O Brasil tem política cultural?

A participação do Estado no fortalecimento de ações culturais duradouras
01/08/2007

O mito mais recorrente a rondar a questão do Estado e cultura no Brasil é aquele que diz que o Estado brasileiro nunca formulou uma política cultural. A intervenção do Estado na cultura sofreria de um crônico problema de descontinuidade administrativa e as boas soluções não sobreviveriam uma eleição. A verdade é que nas grandes linhas, o Estado brasileiro soube construir políticas culturais de longo alcance, embora nem sempre fossem entendidas como tais. Nos últimos cento e cinqüenta anos, o país experimentou dois exemplos modelares de política cultural, que perduraram o suficiente para gerar conseqüências. Uma política durou mais de um século e teve origem no período colonial, atravessando o Império e parte da República. A outra, concebida com o objetivo de privilegiar a cultura ibérica, ancorou-se no nacionalismo.

Hoje é consenso que a cultura é a base das sociedades avançadas. Ainda que o conhecimento tecnológico signifique no mundo moderno poder econômico, nem sempre o avanço e o bem-estar de um país se medem pelos indicativos de sua produção material. Ao contrário, os mais democráticos e bem-sucedidos países contemporâneos são exatamente aqueles que ao lado do poder econômico desenvolveram sistemas culturais e educacionais integrados num único Sistema Nacional de Inovação, que não apenas compreende os fatores da esfera produtiva, como querem alguns tecnocratas, mas especialmente a capacidade que um país tem de articular o Estado, instituições privadas e públicas, em políticas de curto e longo prazo capazes de apoiar a geração de conhecimento, de tecnologias e avanços sociais. Esta conjunção ocorreu apenas uma vez no Brasil, e pode se dizer que estamos vivendo as suas conseqüências até hoje. Uma série de medidas administrativas do então Príncipe Regente e, mais tarde, Dom João VI, estimulou a caminhada do Brasil de colônia a nação. Este não era o objetivo do Rei de Portugal, é claro. O que ele desejava era aumentar a eficiência da colônia, melhorar as condições materiais que lhe permitissem manter o Império Português coeso a partir da periferia. Impossibilitado de promover avanços ou mudanças políticas, investe em educação e cultura. O Estado importado descobre a importância da educação e da cultura, para o bem e para o mal, e é surpreendente como em poucas décadas uma miserável colônia ganha corpo e passa a avançar rumo à independência política. Entre 1819 e 1819, a ex-colônia que nada tinha produz Machado de Assis, Carlos Gomes e Alberto Santos Dumont.

Em 1930, um golpe de estado derruba a república velha e se desfaz o Sistema Nacional de Inovação. Componentes da classe média, especialmente os militares, trazem para o novo regime algumas reivindicações sociais e políticas avançadas. De início essas reivindicações parecem vitoriosas. Mas os segmentos conservadores tudo fazem para retardar a ascensão das forças industriais ao cenário político. E as classes trabalhadoras são cooptadas por uma legislação inspirada na Itália de Mussolini. Em 1937, um novo golpe: agora uma ditadura sem disfarces. Um novo Sistema Nacional de Inovação começa a ser esboçado, alijando-se dele a cultura e a educação para enfatizar a economia. Mas os ideólogos sabiam da importância da cultura como propaganda, afinal, na década de 30 o Brasil já conhecia os efeitos de massa do cinema e do rádio. A solução encontrada foi politicamente brilhante: não reconhecer o trabalho artístico como trabalho, mas criar equipamentos institucionais para fomentar e conduzir a produção cultural. A ditadura cria várias instituições, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional de Música, o Instituto Nacional do Livro e a Campanha Nacional do Folclore. É introduzida uma mudança fundamental. Retiram os artistas do centro do programa e, em seu lugar, entronizam a noção de patrimônio histórico. Ao redirecionar seus objetivos em 1937, retirando a cultura do Sistema Nacional de Inovação, torna a política cultural acessória à questão do patrimônio.

O Sistema Nacional de Inovação, circunscrito à produção, absorção e aquisição de tecnologia para a produção material, começa a atravessar uma série de crises, especialmente porque o Estado nada fez para investir na pesquisa e não se preocupou em mudar a estrutura universitária de seu papel de máquina produtora de bacharéis, e nem conseguiu organizar um sistema educacional elementar de bom nível. Vivemos a falência da opção de 1937. É óbvio que é obrigação do Estado participar no fomento de tudo o que não é indústria cultural. Uma política cultural moderna e republicana será aquela em que a cultura estará presente no Sistema Nacional de Inovação, estreitando sua vinculação com a educação. Sem esta interação, problemas gravíssimos de fomento, difusão e preservação da cultura nacional nunca se resolverão e serão tratados sempre com retórica e soluções demagógicas.

Márcio Souza

Nasceu em Manaus (AM), em 1946. Aos 14 anos começou escrevendo críticas de cinema para um jornal local e em 1965 deixou Manaus para estudar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Seu primeiro romance, Galvez, Imperador do Acre, foi um enorme sucesso de crítica e de vendas. É autor ainda de Mad MariaA ordem do diaO mundo perdido, além da tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro. É também roteirista de cinema, dramaturgo e diretor de teatro e ópera. Dirige atualmente o TESC (Teatro Experimental do Sesc do Amazonas), grupo teatral que foi pioneiro na luta pela preservação da Amazônia.

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