Antes de se debruçar sobre o texto de Casa-grande & senzala, o clássico de Gilberto Freyre, é importante conhecer um pouco da história de suas edições, que revela não apenas o sucesso no Brasil — lançada em dezembro de 1933, a obra já ultrapassou a 50ª edição —, mas o êxito persistente no exterior: são quatro edições nos Estados Unidos, a última em 1986; na França, também quatro edições, a mais recente em 1997; em Portugal, a sétima edição é de 2001; e, comprovando a diversidade de leitores, três edições na Alemanha, a mais próxima de nós, publicada no ano de 1990.
Freyre diz, no Prefácio à primeira edição, que o livro nasceu do exílio forçado pela Revolução de 30, no qual acompanhou o então governador de Pernambuco, Estácio Coimbra: da Bahia viajou a Portugal, passando pela África; depois, professor na Universidade de Stanford, nos EUA, um período na Alemanha e, finalmente, o regresso ao Brasil. Sem dúvida, muitas vezes é preciso distanciar-se da própria realidade para vê-la melhor; o afastamento — e também a saudade — fomentam olhar mais agudo, livre das injunções cotidianas. Mas a base do livro estava, havia tempo, fixada em dois parâmetros: os estudos sob orientação de Franz Boas e a antipatia ao materialismo histórico — “tantas vezes exagerado nas suas generalizações — principalmente em trabalhos de sectários e fanáticos”, segundo as próprias palavras de Freyre —, o que não o impediu de aceitar que “a técnica da produção econômica” tem “influência considerável” na organização social, “embora nem sempre preponderante”. São heranças do período entre 1918 e 1923, quando estudara nas universidades de Baylor e Columbia — nesta, defendeu, para o grau de Master of Arts, a tese Social life in Brazil in the middle of the 19th Century, trabalho elogiado por vários professores e também pelo viperino H. L. Mencken, que o aconselhou a ampliar suas ideias e transformá-las em livro. A respeito desta sugestão, Freyre diz, com justificado orgulho: “O livro, que é este, deve esta palavra de estímulo ao mais antiacadêmico dos críticos”.
Foi longa, portanto, a gestação da obra. E não poderia ser diferente, constatação óbvia quando nos deparamos com o volume que pretende abarcar múltiplos aspectos da formação do cotidiano e da intimidade nacionais; decisão consciente, estudada, que Freyre explicita no Prefácio:
A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: da sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião de família e influenciado pelas crendices da senzala. O estudo da história íntima de um povo tem alguma coisa de introspecção proustiana; os Goncourt já o chamavam “ce roman vrai”. O arquiteto Lúcio Costa diante das velhas casas de Sabará, São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, das velhas casas-grandes de Minas, foi a impressão que teve: “A gente como que se encontra… E se lembra de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós; não sei — Proust devia explicar isso direito”.
Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos sentirmos nos outros — nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.
Concorde-se ou não com a tese do autor, estes parágrafos sintetizam suas inovações sociológicas e antropológicas, que ele jamais desvincula da história — o que representaria, segundo o filósofo Julián Marías, leitor e amigo de Freyre, verdadeira “mutilação” —, além da limpidez do estilo, cujas raízes remontam às aulas de latim na infância — em 1914, o adolescente já ensinava as declinações aos colegas —, e do caráter de “romancista com fundamento in re”, como salienta Marías — ou seja, com base na realidade, não na fantasia.
Trata-se do discurso destituído de ambiguidades — e que marca toda a obra. O leitor acompanha o raciocínio e vê as cenas sem lusco-fusco.
Para confirmar tais características, veja-se, por exemplo, no Capítulo I, a longa defesa que Freyre faz do heroísmo português. Em nenhum momento abandona a visão criteriosa das influências opostas — inspira-se, inclusive, num longo trecho de A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós — que formam o caráter do colonizador:
O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos.
