O brilho e o triste fim

Volume de entrevistas "Um antídoto contra a solidão" discute a trajetória, as obras e o suicídio, em 2008, de David Foster Wallace
Ilustração: David Foster Wallace por Oliver Quinto
01/02/2022

Em dezembro de 2012, visitei São Paulo. Como qualquer leitor interiorano que vai à capital, corri às maiores livrarias da cidade. Por horas e horas percorri corredores e estantes; podia comprar poucos livros, tinha que escolher bem. Tentei, especialmente, buscar obras em línguas estrangeiras, que eram mais difíceis de encontrar e frequentemente exigiam importação.

Nessa ocasião, como inevitável, me chamou atenção um calhamaço de capa azul brilhante, o título Infinite jest escrito em verde-claro na capa frágil. Folheei. Mais de mil páginas. Diagramação variada, fontes diferentes, estrutura ensandecida, centenas de notas ao fim do livro. Isso já seria o suficiente para mim, que adoro loucuras formais. Mas fiz o teste a que submeto todo livro de autor que não conheço: abri numa página aleatória e li algumas frases, para sentir o estilo. Bastou.

Eu, graduando em Letras, que tinha escolhido uma habilitação em espanhol por interesse na obra de Borges, acabei por convencer uma professora de literatura brasileira extremamente disposta e versátil a me orientar num TCC sobre David Foster Wallace. Precisei importar uma segunda cópia do romance para que pudesse usá-la enquanto ela lia a primeira. Defendi o TCC um mês antes que a tradução de Caetano Galindo, Graça infinita, fosse lançada.

Poucos anos depois, tinha lido a obra completa de Wallace, me mudado para Curitiba e traduzido no mestrado, sob a orientação do mesmo Caetano, o ensaio mais importante do autor. Agora, depois de dois anos relativamente Wallace-free, me cai às mãos as entrevistas de Um antídoto contra a solidão.

Por que Wallace?
No Brasil, foram publicados apenas três livros de DFW: Graça infinita, Breves entrevistas com homens hediondos e Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, respectivamente um romance, um livro de contos e uma coletânea de ensaios. Esta última é uma seleção brasileira própria de textos do Wallace, não equivale a nenhuma das existentes em língua inglesa. O terceiro romance do autor, The pale king, publicado postumamente e traduzido ao português há anos, por ora coleta poeira na gaveta de uma editora, sem previsão de lançamento.

Ainda que alguns desses livros, especialmente Graça infinita, tenham atraído alguma atenção, o leitor brasileiro não costuma ter muita ideia do fenômeno midiático que foi Wallace, especialmente após o lançamento da versão original de Graça.

As entrevistas de Um antídoto contra a solidão, organizadas por Stephen J. Burn (um dos maiores especialistas na obra do autor) e publicadas originalmente em 2012 com o título Conversations with David Foster Wallace, somam quase 400 páginas. Isso significa que houve uma seleção criteriosa. Foram feitas tantas entrevistas com Wallace que esse número de páginas indica parcimônia.

Um exemplo é a entrevista com Larry McCaffery, a maior do volume. É interessantíssima e discute, em grande parte, o ensaio mais importante do autor: E unibus pluram, que traduzi como parte de meu mestrado. Creio que, graças à inclusão dessa entrevista, Burn excluiu outra, feita pelo mesmo entrevistador, a respeito de Graça infinita. Exclusão dolorosa.

McCaffery, fantástico entrevistador e leitor, demonstra ter compreendido o romance de tal maneira que, a certo ponto, Wallace diz “Queria que você fosse meu pai”, enquanto discute em detalhes vários dos temas mais importantes do texto, como não acontece em nenhuma entrevista presente no volume da Âyiné. Por outro lado, essa entrevista é enorme, aquela com McCaffery incluída já é bastante longa, e há tantas outras possíveis a respeito de Graça que acabo por achar a decisão acertada.

Também é interessante notar o quanto é diferente assistir a uma entrevista com Wallace (há várias disponíveis no YouTube, sempre em inglês) e ler a mesma entrevista. O autor, visto em vídeo, transmitia um tipo cativante de insegurança. Frases que no papel parecem assertivas e diretas perdem um pouco dessa natureza, e a maneira como ele pergunta “Faz sentido?” ao fim de certas frases, o que pode parecer só um tique de linguagem na página, passa a ser uma genuína pergunta de quem quer ser compreendido.

Pequenas caretas, ruídos e gestos denunciavam que ele estava de fato pensando nas perguntas feitas. Assim como em seus textos, seus gestos e palavras transmitem uma enorme sensação de autenticidade — em parte, talvez, pela maneira aberta como ele fala sobre tudo. Ao contrário de inúmeros autores que preferem não revelar o que tentam dizer com suas obras, Wallace respondia a todas as perguntas. Falava sobre as falhas que enxergava nas obras passadas, nas decisões que se arrependeu de tomar, no que tentou fazer com seus textos mas acha que não conseguiu — o que torna a leitura das entrevistas algo revelador para quem quer mergulhar em sua obra.

