O circo do presente

No romance "História de Joia", Guilherme Gontijo Flores se vale da distopia para refletir sobre a desigualdade social
Guilherme Gontijo Flores, autor de “História de Joia”
30/03/2020

A roda da literatura gira sobre o próprio eixo, e não espanta a volta de estéticas já fartamente manipuladas por autores do passado. Com o mundo envolto em conflitos insanos e, parece, infindáveis, a distopia ressurge como ponto de apoio às reflexões políticas e sociais literárias. Essa estética é corrente, vem do início do século 20 e domou, com seu discurso tecnológico, a ficção científica, gerando clássicos como Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley. Mas foi na análise política que ganhou status proféticos. A Segunda Grande Guerra não conseguiu vencer o mal do totalitarismo e George Orwell enxergou dias terríveis no então longínquo ano de 1984.

Aqui, ao Sul do Equador, a distopia surge nos primórdios do século 20 e também tem seu clássico — O presidente negro, de Monteiro Lobato, escrito em 1926 por um autor assustado diante do avanço das corporações norte-americanas —, ganha força durante a ditadura militar na esteira de Zero (1974), de Ignácio de Loyola Brandão, e hoje, não por acaso, recebe sangue novo com textos como Felicidade (2017), de Wellington de Melo, e Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018), romance mais recente de Ignácio.

No romance História de Joia, Guilherme Gontijo Flores se vale da distopia para refletir sobre a desigualdade social no mundo presente. O cenário, mesmo não explícito, é o universo das periferias das grandes cidades, um espaço carregado de preconceitos, medos e violências, onde a utopia é sepultada prematuramente. Quando a protagonista ousa sonhar, tudo se perde na largada, no inatingível: “tchau sonzeira, o moço nem aí, lá vem o sacolejo, perna do papai, tchau buzanfa, olha o sol lá no alto”.

O desenho que se faz é de um cotidiano de opressão. Mesmo fora do espaço periférico, os personagens estão presos à desilusão social. E aí se constrói um terrível diálogo entre as várias vozes de uma comunidade repartida em guetos, criando uma capa de igualdade entre todos os personagens. Esta capa, no entanto, está manchada por uma cultura de crueldade e envolve todos. O rapaz de classe média, esclarecido, que frequenta o café tem a alma preconcebida pelo sentimento geral: “essa macaca ao teu lado é uma mina mais forte que o Banco do Brasil, eu manjo ao longe esse tiziu, dizia o Padilha do Moreira, bom, no tempo em que dava pra dizer isso, certo, no tempo em que nosso escravismo ainda não era tão acachapado, quando não tinha o imperativo, ousarei dizer categórico?, de nos dobrar ao politicamente correto”. É a mesma alma misógina do moço que canta rap: “não pense que hoje vou fugir pra toca. Se toca, dondoca: porque essa tua cuca oca só fala sempre a mesma merda”.

Várias vozes
Como dá para perceber, o romance se constrói com várias vozes: Joia ainda criança, um cliente do café onde trabalha, a gente da periferia, o dono de um botequim e até um autor onisciente. São vozes que surgem de acordo com a necessidade da narrativa, o que a deixa dinâmica e ativa uma curiosa visão confluente sobre o ambiente, o cenário onde tudo decorre. Enfim, não importa quem fala, o fundamental é a fala uníssona, pasteurizada, quase, a unificar o sentimental dos narradores.

Este diálogo, no entanto, tem suas armadilhas. Não se discute a capacidade do autor e sua trajetória polifônica, mas a verdade destas falas. A linguagem formal é trabalhada com autenticidade, o que lhe garante força e verdade, já a linguagem coloquial com que Guilherme modula o discurso da periferia perde veracidade e se aproxima do pastiche. “Longa paisagem de tédio e labor intenso. Um deserto por fora se espraia por tudo. Claro. Denso. No corpo se inscreve. Cansaço.” “A Joia tá torta mesmo, olha lá, repara no desconjuntamento, qual é mesmo o trampo dela? Mina, como é que tu vai ter a menor ideia se só falou com ela, tipo, umas duas vezes na vida, pior, (…)?”

Romance fragmentado em essência, onde os capítulos surgem quase como contos, e também breve, oferece leitura leve, apesar da intensa carga dramática que traz. A história de Joia não é nenhum mar de rosa, para usar um chavão digno de um sonetista. Também não é ela nenhuma heroica donzela guerreira, uma sobrevivente que resiste ao mundo cruel e desumano. Joia é uma mulher comum. Trabalha, pouco reage às opressões, participa de cultos religiosos, mantém relacionamentos, toca a existência que lhe cabe. Uma anti-heroína, talvez uma irmã da Macabéa de Clarice.

Aliás, a fatalidade é uma presença fundamental no livro. Praticamente todos os capítulos são nomeados pelas cartas do tarô. Creio que não há necessidade de consultar o jogo para encontrar correlações entre ele e a narrativa (não tive tal trabalho). O capítulo intitulado O eremita, por exemplo, que no tarô certamente remete à solidão, ao isolamento, conta de um banho levemente erótico de uma mulher, Joia, que sonha, o que não fica claro, com a presença de um homem. É uma alegoria à sensualidade da vida, mas tem sua fatalidade ao se encaminhar para o desejo irrealizado. O certo, me parece, é que o tarô surge como apoio à discussão tão em voga de todo misticismo que nos envolve. Mesmo os descrentes, hoje, estão sujeitos às condicionantes dos mitos esotéricos e da imposição da verdade religiosa.

Enfim, a História de Joia se apresenta como a história da atualidade — de uma sociedade distópica, apartada, sem grandes esperanças, onde caminha uma população quase apática que, desejando o pão e o futuro, se contenta com o circo e o presente.

Um livro que reflete sobre nosso cotidiano.

História de Joia
Guilherme Gontijo Flores
Todavia
88 págs.
Guilherme Gontijo Flores
Nasceu em Brasília (DF), em 1984. Poeta, tradutor e ensaísta, recebeu os prêmios APCA e Jabuti por sua tradução de A anatomia da melancolia, de Robert Burton. É autor, entre outros, de Brasa enganosa (2013) e Carvão :: Capim (2018). do seu de gente cheiro.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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