Escrito como radiografia da alma espanhola do começo do século 20, dividida por tantas lutas internas, que a levaria à Guerra Civil, Abel Sánchez: uma história de paixão, do escritor basco Miguel de Unamuno, é um dos livros essenciais para se compreender o mais universal dos pecados capitais, que todos nós praticamos em maior ou menor escala, com fins justificáveis ou nem tantos — a inveja. Na história política da Espanha daquele tempo, e mesmo na atual, a luta entre irmãos que marca o país se encaixava muito bem dentro da fábula bíblica de Caim e Abel, matriz da narrativa de Unamuno. No texto religioso, há uma valorização da vítima e uma demonização do assassino, pois esta chave analítica facilita a simplificação indispensável para fins de catequese. Tendemos a ver Abel como mártir da inocência, identificando-nos com ele, e projetando em Caim todos os desagradáveis sentimentos de ódio e cobiça que estão sempre no outro.
Esta divisão é questionada por Unamuno, autor e figura pública que sofreu todo o tipo de represália política e de julgamento por seus contemporâneos, como é narrado no prefácio de Luís Carlos Cabral e Eric Nepomuceno, tradutores da obra publicada originalmente em 1917. Dizem eles: “Miguel de Unamuno escreveu Abel Sánchez, considerada a mais amarga e perturbadora de suas novelas, em uma de suas piores épocas de sua vida […]. Ele costumava dizer que ‘toda novela, toda obra de ficção, todo poema, quando é vivo, é autobiográfico’” (p. 14) — a palavra novela aqui aparece na acepção da língua de origem, devendo ser traduzida para romance.
Romance profundamente enraizado nas vivências do autor e, por isso, de grande vivacidade, Abel Sánchez foi escrito na linguagem da reflexão, do dilema e não faz concessões ao detalhe realista. Os diálogos são abundantes, numa linhagem moderna (epigramática) do estilo socrático, em que os personagens não gastam palavras para falar do desnecessário, tudo reduzido ao debate de idéias, a vida cotidiana figurando como distante pano de fundo. O romance ganha assim agilidade e nos coloca diante de um confronto de dois personagens-símbolo: Joaquín (Caim) e Abel, o médico antipático e o artista cativante. O enredo, num romance de idéias como este, pode ser facilmente resumido. Joaquín desde criança tem inveja de seu amigo Abel, que sempre faz sucesso com mulheres e amigos, casando-se com a esnobe Helena, prima de Joaquín, que se apaixonara por ela. Resta ao médico a carreira profissional bem paga, mas sem brilho, enquanto o outro é festejado como grande pintor contemporâneo, com direito a uma vida glamourosa em que não faltam aventuras galantes com outras modelos e um descaso pelos semelhantes menos favorecidos. Enquanto Abel vive com Helena uma união hipócrita, Joaquín, que se casa sem amor com Antonia, religiosa que se empenha em curá-lo de seus males de alma, desenvolve uma percepção impiedosa de si mesmo e de seus semelhantes. Sofre e analisa sua inveja brutal pelo sucesso do amigo, sabendo das próprias qualidades artísticas — pois se vê destinado à ciência pura e escreve relatos literários —, mas sem força para enfrentar o opositor, que vai vivendo como homem bom e benquisto, modelo de uma sociedade que premia os que se relacionam superficialmente, mostrando-se sempre agradáveis e prestativos.
O romance é construído sobre um conceito cíclico da história. Assim como os dois amigos atualizam o episódio do crime original, os filhos deles repetem os nomes familiares. O filho de Abel carregará seu próprio nome — Abelito. A filha de Joaquín, chamar-se-á Joaquina. Mas haverá uma estratégica inversão de papéis. Abelito forma-se médico e se torna discípulo do amigo de seu pai, reconhecendo nele os dons para a ciência pura, desperdiçados no atendimento a clientes. Ele acaba se casando com a filha do médico, tomando o partido deste na luta interior que ele mantém com Abel. Abelito escancara o egoísmo assustador do pai, que valoriza em primeiro lugar a sua arte, desmontando a imagem de pureza e de espontaneidade do pintor, que fazia tudo pela glória, mesmo sem demonstrar isso. O romance acabará com a morte do artista e com o nascimento do neto dos contendores, que receberá também o nome de Abel.