Isso não significa, claro, que as entrevistas só falem da obra de Wallace: falam também, e muito, da pessoa. De fato, uma crítica que eu faria a essa coletânea seria o excesso de “perfis”. Muitas entrevistas começam com uma breve explicação sobre quem é DFW, e ninguém precisa ler tantas vezes que Graça infinita tem mais de mil páginas e trezentas notas, entre outras pequenas informações repetidas nesses perfis. Sua única utilidade, talvez, seja ressaltar a progressão do autor conforme seguem as entrevistas.

Nos primeiros textos do volume, vemos um aluno de pós-graduação aos vinte e poucos, conversando sobre seus primeiros textos hiperintelectuais e já bem recebidos pela crítica. Perfis o descrevem como “geniozinho” e o associam aos outros autores jovens da época. Sua relação com a mídia é algo desajeitada; conta aos entrevistadores coisas tão íntimas que um dos primeiros deles o pega pelo ombro e diz Me Deixa Te Explicar Um Negócio.

Mais adiante, um repórter que vai a sua casa entrevistá-lo anota o nome dos antidepressivos que vê ao explorar o armário do banheiro e publica a informação num jornal importante. Wallace passa a proibir visitas de repórteres a sua casa. Suas frases parecem, com o tempo, mais “feitas”, mais memoráveis, materializando reflexões cristalizadas com o tempo — ou recusando opiniões antigas. As entrevistas o seguem nas diferentes cidades em que vive. Aos poucos, passa a recusar a maioria delas. Começa a se interessar por política, chega a escrever a respeito. Talvez se aprofundasse mais no tema — mas sua vida tem um fim abrupto.

Evito, deliberadamente, colocar aqui as notas que muitos adoram colocar ao falar do autor, ou terminar o texto na frase anterior como truquezinho de linguagem; fazendo assim, caio em outra característica de DFW: a autoconsciência que se manifesta em todas as entrevistas, de uma forma ou de outra.

Ilustração: David Foster Wallace por Oliver Quinto

As entrevistas valem a leitura por si só, mas a disposição de conhecer a ficção de Wallace seria o melhor resultado possível dessa leitura. É na literatura que Wallace tenta seu melhor para criar um antídoto para sua solidão — e para a nossa.

Literatura contra a solidão
David Foster Wallace cometeu suicídio em 2008, aos 46 anos, depois de uma vida tornada possível por antidepressivos. Na literatura, encontrou um caminho para comunicar o inexprimível dessa condição, que é um dos temas principais do romance Graça infinita e dos contos Good old neon e A pessoa deprimida. O romance, além disso, trata de temas como vício e tem como peça central um filme cujo conteúdo é tão maravilhoso que é impossível descrevê-lo. É a isso que ele chama de Barreira do Eu, me parece.

Além de simbolizá-lo em seus textos, ele chega a dizer abertamente em certas entrevistas (nenhuma das quais está nesse livro, infelizmente) que uma das dificuldades em ser humano, a solidão essencial, nasce do fato de que nossa própria dor é uma realidade física; a sentimos na pele. A dor do outro pode no máximo ser imaginada. Tendo feito incontáveis traduções de textos científicos, sei que ainda há médicos que acreditam, sem qualquer base científica, que negros sentem menos dor do que brancos, e, portanto, precisam de menos anestésicos. Há pouco tempo, acreditava-se que bebês só começavam a sentir dor depois de uma certa idade. Hoje, tantos olham para a dor sofrida por quem foi torturado durante a ditadura e a tratam como se não fosse nada.

Existe uma barreira entre nós, entre a percepção que tenho da minha própria dor e a sua, que é determinada por esse sentir-na-pele. E para Wallace, a literatura era a única maneira de superar, mesmo que não completamente, essa distância, de conseguir alguma proximidade maior, de entender o outro e de comunicar o eu, diminuindo a distância que nos separa ao mínimo possível. A literatura, segundo o próprio, é uma ferramenta para se dizer aquilo que não conseguimos explicar com palavras simples.

Isso significa, claro, que entrevistas com Wallace nunca terão o poder de sua literatura — até porque ele se recusa a tocar em alguns tópicos que explora profundamente em sua obra, os tópicos mais difíceis e pessoais. Recomendo a leitura das entrevistas porque são divertidas, porque mostram algumas das ideias mais importantes do autor e seu brilhantismo, porque foram bem organizadas, cobrindo toda a obra de Wallace. Lendo-as, você pode ter uma ideia dos temas e características dos livros do autor e escolher um deles para encarar depois de concluí-las.

As entrevistas valem a leitura por si só, mas a disposição de conhecer a ficção de Wallace seria o melhor resultado possível dessa leitura. É na literatura que Wallace tenta seu melhor para criar um antídoto para sua solidão — e para a nossa.

Um antídoto contra a solidão
David Foster Wallace
Trad.: Caetano Galindo e Sara Grünhagen
Âyiné
316 págs.
David Foster Wallace
Nasceu em Ithaca, nos Estados Unidos, em 1962. Publicou o romance Graça infinita (1996), os contos de Breves entrevistas com homens hediondos (1999) e diversos ensaios reunidos em coletâneas. A maior parte de seu trabalho ainda não foi lançada no Brasil. Morreu em 2008.
Bruno Nogueira

É mestre em Estudos Literários e autor do livro de contos A síndrome do impostor.

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