O caos e a estrela

Com a morte de Antonio Carlos Villaça, no final de maio, o Brasil perde um seus maiores escritores e memorialistas
Antonio Carlos Villaça Foto: Arthur Pereira e Oliveira Filho
01/06/2005

Mares de abismos e escolhos.

Um navio, arfante.

Levantou âncora. Içou as velas.

Continentes ignorados e por explorar. Ilhas desertas e estranhas cidades. O Norte, sempre desejado. Uma enseada, onde pudesse aportar, afinal, livre das tempestades…

Fazia um céu límpido, quando o conheci.

Aos vinte anos de idade, todos os céus são altos e claros.

Antonio Carlos Villaça era o navio.

E disse coisas tão admiráveis sobre Invenção de Orfeu, como jamais ouvira alguém dizer antes dele. Tive a certeza de que estava diante de uma altíssima inteligência poética. Villaça não se igualava aos críticos-abutres, afundando suas garras na carne do texto, esperando-lhe a morte. Era possível aderir radicalmente à literatura.

Havia sempre um copo de mar para um homem navegar.

Primeiramente, o sentimento oceânico, de Romain Rolland discutido em O mal-estar na civilização: a saudade do Infinito e a saudade do Outro. É o que podemos ver n’ O nariz do morto. Quase um corsário buscando tesouros esquecidos.

Além disso, a memória villaciana só pode ser comparada a um oceano, com suas ondas imensas, e suas correntes imperiosas, e suas profundezas ignoradas. Se Jorge Luis Borges o tivesse conhecido, certamente teria escrito Villaça, el memorioso. Não quero dizer, com isso, que ele não passe de um personagem borgiano, mas as coincidências são difusas e misteriosas, com seus espelhos e labirintos. Villaça é o duplo de Funes.

“Más recuerdos tengo yo solo que los habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo.”

Todavia não se trata de um mero colecionador.

Villaça é um ser atraído pela vida até as fronteiras da morte. Por toda a parte, o sopro da impermanência.

Sua memória é vasta como os oceanos, alta como as montanhas e plural como as florestas. O erudito e o poeta percorrem essa vastíssima geografia. Cada partícula de suas lembranças emerge do todo e mergulha no todo. Uma poderosa teia de aranha. Um impressionante fractal.

Anoto em meu diário: Villaça, guardião do tempo. O oceano da memória absoluta e suas correntes heraclitianas. Paisagens imprevistas. Nada mais trágico do que a memória.

Villaça é um dos maiores escritores brasileiros deste século, dos que mais conheceram e praticaram o legado machadiano, com altitude incontestável e os sinais de um gênio. Wilson Martins, ao fazer a crítica de O nariz do morto só conseguiu compará-lo com Minha formação, de Joaquim Nabuco, atribuindo-lhe uma posição que jamais conseguiria ser repetida, tal o drama de sua inquietação e o fastígio de sua prosa.

Pessoalmente, não saberia compará-lo com nenhum outro, porque o livro de Villaça foi soberbo e cruel como o fio da navalha, e deixou feridas abertas e dolorosas dentro de mim.

Se Nabuco soava demasiadamente grandioso, era Villaça quem assumia o medo, o fracasso, e o abandono, e o desespero, como ninguém soubera ou quisera assumir. A sua história era terrivelmente sombria, e, apesar disso, ou por causa disso, completamente obcecada por uma vontade solar e devastadora. E seu estranho e decidido amor pela vida repercutia em mim como um solvente. Algo majestoso e temível.

Dessas contradições, emergia toda a grandeza de Antonio Carlos Villaça. Era a história de uma alma. E enquanto muitos livros me faziam sentir apenas cérebro ou coração, O nariz do morto fazia bem mais: eram as vísceras e os rins, a medula e os ossos que começavam a ter vida, e a sofrer com o jovem monge. Mais do que a história de uma alma, tratava-se da história de um corpo.

As páginas do mosteiro são de uma beleza terrível, densas, ágeis, cortantes e cruéis, mais permanentes do que as de Renan sobre a Acrópole, mais terríveis do que as Prisões de um Silvio Pellico, mais inconfundíveis do que as páginas adultas de um Gilberto Amado, de quem Villaça apreciava a trágica alegria de viver.

Foi quando ingressou na vida religiosa. Tal como Raul Pompéia começando O Ateneu. A diferença é que Tristão de Athayde não lhe disse nada, enquanto o pai de Sérgio, à porta da escola, preparou-lhe o espírito: Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta!

E se o Ateneu pegou fogo, e se Raul Pompéia não conseguiu libertar-se das chamas — dos sóis de ouro destronados e incinerados que acabaram com a sua vida — o mosteiro de Villaça continuou de pé, em sua drástica harmonia, preservando uma estranha e inesperada redenção.

Gilberto Amado tentou consolá-lo: Você jamais caberia no mosteiro.

Mas o mosteiro cabia dentro dele.

Entretanto, não foi preciso incendiar ou destruir o São Bento. Não foi preciso incendiar-se ou destruir-se.

E durante anos viveu como um peregrino, sonhando ressurreições, desterrado de si, torturado pelo desejo, arrebatado pela sombra. Pelo azul.

Foi assim que se salvou.

Quando o conheci, eu me ocupava com a obra de Botticelli e pensava na interpretação de Élie Faure.

Botticelli descobrira o mistério dos bosques e dos prados, a profundeza dos mares e a dinâmica dos ventos. E amava tanto as flores que as fazia chover do céu, quando não as encontrava na terra. Todas, no entanto, exalavam o odor das flores mortas.

E amava tanto a beleza nua que, antes mesmo que a houvesse contemplado, ele a queimava nas chamas de seu desejo. E a sua nudez mostrava-se consumada. E os quadros de Botticelli encarnavam o drama de suas contradições e guardavam primaveras desaparecidas, mulheres de beleza espectral, bosques de todo impossíveis, anjos apagados.

A memória do artista era uma coleção que raiava ao artifício. Memória triste e sublime.

Talvez Botticelli fosse o meu duplo. Preocupava-me o futuro. Precisava escrever com o meu próprio sangue, como Iessiênin, pois a vida queimava botticellianamente em minhas veias. Tinha medo de dar nome às flores e convocar os meus anjos, embora amasse o azul da praia e o cheiro áspero da maresia.

O branco da página era o espelho de minha solidão. Talvez jamais conseguisse escrever. Olhar de frente.

Villaça deve ter compreendido o meu silêncio e a minha angústia. As horas de leitura e abandono. O sonho de Alexandria e o Livro primordial. Precisava de um antídoto contra Botticelli. Precisava do Sol. Do vigor de seus raios. Do azul.

E assim iluminava uma parte de meus desvãos: Meio-dia de Graciliano Ramos. Tardes de Guimarães Rosa. E a idéia de que o mundo devia aboutir au livre. Para tanto, celebrar a vida.

Depois da morte ficarão as tardes e as madrugadas.

Abro O nariz do morto e leio: “Vivi? Não vivi. Mas auscultei ou sondei a larga vida, ansiosamente debrucei-me sobre o coração humano, habituei meu ouvido ao seu bater”. Pasternak tem um poema intitulado, Minha irmã, a vida. Você diria o mesmo sobre a vida, Villaça?

“Diria. A irmã morte. A irmã vida. Laetatus sum in his quae dicta sunt mihi — in domum Domini ibimus. Vivi? Não vivi. Mas caminhei até Diamantina. Fui a Sabará. Fui à arquiepiscopal cidade de Mariana, lá visitei o túmulo do poeta Alphonsus, o nosso Verlaine, belo túmulo moderno, em cuja inauguração falou maravilhosamente Augusto Frederico Schmidt, em 1953. Vou. A curiosidade me conduz. Tenho apetite. E amo tanto a vida. Deus neum et omnia. O mundo me seduz. Gilberto Freyre na casa de Apicucos a me servir o seu licor de pitanga. Antes do almoço, Luís da Câmara Cascudo a me receber no seu chalé da avenida Junqueira Aires, 377, na deliciosa cidade do Natal, e estava naquela casa havia cinqüenta anos. Um museu. E conversei longamente, loucamente, com Gilberto Amado, nas Laranjeiras, ele velho e sábio, a ler-me poemas de Drummond em voz alta. Vivi, não vivi. Conversei com Michel Carrouges em Paris, no seu curioso apartamento perto da Tour Eiffel. Era cego. Mas que alegria havia nele.”

Homens, cidades, fantasmas. Ítalo Calvino fala de um Atlas sui generis, contendo os mapas e as terras prometidas, visitadas na imaginação, ou ainda não descobertas. Cidades densamente invisíveis. Eis a memória redentora de Villaça. Paisagens insólitas. Paisagens abertas. Consciência e vertigem. Como vencer Botticelli senão superando o próprio abismo? Tentando superá-lo. Tentando…

Talvez no próprio azul…

É o que repercute em mim. Sinto a vida repousando no azul da infância, nas manhãs infindáveis e reveladoras, solidárias e remanescentes. Manhãs dolorosamente ensolaradas. Manhãs perfumadas de hortelã e alfazema. Terra molhada de chuva. Margaridas. Manhãs que me confundem.

Manhãs que me governam.

Sinto-me condenado a uma permanente nostalgia do azul.

E a memória servindo como ponte entre as manhãs que me afagavam e os céus impressentidos do futuro, que ameaçam despenhar-se, inabaláveis, sobre mim.

Será outro o meu azul. Terá a beleza de um Franz Marc. Os céus de Mérida e os Alpes. As contas do rosário. Os olhos da Sibila.

Hei de perder-me no azul.

Tudo se perderá no azul.

Marco Lucchesi

Nasceu em 1963 no Rio de Janeiro (RJ). Tem mais de vinte livros publicados, entre ensaio, poesia e ficção. Recebeu diversos prêmios, como o Jabuti, o Marin Sorescu da Romênia, de Cavaliere da República Italiana e o Alceu Amoroso Lima pela obra poética. Atualmente é presidente da ABL. Mal de amor (2017) é seu mais recente livro de poesia.

Rascunho