Não se trata, assim, de heroísmo romântico, solitário e altivo, mas de vitórias que seriam impossíveis sem “aclimatabilidade”, “mobilidade” e, principalmente, “miscibilidade”:
[…] A sociedade capaz de tão notáveis iniciativas como as bandeiras, a catequese, a fundação e consolidação da agricultura tropical, as guerras contra os franceses no Maranhão e contra os holandeses em Pernambuco, foi uma sociedade constituída com pequeno número de mulheres brancas e larga e profundamente mesclada de sangue indígena. Diante do que se torna difícil, no caso do português, distinguir o que seria aclimatabilidade de colonizador branco — já de si duvidoso na sua pureza étnica e na sua qualidade, antes convencional que genuína de europeu — da capacidade de mestiço, formado desde o primeiro momento pela união do adventício sem escrúpulos nem consciência de raça com mulheres da vigorosa gente da terra.
Raciocínio que ele reafirma, com igual transparência, em outro trecho do mesmo capítulo:
[…] Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação — contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos — foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para sua melhor adaptação, senão biológica, social.
Trata-se do discurso destituído de ambiguidades — e que marca toda a obra. O leitor acompanha o raciocínio e vê as cenas sem lusco-fusco. Freyre não recusa nem mesmo a conclusão assertiva:
[…] O certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de se retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.
E, recuperando o tema, sintetiza, no Capítulo III, a figura do nosso colonizador:
[…] O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis.
Essas primeiras páginas do livro são suficientes para entendermos a condescendência, a quase bondade de Gilberto Freyre no ensaio Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira: comparado a Freyre, o autor de Os sertões não está “perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico”, mas naufraga nessas armadilhas. O leitor de Casa-grande & senzala jamais será tomado pela vertigem que nos domina em tantas páginas euclidianas, o que não significa dizer que o estilo de Freyre seja seco ou telegráfico, mas, sim, composto de naturalidade invejável, destituído do hermetismo academicista que enxovalha o ensaísmo nacional nos dias de hoje. José Lins do Rego, no prefácio que escreveu a Região e tradição, resumiu bem a técnica freyriana: para expressar o que deseja, ele não se submete à terminologia da sua ciência, mas ao “estilo da sua personalidade” — receita que, convenhamos, encontra-se esquecida. “Nunca, em nossa língua, um estilo foi mais original, mais expressivo, mais natural. Nenhum artifício, nenhum requebro, nenhum luxo”, salienta Rego, com relativo mas desculpável exagero, acertando ao afirmar que essa “precisão de dizer” é, ao mesmo tempo, “de pintor e de arquiteto”.
Ainda comemorando o caráter inteligível da escrita freyriana, a melhor observação cabe a Julián Marías, quando afirma, em artigo publicado no La Vanguardia, em 2 de outubro de 1983, que Gilberto Freyre “usa os conceitos como instrumentos óticos, não como equivalente da realidade ou como tribunal ao qual a realidade deve se submeter” — ou seja, o oposto do que faz nosso ensaísmo contemporâneo, pronto a, primeiro, eleger uma ideologia e sua respectiva nomenclatura, para, depois, como se todos os problemas pudessem ser resolvidos por uma imposição mecânica, submeter a realidade a tal esquema.
Exemplo desses “instrumentos óticos”, no Capítulo I, é a forma como Gilberto Freyre, partindo dos relatos de viajantes, entre eles Von Martius, cria um novo par de opostos — a miscigenação e a sífilis —, utilizando-o para valorizar o primeiro elemento, mas sem esquecer-se de apontar os malefícios do segundo:
À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem tremenda a sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro — talvez o tipo do homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-lo. Daí certa confusão de responsabilidades; atribuindo muitos à miscigenação o que tem sido obra principalmente da sifilização; responsabilizando-se a raça negra ou a ameríndia ou mesmo a portuguesa, cada uma das quais, pura ou sem cruzamento, está cansada de produzir exemplares admiráveis de beleza e de robustez física […].
De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido, depois da má nutrição, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia econômica do mestiço brasileiro. Sua ação começou ao mesmo tempo que a da miscigenação […].
A paronomásia construída por meio do par civilização/sifilização é intencionalmente perturbadora. Servirá para Freyre concluir, com perfeito realismo, o desenho do caráter heroico do colonizador:
Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. Os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar sobre ela outro traço europeizante além das manchas da mestiçagem e de sífilis. Não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população aborígine que os absorveu.
