A leitura da Antologia poética de Carlos Nejar (Cascais, Portugal, Pergaminho, 2003), prefaciada e organizada por António Osório, traz par o leitor brasileiro um olhar dissociado do horizonte de expectativas já consolidado acerca do poeta gaúcho. Assim, os comentários e a seleção do poeta português nos oferece certa margem de estranhamento inexistente para o público de nosso país. É que se nos oferece a cosmovisão do “outro”, ao acercar-se de uma coletânea de poemas, digamos, “nossos”. De um poeta que já nos deu 25 títulos, entre poesia e prosa, embora, no seu caso, seja difícil saborear a prosa sem os goles de poesia.
Convém notar que Carlos Nejar nos oferece, nos volumes A idade da aurora e A idade da noite a totalidade de sua poesia até então publicada, ou seja, 21 títulos.
Há muitas formas de ler a Antologia poética, pois ora se assemelha a um poliedro, tal a variedade temática, ora se parece com um palimpsesto, no qual se gravam camadas sucessivas de emoções.
Em nova aventura de leitor, propusemo-nos a percorrer o conjunto com duas traças lúcidas que atravessassem os poemas em direções contrárias: uma, do início para o fim; outra, do fim para o início.
Duas trajetórias de apreensão da linguagem afetiva, extremamente densa do poeta. No fundo, o mesmo espanto traduzido em segmentos confessionais. No começo, um desvendamento de partes íntimas, ensombrecidas, do espírito. No fim, mergulho traumático nas reminiscências, canto nostálgico.
De Sélesis (1960) o selecionador destacou o poema iniciático Lunalva. O poeta já está maduro no seu modo aforismático de conduzir a indagação poética. Cláusulas dobitativas e negações compendiam-se para tecer o discurso lírico. Versos curtos, de sentido cortante, se aglutinam para verter o lado dramático, entre místico e catastrófico, do poeta:
O pão que trago comigo
— Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
— Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
— Todos hão-de beber
Do Fogo e do Sangue.
O passo seguinte do leitor foi conferir o derradeiro poema da escolha de António Osório. Lá está, entre os inéditos, a composição Luiz Vaz de Camões. Trata-se de outra linha temática de Carlos Nejar, a das celebrações. Engana-se quem veja nos poemas dedicados mera citação dos suportes da grande literatura. Escapam do tom encomiástico e impessoal do Árcades, ou da adulação frondosa dos Barrocos. É que o poeta faz da celebração um roteiro da subjetividade. Um extroversão de valores adormecidos, motivados pela presença altaneira do inspirador.
Quem já leu com atenção o poema Eu, Dante Alighiere, de Os viventes (1979), haverá de entender o “eu poético” que governa o peoma Luiz Vaz de Camões. Um tributo pontilhado de conotações pessoais. Uma avaliação que passa pela sensibilidade. Enfileiremos alguns trechos:
(…) Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos.
(…) E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo Sol de um país
que me desterra.
(…) Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.
Ainda ficaria para analisar o resíduo dos pagos gauchescos na memória afetiva do poeta, ventos e cavalos da paisagem sulista, a herança cultural dos gazéis e a fonte mística, tantas vezes visitada. Na poesia de Carlos Nejar a busca do ser se confunde com a procura das raízes. Os poemas se realizam na medida certa: ritmos e sons ajustados à expressão de forte conteúdo lírico.