O buraco das lembranças

Cony, Zuenir e Verissimo, cronistas experientes, lançam livros de veia memorialística
Cony, Ventura e Verissimo por Osvalter
01/08/2010

Os textos memorialísticos são parte integrante da obra de alguns dos mais relevantes escritores brasileiros. Para citar alguns exemplos, Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos assinaram, cada qual à sua maneira, textos em que tomavam emprestado de suas memórias os significados para as passagens históricas; para os momentos em que houve alguma altercação política; bem como para os períodos em que o ambiente cultural foi marcado por algo inerente à sociedade. Nesse aspecto, tanto Nelson Rodrigues como Graciliano Ramos assumiam, como técnica narrativa, a alusão histórica. Não era necessário que eles empreendessem um esforço hercúleo para tanto, haja vista que, como mestres da crônica, ambos sabiam muito bem articular as minúcias do estilo peculiar desse gênero textual, assim como dos elementos que garantem o interesse do leitor. Por toda essa explanação acima, seria natural nutrir grandes expectativas para os recém-lançados Conversas sobre o tempo e Eu, aos pedaços, já que seriam textos fundamentais para se conhecer a vida e, sobretudo, a obra desses escritores a partir de suas próprias palavras. E o resultado, como se lerá ao final, diz muito sobre esses autores e sua relação para com o público.

Antes, do começo. Carlos Heitor Cony é autor de Eu, aos pedaços, uma seleta de crônicas memorialísticas em que o escritor destila o que os leitores de seus textos de jornal podem apreciar cotidianamente: um mestre da crônica, segundo avaliação de quem entende do riscado, como é o caso do escritor e jornalista do jornal O Globo, João Ferreira dos Santos. É ele, aliás, quem afirma ter visto Cony escrever uma crônica em vinte minutos. Com efeito, do modo que são lidos, tem-se a impressão de que os textos de Cony saem com facilidade acima da média, como se fosse alguém a escrever um relatório ou um sujeito que preenche uma lista dessas burocráticas. A impressão não poderia ser mais enganosa. Se um desavisado tentar escrever esse texto imaginando facilidade conhecerá um retumbante fracasso. Isso não apenas porque Cony detém os elementos centrais da elaboração da crônica, a técnica; como também possui o que hoje em dia teimam em chamar de “conteúdo”. O repertório ao qual Cony tem acesso pode não ser vasto como o de uma enciclopédia, por exemplo, mas está tão bem articulado com a trajetória do escritor que as pessoas acabam confundindo o que é fato e o que é ficção na vida do autor.

Em certa medida, é a propósito disso que versa o livro Eu, aos pedaços. Lemos as crônicas de Cony como se estas fossem a versão mais ou menos organizada de sua trajetória, dividida aqui por temas, como “Infância”, “Família”, “Jornalismo”, “Cotidiano”, “Viagens”, “Reflexões”, “Relações”, “Personagens” e “Política”. Cony, portanto, optou por uma condução excessivamente fragmentada, muito embora seja possível notar certa condução de sua própria versão dos fatos, sobretudo porque o autor prefere iniciar pela ordem cronológica. Assim, ao rememorar sua infância logo no primeiro trecho, Carlos Heitor Cony dá as pistas de sua natureza, ao destacar num primeiro plano sua relação com o pai, do mesmo modo como o autor retrata suas experiências de maneira única, com certo tom humorístico, peculiar a todo o colunista que se preza. Cony ensina que se deve desconfiar de tudo, a princípio de si mesmo. Por isso, as narrativas acerca de sua infância nada têm de grandioso ou de heróico; mas, sim, algo excessivamente mundano e simplório.

É bem verdade que Cony enfatiza, aqui e ali, alguns pontos acerca de sua formação, como os hábitos de leitura que permearam seus primeiros anos. Nesse sentido, é correto afirmar que, para esse período, seu pai possui um papel definitivo. De forma semelhante ao livro Quase memória, Cony utiliza as características de seu pai e, agora, escreve sobre seus hábitos, confessa alguns pecadilhos e, sempre de forma bem-humorada, não deixa de prestar homenagem aos anos em que viveu. O que chama a atenção nesse ponto é o fato de o escritor não deixar de ser escritor nesse momento. Dito de outra forma, mesmo quando vai falar de seu passado — texto que deveria ser, por assim dizer, um tanto protocolar e esquemático — Cony preza pela sofisticação, pela construção mais articulada e, por fim, pela literatura. Desse modo, pode-se inferir que o tom anedótico das histórias não deixa de ser artimanha de um escritor experimentado, alguém que, para além de ser profissional do texto, exala literatura tanto nas referências diretas como nas indiretas.