Se há repetição, há também movimentos de desvio. Embora narrado em terceira pessoa, o romance incorpora trechos dos diários de Joaquín, simbolicamente intitulado Confissões, revelando uma adesão do narrador ao ponto de vista do médico. Desde o início, Joaquín assume a condição trágica de sua inveja, confessando-a a seu amigo, às duas mulheres e depois, de forma mais branda, à filha (a quem se dirige em suas memórias, que serão lidas postumamente) e ao genro. Ele não escamoteia o sentimento que o move e se sente incapaz de vencer esta doença de alma que nada cura, nem a religião, nem o amor familiar, nem a medicina e nem a respeitabilidade social. É o exercício desta consciência que o humaniza e o torna um herói mesmo sem conseguir vencer seu grande inimigo, que mora nele mesmo. A heroicização se dá pela sinceridade absoluta, o que faz desta versão de Caim um ser humano mais defensável do que Abel, vítima que se esconde sob uma identidade falsa. É neste sentido, que Miguel de Unamuno tira deste personagem a carga negativa que a história lhe colocou, afirmando, na nota à segunda edição (1928), que “Caim não é mau; os maus são os cainistas e abelistas” (p. 22), ou seja, aqueles que dão continuidade cega a tais sentimentos, sem viver seu calvário.
Pela vida angustiada, Joaquín afasta-se da maldade, ocupando o lugar de vítima que sempre coube a Abel. Nesta gula pela glória, Abel se vale das pessoas apenas como modelos, ignorando-as como seres humanos, não sente nenhum remorso em ser o favorito, mesmo sabendo da tristeza que esta sua postura gera naqueles que são destinados ao inferno do sofrimento e da obscuridade social. Já o outro renuncia à glória desejada por ser um doente, preferindo viver toda a culpa como mártir da própria incapacidade para curar os outros ou curar-se.
Sobre estas trajetórias invertidas Unamuno vai edificar um amargurado retrato da humanidade, desvendando o código secreto dos invejosos. Um dos trechos de suas confissões revela a força da consciência clara: “não busquei a verdade e o saber; procurei, sim, os prêmios e a fama; procurei ser mais do que ele” (p. 89). Ao afundar seu bisturi na própria psicologia, Joaquín estava desvendando a matriz da vida civil, vendo a cidade e os países como instituições nascidas da inveja. Ele se torna assim a própria cobaia desta descoberta científica que será seu grande legado como médico, verdade vivida que ele expõe com crueldade.
Ao explicar o pouco sucesso do romance, Unamuno lembra, na nota à segunda edição, que “o público não gosta que se leve um bisturi a abismos hediondos da alma humana e se faça jorrar o pus” (p. 19). Com esta atitude de autoconhecimento, ele se rebela contra os rameiros, os invejosos que obrigam todos a um mesmo comportamento, recusando os que não se enquadram. Joaquín, ao afirmar-se monstro moral, desmascara a sociedade construída sobre a leviandade dos abelistas e sustentada por mecanismos de elogios e pretensas abnegações.
Grande predestinado, ele leva às últimas conseqüências sua sina, participando da morte do amigo Abel, diante dos olhos inocentes do neto. Os avós lutavam, na última fase da vida, pela cooptação do Abel neto, inclinado mais às artimanhas sedutoras do pintor, que o buscava como forma de prêmio compensatório, pois tinha perdido o filho ao amigo. Depois da morte do amigo, e quando está também para morrer, o velho médico abre sua alma pútrida à família, pedindo perdão para o neto que o viu participar da morte do outro avô. O final apresenta alguma possibilidade de redenção na confissão pública, que romperia com a cadeia secular que vem gerando cainistas e abelistas.
Romance central da cultura do Ocidente, Abel Sánchez antecipa muitas questões que marcarão a literatura existencialista. Podemos ler, neste tormentoso revolver nas próprias misérias que é a trajetória de Joaquín, a fonte da consciência insone dos personagens de Entre quatro paredes, peça de Sartre encenada em 1944, onde aparece sua mais famosa afirmação: “o Inferno são os outros”. Este inferno sartreano está previsto por um personagem secundário de Unamuno, o mendigo aragonês, que fala de seu tormento íntimo: “O medo de que minhas recordações e minha história me acompanhem além da morte” (p. 168). É este o motor da peça de Sartre, que também verá na confissão dos crimes íntimos uma possibilidade de cura da humanidade. Uma possibilidade cada vez mais remota nestes nossos tempos de invejas travestidas e vaidades midiáticas.