O delegado Espinosa, protagonista de sete dos oito romances do carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, assume uma posição desconfortável em Na multidão, novo livro do autor. Espinosa deixa de ser o investigador para transformar-se em possível vítima de assassinato na trama policial. Ao mesmo tempo em que Espinosa, com seu carisma, mantém o interesse do leitor no romance, seu papel em Na multidão, inevitavelmente, provoca questionamentos sobre o futuro desta pequena obra que os livros com o delegado representam.
Desta vez, Espinosa investiga a morte de uma senhora, pensionista da Previdência Social, atropelada em um acidente duvidoso. O caixa do banco que atendeu a vítima pouco antes da morte passa a ser o principal suspeito e acaba revelando-se um conhecido de infância do delegado.
A trama do livro não é das mais criativas e tem grande dose de inverossimilhança, pois o pacato e sensaborão caixa de banco é que parece ser o detetive da história. Apesar de vizinhos desde a infância, somente o caixa Hugo Breno é quem sabe tudo sobre a vida de Espinosa. O detetive soa ingênuo ao ignorar o sujeito que conheceu, ainda que vagamente, quando eram garotos, mas que continuou no bairro e tornou-se funcionário da Caixa Econômica Federal. Este desconhecimento não combina com a trajetória de Espinosa em outros livros, em que sempre foi um observador implacável e de memória prodigiosa.
A segunda fragilidade da trama surge com o resgate da morte de uma menina ocorrida 40 anos antes, fato que une mais ainda o passado de Espinosa ao de Hugo Breno. A argumentação de que a possível participação de Hugo na morte acidental da menina seria a base para o histórico de culpa, chantagem e remorso que desencadearia na morte da pensionista parece mais enredo de supercine no sábado à noite.
Torcida frenética
O livro só ganha um pouco de emoção e suspense quando Espinosa é colocado em perigo, tornando-se alvo em potencial da série de mortes. É nessa hora que Na multidão comprova o carisma de Espinosa. As falhas da trama são rapidamente esquecidas e trocadas por uma torcida frenética pelo bem-estar do delegado, com o desfecho recompensando o leitor.
O carisma e a torcida do leitor por Espinosa traduzem o maior mérito de Garcia-Roza, não apenas neste livro, mas em toda a série com o detetive. O autor criou um dos personagens mais consistentes da literatura policial brasileira, com algumas características similares a outros livros do gênero pelo mundo, mas com algumas peculiaridades agradáveis e interessantes.
A primeira delas é que Espinosa é um policial ético, relativamente culto e funcionário público exemplar, na contramão da reputação que gozam os policiais brasileiros. Espinosa freqüenta livrarias e sebos e montou em seu apartamento uma estante sem prateleiras, em que uma fileira de livros é colocada em pé, sobre ela vão livros deitados, dando suporte a uma nova fileira de livros em pé e assim por diante, todos eles encostados diretamente na parede. A estante de papel já chegou a dois metros de altura.
Na cozinha, Espinosa também tem hábitos que o tornam simpático. Ele não consegue se desfazer de uma torradeira americana da época da Segunda Guerra, herdada dos pais, que esquenta um dos lados do pão de cada vez, duplicando o tempo do processo. Espinosa prefere assistir pacientemente ao trabalho da torradeira antiga que trocá-la por uma nova que ganhou de presente. O delegado bebe socialmente, aprecia vinhos, e sua refeição diária varia entre massa congelada e quibe e esfirra, que compra sempre na mesma lanchonete árabe. Além disso, divorciado, Espinosa tem um relacionamento aberto com uma arquiteta descolada e bonita que já foi homossexual.
O cenário freqüentado por Espinosa também lhe angaria mais simpatia. Ele cresceu no bairro carioca onde trabalha e gosta de caminhar pelas ruas, valorizando a vida urbana de sua vizinhança. As descrições de Espinosa da região e da praia são saudosistas e resgatam o charme do Rio de Janeiro de um passado recente, mesmo que as histórias protagonizadas pelo delegado sejam sempre recheadas de assassinatos enigmáticos a serem desvendados.
Nos cinco primeiros livros com Espinosa, Garcia-Roza não precisou pôr à prova o carisma do delegado tanto como em Na multidão. Autor de romances ótimos como O silêncio da chuva e Vento sudoeste, Garcia-Roza teve atuação de razoável para boa em obras como Achados e perdidos; Uma janela em Copacabana; Perseguido; e Espinosa sem saída, ainda que este último tenha tido erros de continuidade, mas que não diminuíram a riqueza da trama.
Filosofada esquisita
Em Na multidão, entretanto, Garcia-Roza peca na criatividade e, em alguns momentos, na narração, quando a voz do narrador não esconde, e não combina, com a voz do autor, formado em filosofia e psicologia. É factível que o solitário caixa de banco busque conforto ao caminhar sem destino em meio à multidão, e esta argumentação fica bem resolvida com a narrativa distanciada, mas Garcia-Roza não resiste a uma filosofada esquisita ao tentar explicar por que Hugo Breno não tinha interesse em ver o mar ou apreciar o pôr-do-sol:
A natureza mostrava-se inútil para lidar com sentimentos e problemas humanos. Bela ou não bela, igualmente inútil. O único meio no qual o homem pode se sentir bem é no meio humano. O homem só tem o próprio homem como semelhante. Não há semelhança entre homem e natureza. No meio da multidão, o indivíduo humano pode tanto se perder no fundo homogêneo como se diferenciar mantendo-se sujeito.
Se exemplos como o acima podem ter seu valor questionado, a favor ou contra, há outros trechos em que a interferência do narrador é inadmissível. Numa delas, Espinosa usa a palavra deambulismo (sic) em conversa com seus policiais auxiliares. Noutra, o detetive explica à namorada que, na delegacia, chamam o caixa Hugo de “o homem da multidão” por causa do conto de Poe. É perfeitamente possível que Espinosa, do alto de sua estante sem prateleiras, conheça a palavra deambulismo (sic) e a obra de Poe, mas é muito improvável que esse conhecimento faça parte do mundo de seus auxiliares.
O narrador de Na multidão também tem seus acertos, o maior deles quando diz que “o caso de Hugo Breno não era evidentemente o único investigado pela 12a DP, nem o mais importante”.
Esta talvez seja a grande questão a ser levantada sobre o livro, construído em cima de um caso absolutamente sem importância, como a morte da pensionista, que no fim das contas pareceu mesmo parcialmente acidental. O caso só ganhou relevância porque, de maneira inverossímil, Espinosa passou a fazer parte dele, como vítima. E para se ter uma idéia do carisma do delegado, esta sua participação realmente atenua as fragilidades do romance.
Inevitavelmente, um dia Garcia-Roza iria colocar Espinosa na situação de protagonista da própria história. É pena que isso tenha acontecido tão cedo, ou com um livro menor. Os fãs de Espinosa respiram aliviados ao fim de Na multidão, mas fica o sentimento de que o delegado merecia uma história mais à altura de seu carisma. Ao gastar esse cartucho, Garcia-Roza acabou impondo-se um desafio: não poderá mais compensar a falta de criatividade colocando Espinosa em perigo, sob o risco de banalizar o personagem. A não ser que a última frase dita por Espinosa em Na multidão, em tom de despedida, seja muito mais que uma figura de linguagem.