Tome-se como exemplo disso a seção em que Carlos Heitor Cony rende homenagem aos escritores com quem conviveu, como é o caso de Nelson Rodrigues (já citado na abertura desse texto) e Clarice Lispector (espécie de esfinge da literatura brasileira). Sobre o dramatugo, Cony observa que, como poucos na literatura universal ou brasileira, Nelson Rodrigues “usou e abusou dos amigos e dos conhecidos”, num truque que poderia ser considerado “exagero”, a não ser pelo fato de ser “uma técnica, uma estrutura estética, um processo de composição comum a muitos escritores”. Para provar seu argumento, Cony, que não é um scholar, mas um leitor refinado dos clássicos, cita o caso de Marcel Proust (e seus personagens Swann e Charlus); e também Eça de Queirós. Cony, entretanto, enxerga na prosa de Nelson Rodrigues esse estratagema sendo utilizado de forma muito mais freqüente.

Assim, diz Cony:

Em princípio, seus personagens podem ser divididos em três categorias. A primeira é constituída por aqueles que comparecem no teatro, no romance ou na crônica rodriguiana com os próprios nomes e atributos. (…) A segunda é formada por personagens que, embora disfarçados, são facilmente identificados. Nesta categoria estão amigos e desafetos do autor: médicos, colegas de jornal, contínuos, gente da sociedade. (…) A terceira categoria, mais extensa e divertida, é a dos amigos que freqüentavam o seu cotidiano. Nelson era fiel às amizades, mas a seu modo. Quando descobria um tipo, gostava de explorá-lo, lambê-lo à exaustão.

O brilhantismo do excerto acima é que não se trata meramente de uma declaração de quem conviveu com Nelson Rodrigues. Trata-se, afinal de contas, de uma análise bem fundamentada de um recurso literário. Apenas os leitores experimentados são capazes de desvendar esses segredos que, de tão óbvios, parecem como dados da realidade, mas que carecem de maior sentido para o público comum. Cony, é bom lembrar, não age como um crítico literário — até mesmo porque não paga pedágio às teorias, muitas vezes, enviesadas dos estudiosos. De qualquer modo, quando escreve sobre Nelson Rodrigues é novamente o literato que faz toma à frente memorialista.

Evolução
Curiosamente, ao falar de Clarice Lispector, Carlos Heitor Cony desvenda um fenômeno pertinente. Não foi a crítica quem descobriu Clarice, como podem imaginar, atualmente, os que estão encantados com a biografia de Benjamin Moser sobre a autora de A maçã no escuro. De acordo com Cony, foram as leitoras quem enxergaram em Clarice uma escritora genial, isto é, foi o público, e não a crítica, quem pautou Clarice como uma autora obrigatória. Com essa constatação, Cony não necessariamente espezinha os críticos. Em vez disso, observa certa evolução por parte dos leitores. Acompanhe: “O grande público custou a chegar, preferia então um tipo de ficção mais colorido e movimentado. O mergulho introspectivo em nossa literatura era seara de iniciados que apreciavam Cornélio Pena e tinham acesso a Katherine Mansfield”. Na seleção de Eu, aos pedaços, Cony ainda reserva espaço para resgatar Otto Maria Carpeaux, um dos maiores intelectuais que o país já teve. Sobre ele, escreveu: “É um dos raros casos de ponto pacífico de nosso instrumental crítico”.

Ao falar de política, os pontos que estão presentes em Eu, aos pedaços resgatam em muito o jornalista Carlos Heitor Cony. Sua presença na página A2 na Folha de S. Paulo é presença certa no debate de temas que nem sempre estão afeitos com a chamada opinião pública. Em 2009, só para citar um exemplo que não consta no livro, Cony praticamente foi o único que não criticou abertamente o então alvejado José Sarney. Nesse sentido, não causará maior espanto do leitor ler o escritor tratar de esquerda e direita; as lembranças do AI-5; e do próprio Golpe de 1964, tópicos que compõem a galeria de textos que Cony traz não somente sua versão dos fatos, mas um contraponto às análises generalistas que, vez por outra, são feitas pelas grandes narrativas históricas. Alguém há de se lembrar que Cony esteve no centro de uma grande polêmica há alguns anos em torno de uma possível pensão que ele teria direito a receber por ter sido inimigo do regime militar. Em seu novo livro, Cony não parece não dar bola para esse tipo de discussão, mas apresenta seu olhar ao incluir na seleção sua posição contrária ao golpe, num artigo que, mais tarde, seria célebre dentro de outra coletânea: O ato e o fato.

