“Inventem sua própria métrica, evitem o verso de forma fixa, fujam da rima”, recomenda Nelson de Oliveira em artigo sobre sua oficina de criação literária, regendo normas que contrariam a própria essência da criação, que é a liberdade.
Inventar a própria métrica os poetas vêm fazendo desde antes do modernismo, quando já começaram a fugir dos trilhos do ritmo cadenciado, para procurar um ritmo mais psicológico, ou seja, adequado ao assunto (do poema, da estrofe ou mesmo de um único verso). Pode-se inventar o próprio ritmo dentro de versos metrificados, evitando a cadência regular, repetitiva e impositiva, de que o exemplo maior é I Juca Pirama, de Gonçalves Dias (o que não impede que seja um belo poema, até porque o ritmo aí está intrinsecamente justificado pelo assunto guerreiro, como se regido por tambores de guerra).
Hoje há sonetistas que continuam a renovar o soneto, fugindo do ritmo metrificado, das idéias feitas, do tom solene, da chave de ouro e todos os maneirismos sonetais. Justamente por ser uma forma fixa que quase morreu, ressuscitá-la é difícil e desafiante, pois, além de balanço que supere os trilhos batidos dos ritmos sáficos e heróicos (tônicas nas sílabas 4-8-10 ou 6-10), exige também superação do cansaço das rimas.
Noite-açoite é exemplo de incontáveis rimas cansadas, previsíveis, que parecem conduzir a linguagem, em vez de aflorarem nela como se casualmente, com naturalidade, o que não é fácil, justamente por dever parecer fácil e simples.
A naturalidade, também jamais torcendo ou invertendo frases para ajeitar rimas, além de não ser fácil formalmente, é muito difícil para quem não tenha, conforme Walter Franco, a mente limpa, a espinha ereta e o coração tranqüilo. A poesia de Manuel Bandeira, com excelentes poemas tanto rimados/metrificados como livres, é exemplo de que a receita de qualidade não está nas formas poéticas, mas no espírito do poeta. Como Whitman não é Whitman devido aos versos livres, mas pela liberdade de seu espírito, que decorrentemente exigia versos livres, embora também tenha feito alguns poemas metrificados (se conhecesse Pessoa, talvez os assinasse com heterônimo…).
Pessoa é exemplo de poeta admirável nas formas fixas ou metrificadas (como Ele-mesmo e Ricardo Reis) e nas livres (Alberto Caeiro e Álvaro de Campos).
Daí vem o fator fonte, chamemos assim, de que os receituários não se dão conta: a literatura de qualidade emana da visão de mundo, dos valores morais, das miradas filosóficas, do exercício político, da relação social, da dimensão espiritual, do, conforme Drummond, sentimento de mundo ou, conforme a linguagem popular, do coração.
Daí o tédio e o vazio de muitos poemas que parecem saídos não da vida, mas do exercício de fazer poesia. Burocraesia: poemas feitos por poetas que se sentam para fazer poesia, com hora marcada e compromisso regular, como um expediente poético. Nada mais incongruente.
Como véu consciente ou inconsciente para nublar essa carência vital, muitos poemas se apresentam com uma linguagem tão impenetrável que ficamos pensando: mas que diabo quis dizer? Ou trata-se de apenas dizer sem significar? A poesia então virou uma arte não conceitual, apenas sonora?
Quem sabe, é claro, diz Gullar. Mas não basta ser claro, é preciso ser denso: ter o que dizer, não necessariamente idéias, mas visão de mundo, intrincada com uma linguagem própria. Quem tem uma tem outra, e vice-versa. Sem sua visão minimalista, Manoel de Barros usaria a linguagem que usa? Ou não usa, é usado por ela, pois poeta é quem se gasta e se ganha nessa sinergia entre o que dizer e como dizer. E para isso não há receitas. Ou conforme o mestre maior, que nada escreveu, mas criou uma linguagem tão própria que foi relatada em quatro versões: “eu sou o que sou”.