O jogo da amarelinha (no original Rayuela) é a obra-prima de Julio Cortázar. O romance publicado em 1963 inscreveu o também ensaísta, poeta, cronista, contista e dramaturgo na tradição literária que refletiu esteticamente os limites, caminhos e descaminhos da forma romance. Sobretudo, a partir de um debate com a tradição do romance moderno de expressão francesa, representada por escritores como Gustave Flaubert e seu trabalho em lapidar a “palavra justa”, Marcel Proust e a preparação do romance, André Gide e a reflexão abismal sobre a escritura (em obras como Os moedeiros falsos), Raymond Roussel e a invenção linguística como motricidade de encenações extraordinárias, André Breton e a invenção da prosa poética surrealista, Raymond Queneau e seus exercícios de estilo, Georges Bataille e o simbólico do erotismo transgressor, Jean Paul Sartre e a singular construção da personagem “em situação” no romance de matriz existencialista, dentre outros casos igualmente expressivos. Está em jogo para esta heterogênea (se assim podemos considerar tais escrituras postas em disputa) linhagem de romancistas modernos a exploração do mais significativo da existência humana em tempos de ruínas, o desvendamento de experiências limites como a paixão, o sexo e a morte, a investigação do circunstancial elevado muitas vezes à condição de necessário, assim como, a possibilidade mesma de se contar uma história, os modos de se lidar com os desgastes do material artístico legado pela tradição, a aposta no significante como elemento de significação, a invenção literária no limiar entre o investimento nas potências simbólicas da imaginação ficcional e o experimento vanguardista de dissolução da autonomia da obra, por vezes, através de uma forma que marque a ruptura com categorias basilares do romance, como o tempo narrativo, o espaço diegético, o gênero, a personagem ou mesmo o foco narrativo. De uma forma ou de outra, mesmo nos trabalhos de cunho mais formalista, a realização do ideal moderno de reconciliação entre arte e vida permanece como horizonte de expectativa — mesmo que ao final e ao cabo haja a conformação com sua impossibilidade. No pós-guerra, Cortázar irá se reapropriar destas questões através de um diálogo com a plêiade de escritores franceses assinalados, ao passo que seu romance irá absorver, redimensionar, refratar, e, de certo modo, responder à série de problemas esboçados nesta formação histórica particular da modernidade literária.
O jogo da amarelinha se inicia com uma peculiar advertência:
À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades:
O primeiro livro pode ser lido na forma corrente e termina no capítulo 56, ao término do qual aparecem três vistosas estrelinhas que equivalem à palavra “Fim”. Assim, o leitor prescindirá sem remorsos do que virá depois. O segundo livro pode ser lido começando pelo capítulo 73 e continua, depois, de acordo com a ordem indicada no final de cada capítulo.
Diante de um roteiro de leitura semelhante aquele de Raymond Roussel em Impressions d’Afrique (1910), a ilusão ficcional é prontamente problematizada, visto que a própria organização do livro se alça a condição de tema. Recupera-se para a memória do leitor que este se encontra diante de um “constructo”, um livro com múltiplas entradas e possibilidades de leituras, justamente pelo fato de se tratar de uma “obra” formalmente configurada. O “efeito de real” abordado por Roland Barthes passa a ser deslocado, não estritamente em proveito de um desmascaramento da ilusão romanesca, mas em nome de uma experiência mágica simbolizada pelo encontro estético/amoroso na capital francesa. Ilusão positiva que não só atinge um estatuto de verdade mais amplo que o verossímil da representação dita realista, mas que acaba por se impor de modo mais contundente do que qualquer crítica ao falseamento ideológico da última. Assim, o leitor que opta pela leitura corrente se defronta com a trama articulada a partir dos encontros e desencontros amorosos de Horácio Oliveira, argentino que vai a Paris por conta de estudos e Maga, uma uruguaia que viaja para Cidade Luz junto ao pequeno filho Rocamadour com o intuito de uma nova oportunidade de vida, talvez uma carreira de cantora nos cafés e teatros da cidade. Distraída e intuitiva como a Nadja de Breton, Maga simboliza algo como a poeticidade ingênua perdida aos olhos dos demais membros do Clube da Serpente (confraria de artistas e amantes das artes que se frequentam ao longo do romance, incluindo Oliveira e Maga). Acompanham-se então até o capítulo 56 as reflexões e impressões poéticas de Oliveira a respeito de Maga, do Clube da Serpente, de Paris, das artes e da vida. O foco narrativo em primeira pessoa por vezes oscila em direção a uma terceira pessoa que pode, a princípio, se confundir com uma espécie de perspectiva objetivada de Oliveira, de uma personagem testemunha ou mesmo do autor. Em todos os casos, se constrói em meio às digressões poéticas o enredo de um triângulo amoroso cercado por uma série de outros acontecimentos paralelamente significativos. Em outra direção, começando pelo capítulo 73 conforme a orientação de Cortázar, fragmentos do cotidiano das personagens assinaladas elevam-se à condição de alegorias, sequenciados por capítulos articulados em torno de reflexões acerca da literatura e das artes, do romance contemporâneo, citações de escritores fundadores da discursividade literária moderna, ensaios sobre personagens, cenas desconexas condensadas de sentido, etc. Aqueles capítulos que Cortázar denominou como “prescindíveis” são inclusos nas variações do jogo narrativo. O encadeamento dos capítulos faz com que o leitor salte de uma ilha do tesouro à outra, em alguns momentos, retrocedendo como em um jogo de amarelinha:
73 – 1 – 2 – 116 – 3 – 84 – 4 – 71 – 5 – 81 – 74 – 6 – 7 – 8 – 93 -68 – 9 – 104 – 10 – 65 – 11 -136 – 12 – 106 – 13 – 115 – 14 – 114 -117 – 15 – 120 – 16 – 137 – 17 – 97 – 18 – 153 – 19 – 90 – 20 – 126 -21 – 79 – 22 – 62 – 23 – 124 – 128 – 24 – 134 – 25 – 141 – 60 – 26 -109 – 27 – 28 – 130 – 151 – 152 – 143 – 100 – 76 – 101 – 144 – 92 -103 – 108 – 64 – 155 – 123 – 145 – 122 – 112 – 154 – 85 – 150 -95 – 146 – 29 – 107 – 113 – 30 – 57 – 70 – 147 – 31 – 32 – 132 -61 – 33 – 67 – 83 – 142 – 34 – 87 – 105 – 96 – 94 – 91 – 82 – 99 -35 – 121 – 36 – 37 – 98 – 38 – 39 – 86 – 78 – 40 – 59 – 41 -148 – 42 – 75 – 43 – 125 – 44 – 102 – 45 – 80 – 46 – 47 – 110 -48 – 111 – 49 – 118 – 50 – 119 – 51 – 69 – 52 – 89 – 53 – 66 – 149 -54 – 129 – 139 – 133 – 140 – 138 – 127 – 56 – 135 – 63 – 88 – 72 -77 – 131 – 58 – 131
Nesta segunda leitura, as múltiplas e quase inesgotáveis probabilidades conectivas entre os capítulos delineiam um gesto de escrita simétrico àquele do “lance de dados” de Mallarmé: algo em torno do caráter infinitesimal da escritura, não obstante a impossibilidade do livro definitivo. Situação bem explicitada com o final circular entre os capítulos 58 e o 131, através dos quais fica indeterminado o verdadeiro desfecho da história. “Obra aberta” por excelência, O jogo da amarelinha inflige a lógica linear do romance tradicional em favor de uma complexa organização cartográfica, passível de inúmeras orientações e trajetos, de maneira homóloga as diversas rotas adotadas por Oliveira e Maga em seus encontros quase marcados. Aliás, nessa segunda leitura, a dimensão de “reflexão sobre o romance através da própria reflexividade da forma romance” torna-se protagonista, não apenas devido ao conteúdo dos episódios (preenchido por meditações sobre a arte e a linguagem), mas também por conta do jogo entre necessidade e arbitrariedade encetado na própria forma — questão capital para teoria do romance, assim como, para o destino de uma experiência existencial inaugurada com a modernidade artístico-literária. Sobre o segundo ponto, lembremo-nos da importância dos clubes, das agremiações, dos movimentos de vanguarda desde o início do século 20 (aquilo que o escritor Enrique Vila-Matas metaforizou com a trama secreta das sociedades shandys em sua História da literatura portátil), bem como, do gesto extravagante do dandismo cujo símbolo iconoclástico maior fora o poeta Charlie Baudelaire, em sua flanêrie pelas passagens do século 19. Tanto em um caso quanto noutro, Cortázar refaz o percurso deste chão de giz em busca de uma desobstrução das rotas interrompidas de nossa modernidade.
Daí o retorno (em um novo patamar) a temas como o baralhamento entre as potências subjetivas e a memória objetiva sedimentada no espaço urbano, a busca da singularidade e da altivez do sujeito por meio dos feitiços imanados por relíquias camufladas nos desvios da cidade moderna (a despeito do desenvolvimento da urbe que teima em obliterar tais espaços auráticos), a livre fruição da vida, a “atenção desinteressada” proustiana, o “acaso objetivo” surrealista, a intervenção estético-política das vanguardas lírico-afirmativas. Tudo culmina na revisão do projeto moderno de “mudar a vida; mudar a sociedade, mudar o mundo” (Huyssen) como certa vez salientou o filósofo Andreas Huyssen. A transformação da arte, nesta concepção, não se resumiria a uma necessidade interna do discurso artístico, mas atenderia igualmente ao chamado de “mudança de vida” implicado no projeto moderno do novo homem. Neste sentido, abandonar velhos motivos literários, ao passo em que o escritor exercita novas possibilidades formais e narrativas, também corresponde a uma maneira de reestruturar todo campo da experiência social e individual. Muitas vezes, esta aposta na estetização da vida se deu na tentativa de se reencontrar certa objetividade, uma espécie de necessidade por trás da aparência de acaso, de uma suposta arbitrariedade da vida cotidiana. Legado da tradição modernista (em especial na figura vanguardista do surrealismo), este será o quadro existencial com o qual Julio Cortázar se vê às voltas na invenção de seu romance.
Deve-se ainda frisar que o distanciamento histórico entre a primeira vanguarda e o momento de Cortázar exigirá do escritor novos deslocamentos, novos lances de dados neste jogo chamado de literatura, como veremos a seguir.
Quais são as regras do jogo?
O crítico literário Davi Arrigucci Jr. chama a atenção para o paralelo estabelecido no interior do romance entre a pintura neoplasticista de Piet Mondrian e a “busca do absoluto que vai até a destruição dos códigos à disposição” feita por Horácio Oliveira, protagonista, narrador e de certa maneira sósia do autor (Arrigucci). Numa das discussões sobre a arte entre os membros do Clube da Serpente, Etienne faz a seguinte reflexão:
Olhe um pouco o trabalho de Mondrian — dizia Etienne. — Diante dele, acabam os signos mágicos de um Klee. Klee jogava com o acaso, os benefícios da cultura. A sensibilidade pura pode ficar satisfeita com Mondrian, enquanto para Klee é preciso uma série de outras coisas. Um requintado para requintados. Um chinês, na verdade. Em contrapartida, Mondrian pinta absoluto. Você se coloca diante da sua pintura, bem nu, e então, das duas uma: você vê ou não vê. O prazer, as cócegas, as alusões, os terrores ou as delícias são coisas completamente desnecessárias.
O gesto inaugural da arte moderna, na perspectiva da vanguarda neoplasticista, seria aquele da depuração das formas e cores secundárias visando uma redução da pintura às suas formas elementares e neutras, como as linhas retas e as cores primárias. Tal pureza estrutural inexiste na natureza, o que salientaria o aspecto artificial da arte. Julio Cortázar, ao seu modo, irá reinventar estes procedimentos da pintura de acordo os problemas internos colocados pela forma romance: “a exacerbação dos processos de destruição na obra cortaziana, se não liquida de todo a narrativa, tenta, contudo, a empresa de voltar à estaca zero, numa posição semelhante à de Modrian quanto à pintura” (Arrigucci). Todavia, esta escavação do puro absoluto no romance de Cortázar é sempre tensa e inacabada, uma vez que nunca se abandona por completo o repertório de formas e motivos da tradição. A “narrativa absolutamente nova” é perpassada pelos repertórios da arte e da literatura moderna que se convertera ironicamente em tradição. Da mesma forma, a evasão do arbitrário mundo cotidiano, “voltado para a busca de outra coisa, do que falta, daquilo que el jazz alude y soslaya y hasta antecipa: o mundo onde um homem é mais do que um homem” (Idem), aponta para uma liberdade extirpada das determinações circunstanciais, a qual projeta os homens “para um reino edênico out of nowhere, na esfera do mito” (Idem). Contudo, a movência jazzística da vida estetizada, atravessada simultaneamente pela universalidade e plurivocidade das síncopes do jazz e das similitudes entre os signos no poema, será negada no momento seguinte pelo reconhecimento da ilusão artística da música, assim como pelos limites do texto poético[1]. “Uma forma de ilusão como a dos jovens que (…) cedendo às sugestões eróticas da música, se deixam possuir pelo pistão, ‘hasta que un piano minucioso las devuelve a sí mismas, exaustas y reconciliadas y todavia vírgenes hasta el sábado seguinte’” (Idem). O movimento pendular será perene, haja vista que o próprio encanto da arte (materializada pelos improvisos “necessários” do jazz) rebaixará a vida comezinha a condição de irrealidade nos termos do escritor. É sintomática a passagem na qual Oliveira ao ouvir Empty bed blues faz a seguinte digressão:
Os intercessores, uma irrealidade mostrando-nos outra, da mesma forma que os santos pintados mostram o céu com o dedo. Não é possível que isto exista, que estejamos verdadeiramente aqui, que eu seja alguém que se chame Horácio. Esse fantasma aí, essa voz de uma negra que morreu há vinte anos num acidente de automóvel: elos de uma corrente inexistente, como é possível que nos encontremos aqui, como podemos estar reunidos esta noite, a não ser por um mero jogo de ilusões, de regras aceitas e consentidas, de puro baralho nas mãos deum jogador inconcebível…?.
Desde o romantismo alemão, passando pelo simbolismo francês, por escrituras inclassificáveis como as de Lautreámont e de Gérard de Nerval, pelo movimento surrealista dos anos vinte e pelo realismo mágico latino-americano, a arte em geral e a prosa poética em particular foram pensadas como lugares privilegiados de ingresso em certa experiência do impensado, daquilo que Cortázar irá chamar em seu romance de “zona inimaginável”. Apesar das tendências “místicas” presumidas em diferentes níveis com estas concepções, seja com a cosmovisão entronizada nas analogias poéticas, seja com as tentativas de retorno a um pensamento arcaico, mesmo “pararracional”, tal linhagem heteróclita de escritores defendeu, de modo geral, uma visada da realidade “imanente” em detrimento de concepções transcendentes acerca do real (com claras exceções, como o primeiro romantismo de Iena). Esta trilha, a busca pelo absoluto da experiência, no romance de Cortázar, opera-se em um novo nível de autoconsciência. Primeiro porque adensa a tomada de consciência de que a abertura para esta outra realidade, ontologicamente superior, deve-se dar a partir da transfiguração do próprio cotidiano, com a inserção do sujeito concreto no epicentro da experiência mundana no momento mesmo em que o transbordamento da arte rasga o véu de maia das ideologias socialmente admitidas. Na mesma direção, esse “salto” rumo ao infinito não prescinde das normas do jogo, em última instância, estabelecidas a partir da linguagem (e de sua correlata racionalidade) a ser autocriticada. Segundo, enfatizando os limites e impossibilidades da plena realização desses processos, dada a fugacidade e a derrocada do efeito encantatório da arte (o enlouquecimento de Oliveira, anticlímax do enredo, é sintomático neste sentido). No entanto, como visto anteriormente, isto não irá representar um simples desmascaramento de um suposto engodo da arte. Não obstante, o reconhecimento do caráter tênue e “minoritário” do simbólico perante a veleidade mundana, haveria uma consequência inversa: a instauração de um horizonte de inteligibilidade posto em negativo, somente entrevisto, embora responsável por assegurar a lógica do devir humano. Com efeito, a ênfase não recairia exatamente sobre um fim almejado (aliás, as personagens de Cortázar nem sempre sabem ao certo quais são suas aspirações), mas na possibilidade de aferir racionalidade aos caminhos abertos para as personagens, constituídos por deslocamentos efetivos realizados no passado em direção a um presente que expecta uma promessa de futuro ainda não realizada. Em outras palavras, o não-lugar onde se reserva a genuína liberdade confere o sentido subterrâneo do aparentemente ilógico jogo de amarelinha. Daí o encontro entre o lúdico desconcerto do jogo e o aprendizado cheio de idas e vindas pelo qual passam os personagens do romance.