Em linhas gerais, entende-se que Cony se ressente, e muito, dos idos de 1964. Não apenas pelo significado daquele período para o porvir do país nos anos seguintes, mas, também, pelo fato de ter sido confundido com um alienado, posto que, como escritor, não caiu no canto da sereia da chamada “arte engajada”, que produzia panfletos subliterários com a desculpa de ser “contra o sistema vigente”. Existe certa parcela do leitorado que ainda não compreendeu isso de forma adequada. Justo com Carlos Heitor Cony, um prosador representante do que se poderia considerar existencialismo literário.

Ação entre amigos
Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura se confundem com a trajetória da crônica no Brasil, sobretudo se considerarmos a segunda metade do século 20. Grosso modo, os autores conseguem tratar de temas mais sérios com o seu público como se estes fossem corriqueiros, a ponto de os leitores não se darem conta de que os temas abordados são de ordem simplória. Eis uma virtude de Verissimo e Ventura: seus leitores imaginam que sua prosa é algo fácil de ser atingido, e isso se deve ao fato de os escritores transformarem seus textos em peças jornalísticas e literárias com um estilo franco, muito embora temperado, aqui e ali, com alguma ironia.

Dito isso, em Conversas sobre o tempo, os leitores de Verissimo e Ventura têm a oportunidade de acompanhar uma longa entrevista com os dois autores, jornalistas que mantêm, há anos, colunas fixas em veículos de imprensa importantes do país, como é o caso de O Estado de S. Paulo e do jornal O Globo. Até aí, a expectativa tende a aumentar, uma vez que, diferentemente do caso de Cony, as conversas ora publicadas em livro são inéditas, sendo mediadas por Arthur Dapieve, também jornalista. As grandes esperanças começam a se frustrar por aí, no entanto. E a proposta da editora Agir era exatamente passar cinco manhãs ou tardes conversando sobre os seguintes assuntos: amizade, família, paixões, política e morte. O problema é que essas conversas pouco acrescentam àquilo que já se sabe dos dois autores, e o que poderia ser uma mensagem diferente, trazendo um fato novo, torna-se, perigosamente, mais do mesmo.

É necessário explicar o porquê do “perigo”. De pronto, é preciso ressaltar que nem Luis Fernando Verissimo nem Zuenir Ventura são autores a serem evitados por quaisquer razões que sejam. O perigo citado no parágrafo anterior se refere à possibilidade de os escritores se tornarem reféns de um discurso público muito comum aos chamados formadores de opinião. Mais explicações: como expoentes das seções de opinião dos jornais e de revistas, tanto Ventura como Verissimo são clonados por seus adeptos e detratores. E isso acontece exatamente porque seu discurso está telegrafado pelas comunidades imaginadas. Como o cobrador de um pênalti perdido que avisa ao goleiro para que lado irá chutar. Ou seja, a imaginação pode efetivamente ter chegado ao poder porque suas idéias são facilmente absorvidas pelos meios de divulgação.

Outro problema de responder de acordo com as idéias desse imaginário coletivo é que, efetivamente, as opiniões desses dois articulistas acabam por se tornar um lugar-comum. Nota-se, por exemplo, que os dois se assemelham entre si não somente porque pertencem à mesma geração, mas porque comungam de valores similares em relação à importância da família, à fidelidade dos relacionamentos e aos princípios políticos. Sobre a questão ideológica, aliás, é interessante atentar que ambos os autores aderem à cartilha dos verdadeiros ideais de esquerda, muito provavelmente instalados nessa espécie de zona de conforto.