Mas Freyre voltará ao tema no Capítulo IV, O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro, para compor trecho antológico, cinematográfico, no qual parece escandir as palavras:
A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue envenenado rebentava em feridas. Coçavam-se então as perebas ou “cabidelas”, tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. A sifilização do Brasil — admitida a sua origem extra-americana — vimos, às primeiras páginas deste trabalho, que data dos princípios do século XVI. Mas no ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias, negrinhas, molecas, mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da prostituição doméstica — sempre menos higiênica que a dos bordéis.
Mantendo-se longe de qualquer preocupação edulcorativa, a crueza do texto derrota os ensaiozinhos cujas ideias se refugiam numa sintaxe e num vocabulário próprios de seita ocultista, tão obscuros quanto a ideologia que defendem, ou repletos de otimismo insano, daquele angelismo moderno que é incapaz de separar o bem do mal, ou, ainda pior, pronto a apontar como mal tudo que não esteja na pauta esquerdista.
Mas não se escreve com tal objetividade sem dominar a língua, isto é, sem conhecê-la na sua estrutura e no seu constante, interminável processo de formação. Graças a esse domínio, Gilberto Freyre pode analisar as “canções de berço portuguesas”, no Capítulo IV, mostrando de que maneira foram modificadas pela
boca da ama negra, alterando nelas as palavras, adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Assim, a velha canção “escuta, escuta, menino” aqui se amoleceu em “durma, durma, meu filhinho”, passando Belém de “fonte” portuguesa, a “riacho” brasileiro. Riacho de engenho. Riacho com mãe-d’água dentro, em vez de moura encantada. […]
Ou, páginas à frente, no mesmo capítulo, desenvolver sua teoria — psico e sociolinguística — sobre a variação no uso dos pronomes:
Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português só admite um — o “modo puro e imperativo”: diga-me, faça-me, espere-me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso, caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce, de pedido. E servimo-nos dos dois. Ora, esses dois modos antagônicos de expressão, conforme necessidade de mando ou cerimônia, por um lado, e de intimidade ou de súplica, por outro, parecem-nos bem típicos das relações psicológicas que se desenvolveram através da nossa formação patriarcal entre os senhores e os escravos; entre as sinhá-moças e as mucamas; entre os brancos e os pretos. “Faça-me”, é o senhor falando; o pai; o patriarca; “me dê”, é o escravo, a mulher, o filho, a mucama.
Dessas considerações, Freyre colhe sua conclusão a respeito da “potencialidade da cultura brasileira”, que “parece residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados”. E afirma, referindo-se a “brancos e pretos”:
Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos em um todo, não será como o sacrifício de um elemento ao outro.
Voltando ao âmbito da linguagem, só um escritor de consciência ampla e diversa, capaz de abraçar os mais diferentes aspectos da nossa cultura, poderia também perceber o “vício” que, até hoje, polui nosso idioma; antagonismo, como ele bem diz, que vem sendo “corrigido e atenuado”, por nossos romancistas e poetas, com imensa dificuldade:
O vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.
Essa percepção, antes de qualquer outra, foi o que permitiu a Gilberto Freyre abandonar os contorcionismos da língua, a retórica vazia, e escrever com desenvoltura, fluidez. Mas tal “vontade de estilo”, no sentido de um esforço de expressão que, quando alcançado, não sobrepuja a ideia, mas se apresenta de forma orgânica, inseparável do conteúdo, ergueu-se pari passu com outra característica fundamental, perfeitamente definida por Julián Marías: “A chave da atitude vital de Gilberto Freyre era o gozo ante a realidade”. Foi seu amor ao real — e não às teorias — que lhe permitiu usar suas fontes, cada mínima citação bibliográfica, como “um gesto, um ato humano, uma notícia, uma visão de uma parcela da realidade” — só assim ele não sucumbiu à “seca erudição”, só assim ele se tornou, como Julián Marías intitula o necrológio que escreveu em 24 de julho de 1987, “um brasileiro universal”.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Mário de Andrade e Os contos de Belazarte.