’. E desliga. Não acho que o senhor conseguiria tomar o café da manhã e voltar a dormir”.
Atalhos fantasiosos
É notável que o tema do livro Sol artificial é justamente o da tecnologia, mas, flertando intensamente com a ficção científica, Zooey por vezes pega atalhos e cai também numa veia fantasiosa, quase tocando elementos surreais. Em A questão Hamlet, por exemplo, o sistema adquire um corpo e encarna num queijo informático no formato de um pássaro azul. Zooey, durante a entrevista, pergunta a Nicolás Aspié o que aconteceu com o pássaro, ao que o entrevistado responde: “Eu o comi. Foi isso que aconteceu. jpz: Por quê? na: Não sei. Me deu nos nervos”.
Questões filosóficas também perpassam os contos, se acentuando muito em A pergunta pelo click, em que o narrador reflete sobre essa onomatopeia: “A selva começa a conceder lentamente ao pensador uma resposta verdadeira à pergunta sobre o click. O que é uma resposta verdadeira? Resposta: Click. Mas, o que é o click? Resposta: uma pergunta verdadeira”. Também brincando com esse sentimento fantasioso, Zooey imagina um personagem cujas almas dos filhos são aparentemente ligadas à televisão e, em outro texto, uma mulher que quer morrer no céu e crê que as almas são extraviadas, capturadas por sinais no ar.
O escritor parece ter um grande fascínio pelo aparelho, pois em seu último conto, que também dá nome ao livro, o autor-personagem entrevista Sara Levi, uma sobrevivente de Auschwitz. Nos campos de concentração, Sara tinha de cuidar da televisão em fase de testes do quartel e, talvez por sua experiência traumatizante, acredita que Deus está presente no chuvisco do aparelho. A premissa lembra a primeira frase da obra Neuromancer (1984), de William Gibson: “O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar”.
No livro de Zooey, casos como esses — o do homem cuja crença é a de que a humanidade na verdade foi extinta há algumas décadas e do imigrante do futuro, que teve seus genes debitados por se abster de participar produtivamente da “bionet” — parecem habitar um mesmo universo em que os humanos estariam vivendo dentro de uma grande rede. No livro, as sequências de informações que os entrevistados dão soam como um sonho ou como uma série de conversas feitas dentro de um manicômio. Não à toa, em entrevistas, Zooey afirma ser um “confundista”, alguém que ama a contradição. No entanto, as premissas dos textos são tão fortes que cada uma renderia facilmente um livro inteiro.
Zooey na literatura
O curioso sobre J. P. Zooey é que seu livro Sol artificial foi publicado pela primeira vez em 2009, na Argentina, quando pouco se sabia sobre o autor. Sua identidade real foi revelada apenas após dez anos de anonimato: Juan Pablo Ringelheim. O pseudônimo “Zooey” veio de um dos personagens mais famosos de J. D. Salinger. Tirando a clara referência ao escritor americano, é possível traçar paralelos em relação a outros autores. Em entrevistas, Zooey conta que leu muito Philip K. Dick, o que certamente explica sua preferência pela temática da ficção científica.
Mas talvez o exemplo que mais se aproxime de Zooey esteja na própria América Latina: o escritor brasileiro de pseudônimo Luiz Bras, também associado à ficção científica. Em Symetrias dyssonantes, há o conto Pupilas dilatadas, que imagina um diálogo entre personagens. Parecido com uma entrevista, o texto nos mostra que o personagem desenvolveu um aplicativo capaz de se comunicar na internet como se fosse ele próprio. Assim, poderia se tornar mais popular e economizar tempo. No entanto, o sistema foge de controle e inicia conversas profundas com outros sistemas até criar um vírus que infecta os seres humanos.
Este é, inclusive, outro ponto de intersecção das duas obras para além da ficção científica: a relação de afeto que se estabelece entre homem e máquina. Em Bras, seu personagem cria o aplicativo em busca de afeto. Já em outro conto do livro, humanos não resistem à sedução de máquinas “gozosas”. Por outro lado, Zooey filosofa sobre a questão no conto Histeria e capitalismo afetivo: “O Messenger e o telefone celular são máquinas de conectar correntes afetivas de modo constante (…) A promessa que os contatos estabelecem mutuamente é a de estar sempre disponível um para o outro. On-line para o que for”.
Já no texto Morrer no céu, Matilda Cristófora, personagem inventada por Zooey, afirma que tratamos todos os dias com os mortos sem saber, pois os celulares, antenas e a própria internet seriam as tumbas das almas de nossos entes queridos, o que explicaria o fascínio que temos por essas tecnologias: “Acariciamos constantemente os teclados, passamos os dedos pela tela dos celulares, olhamos para eles com muita frequência”.
Em outro texto do livro de Zooey, o personagem acredita que a próxima espécie depois da humanidade será o “oceano lúdico”. Esse oceano “brincará consigo mesmo”, sem a existência do indivíduo, pois ele será o “resultado da união dos corpos humanos com as tecnologias da informação”. A ideia lembra o livro Solaris (1961), de Stanisław Lem, que retrata a expedição a um planeta distante formado por um oceano senciente e dotado de inteligência.
Assim, Zooey também faz um alerta ao leitor sobre como o mundo de hoje pode estar transformando humanos e máquinas em uma coisa só, tal qual o conto O refrão, em que a “rede” não é mais diferenciada do mundo real:
Bionet não distorce realidade nenhuma, pois Bionet é a realidade. Se o senhor pudesse olhar pelo olho mágico do sistema em busca de algum exterior, encontraria algo muito familiar: o rosto de um homem olhando para você do outro lado pelo mesmo olho mágico, também à procura de um exterior.
No fim das contas, não há pessoa que não se encontre consigo mesma, como Borges intuiu. E talvez a tecnologia permita ainda mais esse tipo de encontro, ao menos na ficção.