É nesse ponto que Conversa sobre o tempo poderia efetivamente assumir um tom contestador. Caberia a Arthur Dapieve, jornalista experiente, assumir a postura de provocar, questionar, interrogar — fazer jornalismo, em outras palavras. Não é o que ocorre. Pelo contrário. O mediador tão somente aceita as aspas de seus interlocutores e não contrapõe, não diverge, não busca o dissenso. É mais fácil entender as conversas como ação entre amigos, algo previamente programado para não tocar em temas sensíveis, como se os autores naturalmente buscassem polêmica. Ora, quem os lê sabe bem que, a despeito de um texto ou outro, a conduta esperada é que Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo discorram sobre conversas brejeiras, como a que segue:

Zuenir Ventura: Tinha essa coisa da zona lá em Friburgo. Eu me lembro que a primeira vez que eu fui à zona, eu era muito criança. Fui levado por um primo, que era cafetão lá. Ele tinha mulheres na zona, o que era um privilégio de alguns rapazes. Então ele me levou nessa condição. A dona Sofia, que era a dona do puteiro, me botou pra correr de lá porque achou que eu era muito novo. Ela era muito moralista.

Arthur Dapieve: Puta moralista (risos).

O que constrange não é apenas o fato de o livro tentar reproduzir um tipo de texto que é bastante comum na internet. O que constrange é o fato de o autor conceder um depoimento desse num livro cujo título é conversa sobre o tempo. Se um livro conta com uma discussão dessa estirpe, é natural que não haja espaço para um debate mais reflexivo, de idéias, de conteúdo. Sobre o mediador, embora Arthur Dapieve seja um dos jornalistas mais preparados de sua geração, sua posição se aproxima da de um fã, de um leitor apaixonado, quando não de um subordinado. Para o leitor, não ajuda muito o fato de Dapieve assinar uma espécie de elegia na apresentação do livro, cujo exemplo pode ser visto a seguir:

Embora a companhia dos casais Verissimo e Ventura, a beleza da Mata Atlântica e a delicadeza pessoal da fazenda sugerissem mesmo ao mais sorumbático dos visitantes que, sim, a vida poderia ser boa, eu estava nervoso demais para aproveitá-la. Ao menos não antes de pressionar o botão stop após a sessão final de conversas.

Por mais à vontade que tenha sido a proposta do encontro, seria de se esperar uma espécie de tensão em torno das conversas. E isso não se dá porque, para além da não-intervenção do mediador, Ventura e Verissimo comandam o teatro de Conversas sobre o tempo de forma hábil o bastante para que pareça que eles estão sendo questionados. Daí o teatro: há um jogo de cena em torno da figura aparentemente pacata dos dois escritores. Como poucos, eles sabem exatamente o que devem dizer e a maneira de dizê-lo. Fernando Pessoa diria que o poeta é um fingidor. Aqui, trata-se de um estratagema comum a esses autores que são capazes de reescrever sua trajetória junto à opinião pública sempre que esta exigir alguma correção política ou estética, a fim de que não haja confronto com a opinião pública que adora repetir as idéias ventiladas por esses nomes.

Se Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos fizeram de seus textos memorialísticos verdadeiras narrativas de formação, o mesmo não pode ser dito sobre Ventura e Verissimo. Aqui, existe uma seleção que tenta pautar o debate, mas se torna falível diante de uma leitura mais atenta. Cony, por sua vez, embora não tenha um texto original, ao menos organizou seus pedaços de forma mais compreensível, autoral e articulado com seus pontos de vista. Em certa medida, as entrevistas de Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura também cumprem esse papel. A diferença central entre as obras está no quanto os autores se propuseram a falar. Mas disso já sabem os leitores acostumados a eles.

Os autores
Nascido em 1926, no Rio de Janeiro (RJ), Carlos Heitor Cony é um dos principais cronistas brasileiros em atividade. Além de ser colunista da Folha de S. Paulo, tendo já trabalhado em outros veículos da imprensa nacional, Cony é romancista renomado e premiado, autor, entre outros, de O ventre, Tijolo de segurança, Quase memória e Antes, o verão.

Luis Fernando Verissimo, nascido em 1936, em Porto Alegre (RS), é colunista de O Globo e de O Estado de S.Paulo. Best-seller nacional, é autor de inúmeras coletâneas de crônicas, além dos livros O analista de Bagé, Os espiões e As mentiras que os homens contam.

Além de escritor, Zuenir Ventura, nascido em 1931, em Além Paraíba (MG), é um dos principais jornalistas brasileiros, tendo já exercido a função de repórter, editor e colunista. Atualmente, escreve para o jornal O Globo. Entre seus livros, destacam-se 1968, o ano que não terminou, Cidade partida e o best-seller Inveja, mal secreto.

Eu, aos pedaços
Carlos Heitor Cony
Leya
256 págs.
Conversa sobre o tempo
Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura
Agir
284 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho