O tema identidade nacional é freqüentemente tratado por acadêmicos, professores e até mesmo por alguns escritores. Recentemente, a propósito, a ensaísta Leyla Perrone-Moises publicou pela Companhia das Letras o livro Vira e mexe nacionalismo em que analisa, entre outras questões, a identidade nacional nos escritores latino-americanos, dentre os quais se podem destacar Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Antes de Perrone-Moises, no entanto, outros autores brasileiros também investigaram a relação entre identidade nacional e literatura. Antonio Candido, por exemplo, trata dessa relação em Formação da literatura brasileira. Machado de Assis, por sua vez, critica o recalque dos escritores brasileiros no texto Instinto de nacionalidade, talvez um dos ensaios mais primorosos do Bruxo do Cosme Velho. Além desses, há Coelho Neto. Nunca ouviu falar? Duvido. Se você lê este Rascunho, em algum momento você provavelmente já passou os olhos por algum texto (teórico que seja) ou comentário sobre este escritor. Ainda assim, é também bastante provável que você simplesmente tenha esquecido dele. Afinal, ele é mais um escritor que foi tragado pelas vanguardas literárias e estéticas do século 20, mais precisamente pelo modernismo. Por tudo isso, Às quintas, livro que a Martins Fontes acaba de publicar, é uma espécie de relicário, com as crônicas de um autor cuja forma e conteúdo não poderiam ser mais fora de moda atualmente. Veja, abaixo, por quê.
À primeira vista, Henrique Maximiano Coelho Neto (1864-1934), nascido no Maranhão, deveria ser um escritor absolutamente comentado. Motivo simples e elementar: sua obra é vasta. De acordo com a introdução assinada por Marcos Antonio de Moraes, Coelho Neto publicou cerca de 120 livros. 120. Em uma época, pensem vocês, leitores, em que não havia essas tecnologias facilitadoras de publicação: computador, internet e um mercado ávido por conquistar consumidores a qualquer custo. Nada disso. À época, escrever, mesmo que fossem crônicas para um jornal, tinha um caráter de grande deferência, para o bem e para o mal. Nesse aspecto, e até mesmo porque não cumpre a esta resenha comparar o mercado editorial e a literatura ontem e hoje, chama a atenção o fato de Coelho Neto ter publicado tanto e ao mesmo tempo permanecer, como está hoje, esquecido pelas inúmeras gerações de leitores. Nas palavras de Antonio de Moraes: “aquilo que parecia um sólido cabedal artístico para o futuro das letras nacionais transformou-se, depois de sua morte, em seara inóspita e pouco visitada por leitores e críticos”. Há de ter um motivo. Na verdade, são dois motivos, explicados nos dois parágrafos a seguir.
Combate
No que se refere à temática, é bom dizer que Coelho Neto foi um escritor cuja literatura, se assim é possível afirmar, foi de combate. Em outras palavras, é como se a pena do cronista fosse, também, uma espécie de espada, daquelas que estão sempre prontas para o combate. E para combater o bom combate o escritor tinha de eleger suas potestades. Quem elas eram? Ora, pelo que se lê em Às quintas tais inimigos eram aqueles que, por exemplo, eram contrários ao seu projeto literário. Não que Coelho Neto fosse uma espécie de, sei lá, blogueiro ou escritor enfurecido por uma crítica publicada. Nisso, ele era mais elegante. Mas o escritor abordava seus temas com tamanha intensidade que essa, a de que ele seja uma espécie de publicista literário/cultural, se torna uma leitura bastante possível. Assim acontece quando ele escreve sobre o já citado Machado de Assis:
“Herói do Povo, saído da humildade anônima, cresceu lentamente vencendo a penúria, o preconceito e até a enfermidade, impondo-se a todos como o maior do seu tempo e o mais admirável”. Observa-se, aqui, que o autor se derrama ao falar de Machado de Assis. Mais do que isso: esse “derramamento” não é de modo algum retraído, como se o autor tivesse vergonha dessa homenagem. Muito ao contrário. Coelho Neto fala com propriedade dos temas que mais lhe interessam sem buscar distanciamento que alguns críticos culturais, hoje, querem buscar.
Já no tocante ao estilo, em Às quintas o que se lê é a prosa de um autor absolutamente preocupado com a forma de seus textos. Estes, aliás, contam com uma elaboração bastante articulada, coerente e principalmente literária. Aqui, por mais óbvio que possa parecer, cumpre o esclarecimento. Mesmo hoje em dia, os cronistas que são escritores, talvez pela prática constante do ofício, são bastante diretos em seus artigos. É a idéia do tópico frasal que, logo nas primeiras linhas, já denuncia qual será o assunto do dia. À sua maneira, Coelho Neto também faz isso, mas, caso publicasse hoje, seriam muitas as vezes em que seu texto seria “editado” ou “copidescado” pelos frenéticos redatores dos jornais, revistas e websites. O motivo também é de fácil entendimento: Coelho Neto não permanece dentro das camisas-de-força do texto jornalístico ou até mesmo da crônica de imprensa. Antes, prefere uma verve mais subjetiva, com um texto que emana literatura por todos os poros, pontos, vírgulas, espaços e itálicos. Mais uma vez, tome-se o início daquela crônica sobre Machado de Assis: “A prova absoluta de que a alma existe e é eterna e infinita é a capacidade com que ela tudo abrange no espaço e no tempo, contendo e conservando em si quanto apreenda”. Outro escritor talvez — sim, talvez — simplesmente cortaria esse trecho. Seria objetivo. Direto.
Não é o caso, afinal, de Coelho Neto, que, por sua forma e por seus temas, deveria ser uma espécie de escritor sempre citado. Entretanto, como está para trás do movimento modernista, foi praticamente deixado de lado pela crítica literária do século passado que enxerga no modernismo o verdadeiro modelo estético e artístico para a produção cultural a partir da Semana de Arte Moderna de 22. Cumpre ressaltar: ele não chegou a escrever um artigo denúncia, algo do gênero Paranóia ou mistificação, como fez Monteiro Lobato. No entanto, suas divergências eram claras, como escreve Marcos Antonio de Moraes: “No processo de sedimentação da vanguarda literária brasileira, a figura de Coelho Neto passou a simbolizar todo um período beletrístico e vazio que sucedera a Machado de Assis”. Talvez por isso, Coelho Neto nem tenha sido citado pelos modernistas por ocasião da Semana de Arte Moderna e até mesmo chegou a ser criticado por alguns dos modernistas.
Nada disso, no entanto, justifica o quase esquecimento de Coelho Neto. É certo que sua obra não está no chamado cânone da literatura brasileira. É certo, também, que muitos outros escreveram, se não mais, precisamente melhor do que o autor de Às quintas. Ainda assim, é necessário contextualizar a importância do escritor para o entendimento da atividade literária e mesmo das idéias no Brasil. Só assim será possível compreender e aceitar a história intelectual do País. Só assim a literatura brasileira poderá ser interpretada por seus atores fundamentais. Afinal, se a questão da identidade nacional ainda gera debate, por que não voltar aos autores que originalmente trataram do tema? É uma resposta a ser procurada.