Em entrevista concedida a Ernesto González Bermejo, no ano de 1977, Cortázar pondera sobre algumas das questões acima da seguinte maneira:
(…) O que Johnny está procurando à sua maneira primitiva é, na verdade, o que Oliveira vai procurar, com uma bagagem cultural um pouco maior — ainda que não seja muito maior -, em O jogo da amarelinha. Definitivamente, Johnny está procurando nele mesmo e no próximo aquilo que poderíamos chamar, em uma nova escala, de o homem novo, visto a partir de outra ótica.
A respeito da pergunta sobre a “tentativa de dinamitar certos valores e uma determinada cultura”, usando uma linguagem igualmente pertencente a esta cultura, responde Cortázar:
Há, por uma lado — e isso é ao que você se refere agora – , uma tentativa de dinamitar a razão excessivamente intelectual ou intelectualizada. Mas há mais nesse livro: a tentativa de fazer voar aos pedaços o próprio instrumento de que se vale a razão, que é a linguagem. A tentativa de buscar linguagem nova. Modificando as raízes linguísticas, modificaríamos também todos os parâmetros da razão. É uma operação dialética: uma coisa não poderia ser feita sem a outra.
Assim, O jogo da amarelinha enfrentaria os aparentes becos sem saída e encruzilhadas da cultura ocidental, sem se lançar num espaço de exterioridade com relação a esta mesma cultura. Ao assumir o fio condutor da literatura e da arte moderna de matriz ocidental, Cortázar não se identificou com a figura do expatriado, mas daquele que promove seu autoexílio em um anexo da própria cultura de origem a ser reconfigurada[2]. Isto porque a atitude da modernidade sempre foi uma forma de entrechoque com o presente nascida da própria circunstacialidade do tempo presente.
Como conclui Cortázar na entrevista já citada:
O jogo da amarelinha é uma espécie de petição de autenticidade total do homem: que ele deixe cair, através de um mecanismo de autocrítica e de revisão desapiedada, todas as ideias recebidas, toda a sua herança cultural, não para abandoná-las e sim para criticá-las, para tentar descobrir os elos frouxos, para descobrir onde se quebrou uma coisa que poderia ter sido muito mais bela do que é.
Feita a crítica da herança cultural, o engajamento do escritor neste período se dará em relação a uma tentativa (sempre tensa) de recuperar alguns aspectos da modernidade eventualmente “rompidos” pelos grandes projetos modernos. Um exemplo será uma nova tentativa de rearticulação entre arte e vida: o derramamento do fluxo de consciência do narrador-personagem junto ao direcionamento lúdico do olhar do leitor articulará, de certa forma, uma confluência entre a experiência poética encenada e a experiência poetizada da recepção. Isto porque o leitor igualmente posto “em situação” passará a ser cúmplice das decisões do romance, inclusive na escolha dos finais. Será que Oliveira chegou ao céu? E nós, em que casa do jogo estamos?
[1] Problema levantado pelo próprio escritor por ocasião de seu engajamento político posterior com as lutas latino-americanas, em especial, seu contumaz antiperonismo. O que não invalida a proposição que os limites da arte é também o que estabelece por outro lado sua especificidade, produtividade e riqueza.
[2] A identidade argentina sempre esteve mediada pelo seu caráter de escritor cosmopolita. É explicativo o fato de Cortázar ter nascido na embaixada da Argentina em Ixelles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, e ter voltado a sua terra natal aos quatro anos de idade com seus pais argentinos.