O conforto no infortúnio

Publicado originalmente em 1965, "Stoner", de John Williams, esperou quarenta anos para ter o merecido reconhecimento
John Williams, autor de “Stoner”
04/02/2016

Quando foi lançado, em 1965, Stoner, romance do norte-americano John Williams (1922-1994), não teve grande repercussão. Décadas depois, após duas reedições — uma em 2003, na Inglaterra, e outra em 2006, nos Estados Unidos —, a obra começou a ter o reconhecimento que merece. Hoje, Stoner é considerado um grande livro não apenas em língua inglesa, mas também em outros idiomas — já foi traduzido em pelo menos vinte e um países.

Nos diz o parágrafo de abertura do romance:

William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910 com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória. Esse manuscrito ainda pode ser encontrado no “Acervo de Livros Raros”, com a seguinte inscrição: “Doado à Biblioteca da Universidade do Missouri. Em memória de William Stoner, departamento de Inglês, por seus colegas”.

Essas poucas linhas fazem o leitor imaginar que Stoner não deixou marcas por onde passou. Que sua vida não teve relevância, que ele não foi um homem importante a ponto de merecer ter sua vida narrada. Mas, à medida que as páginas avançam, essas suposições vão sendo deixadas de lado.

Assim como a maioria de nós, pobres mortais, Stoner foi importante para algumas poucas pessoas muito próximas. Para seus pais, para sua esposa, para a sua filha, para seus raros amigos, para uma amante e para os também raros desafetos. Para seus alunos, a relevância de Stoner foi tão grande quanto fugaz. Para além de seu universo particular, ele realmente não deixou nenhuma marca. Ao narrar a vida ordinária de William Stoner, John Williams nos faz perceber, de maneira dura e crua, que a vida da maioria de nós é assim, sem qualquer significado maior. Nos faz perceber, também, que podemos viver décadas e décadas e não fazer qualquer diferença para além dos que gravitam ao nosso redor, não importando quais sejam os nossos sonhos, os nossos desejos, os nossos esforços, os nossos sofrimentos.

Passividade e estoicismo
Filho de pequenos fazendeiros, Stoner começou a ajudar os pais desde cedo: “Aos 6 anos, ordenhava vacas magras, alimentava os porcos no chiqueiro a uns poucos metros da casa e coletava os pequenos ovos das galinhas magrelas”. Aos 19 anos, após terminar o ensino médio, foi comunicado pelo pai de que iria cursar Ciências Agrárias na universidade. Ficou sabendo, também, que moraria com um primo da mãe, e que trabalharia para ele e sua esposa em troca de moradia e comida.

Pode-se dizer que seu primeiro ano na universidade foi tranquilo. Stoner trabalhava, frequentava as aulas e, apesar do cansaço, passava nas matérias. Foi no primeiro semestre do segundo ano que algo mudou. Todos os alunos eram obrigados a frequentar o curso semestral de Introdução à Literatura Inglesa, e essa disciplina “o inquietou mais do que qualquer coisa até então”. Tanto que, “no segundo semestre daquele ano, William Stoner parou de cursar as disciplinas de Ciências e interrompeu seus estudos de Ciências Agrárias”, e decidiu se inscrever em matérias ligadas às Ciências Humanas e à Literatura. Isso fez com que ele tomasse “consciência de si mesmo de um jeito que nunca lhe ocorrera antes”.

Essa mudança inesperada, e na verdade nunca desejada, transforma a vida de Stoner completamente. Até então, o plano era cursar Ciências Agrárias e, ao fim de quatro anos, retornar à fazenda dos pais para continuar ajudando-os. Agora, o retorno não é mais uma opção, e esse novo rumo impacta não apenas Stoner, mas também seus pais e tudo o que eles haviam planejado.

Apesar desta demonstração de firmeza, e de mais algumas poucas durante o livro, Stoner é essencialmente estoico — na acepção de “conforto no infortúnio” que consta no Aurélio —, e não se permite abalar por nenhuma adversidade. Ou melhor: não consegue se abalar. Ele não consegue se insurgir contra (quase) nada. Aceita (quase) tudo passivamente, desde a frieza e a ira de sua esposa até as imposições feitas pela direção do seu departamento na universidade em relação às matérias que irá lecionar — em horários nada amigáveis.

Ao narrar a vida ordinária de William Stoner, John Williams nos faz perceber, de maneira dura e crua, que a vida da maioria de nós é assim, sem qualquer significado maior.

Avançar sempre
Assim como a vida de Stoner, é simples a prosa de Williams. É um romance tradicional, sem inovações estéticas ou estilísticas, uma obra límpida e sem sobressaltos, quase como a vida do protagonista. Devido ao tradicionalismo do autor e a falta de maiores reviravoltas no enredo, Stoner pode dar a impressão de que é um romance monocórdico, o que pode levar o leitor a imaginar, inicialmente, que sua leitura será um estorvo. Porém, graças à extrema habilidade narrativa de John Williams, o leitor é inevitavelmente impelido a avançar cada vez mais, e os poucos lampejos de vontade própria a que Stoner se dá o direito são comemorados como grandes reviravoltas — e de certa forma o são.

Algumas passagens são memoráveis, como o momento em que Stoner se dá conta de que não é capaz de demonstrar, a seus alunos, toda a empolgação que guarda dentro de si pela literatura, ou a conversa brutalmente sincera que tem com seus dois amigos, Gordon Finch e David Masters, pouco antes de ambos se alistarem para lutar na Primeira Guerra Mundial, ou quando ele finalmente desafia o seu maior desafeto, Hollis Lomax.

De uma maneira muito peculiar, Stoner é um livro assombroso, forte, mas também delicado, preciso. A emoção e o ímpeto reprimidos pelo protagonista são angustiantes. Curiosamente, essa angústia sentida pelo leitor é amenizada pela serenidade com que Williams conduz sua obra. Somente grandes escritores conseguem escrever dessa forma.

Após uma primeira edição repleta de erros de revisão, a editora Rádio Londres lançou uma segunda, corrigida, que traz um posfácio do também escritor norte-americano Peter Cameron. Nele, Cameron afirma que, mesmo tendo lido Stoner três vezes, não está “absolutamente certo de haver compreendido o livro de verdade”.

E parece ser mesmo esse o caso. Stoner é o tipo de obra que não se encerra numa primeira leitura. Tampouco é o tipo de livro que é esquecido após lida a última página. Ele ressoa não apenas na mente do leitor, mas também em seu coração. Impossível não se perguntar: “sou um Stoner?”, e, em seguida, decidir: “não serei um Stoner”. No entanto, é quase impossível não se afeiçoar ao protagonista.

Stoner é uma obra inquietante, transformadora, inspiradora. A literatura não é nem precisa ser sempre assim, é verdade. Mas, sem livros como esse, ela não seria fundamental para alguns de nós. E, de fato, livros como Stoner nos faz pensar que a literatura deveria ser fundamental para todos nós.

Stoner
John Williams
Trad.: Marcos Maffei
Rádio Londres
316 págs.
John Williams
Nasceu em 1922, em Clarksville, um povoado no interior do Texas. Serviu na aviação militar americana durante a Segunda Guerra Mundial, na China, na Birmânia e na Índia. Recebeu o bacharelado em Literatura Inglesa na Universidade de Denver e o doutorado na Universidade do Missouri, em 1954. Voltou para Denver no mesmo ano, onde trabalhou como professor assistente de Literatura Inglesa até sua aposentadoria, em 1985. Faleceu em 1994. Além de Stoner, é autor de mais três romances: Nothing but the night, Butcher’s Crossing (a ser publicado pela Rádio Londres) e Augustus.
Rafael Rodrigues

É escritor, revisor e resenhista. Autor do livro O escritor premiado e outros contos e integra a antologia O livro branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles. Mantém o blog Paliativos (www.paliativos.com.br) e escreve para o Huffington Post Brasil.

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