O bom ladrão de palavras

Com competência, Roniwalter Jatobá percorre o sofrimento daqueles que vivem à margem
Roniwalter Jatobá: lugar adequado para cada palavra
01/07/2004

A cena é comum em livros, filmes, peças de teatro, novelas, cordel, pintura, escultura: um jovem nordestino subindo num caminhão velho, olhos cheios de lágrimas, nem bem raiou o dia. A ida é para São Paulo. Na cidade grande, cheia de gente e de água pelas ruas, o pobre sofre, come o pão que o diabo amassou, mas lembra sempre com saudade da terrinha que deixou para trás. Quem sabe um dia volte, cheio de novidades, pouco dinheiro, rosto sofrido.

O que diferencia essas histórias, contadas à exaustão — e algumas têm até final feliz — é a escolha das palavras. E também a medida certa da emoção, para não cair na pieguice fácil desse tipo de narrativa. Por ser um tema batidíssimo, não é tarefa muito simples prender o leitor. Fazer com que ele se interesse em saber qual será o destino de mais aquele retirante. De mais aquele pobre coitado, que sofre ao descobrir que a cidade grande vai engolindo aos poucos seus sonhos de fazer dinheiro e voltar feliz para a terra onde nasceu e deixou todas as suas lembranças mais caras.

O escritor Roniwalter Jatobá há muito entrou nessa seara. Escreveu contos/novelas (nem vale a pena entrar na discussão sobre o que é conto e o que é novela, caso tão ou mais batido do que o tema dos retirantes nos livros) sobre o assunto. Há anos. Em 1985, publicou Pássaro selvagem e, nove anos depois, lançou Tiziu. Ambas histórias de uma gente sofrida duma cidadezinha do interior da Bahia. Dez anos depois da publicação da segunda história, lança Paragens, que é a reunião de Pássaro selvagem e Tiziu, e mais um conto de mesmo nome do livro lançado pela Boitempo. Um bom livro, aliás.

É bom porque, apesar do tema, é bem escrito. E isso é mais de meio caminho andado. O negócio é saber usar as palavras. Saber dar o tempero certo para as frases. Usar os adjetivos, simples ou refinadamente, para dar cor ao texto. Adoro adjetivos. São palavras fortes, que deixam o texto muito mais saboroso. Escritores têm de amar as palavras. Seguir os ensinamentos de Pablo Neruda: “[…] Tudo está na palavra… Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu… Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes… São antiqüíssimas e recentíssimas.[…]” (em A palavra).

Todas as palavras correm soltas por aí, esperando pousar lentas sobre o papel. Ou, como disse belissimamente Augusto Roa Bastos em Contravida, as palavras estão aí para serem roubadas. Jatobá soube roubá-las. Não precisou usá-las de forma poética, nem nada. Apenas colocou no lugar certo. O que faz toda a diferença. “[1944 foi um ano ingrato. Havia guerra em outras terras mas a luta ali era nos cortes, na busca incessante do cristal de rocha. Americanos fervilhavam no meio do garimpo com suas calças frouxas e dizeres atravessados. Olhavam as pedras com brilho nos olhos. Andavam de jeep sem capota, riam muito e metiam as mãos vermelhas de sol nos bolsos com facilidade. Andavam em turma. Às vezes batiam amigavelmente nas costas de um ou outro garimpeiro. Sempre reclamavam do calor; e do frio noturno. […]” (p. 19 e 20)

Os três contos/novelas de Paragens têm, como já disse, o mesmo tema. Mas as abordagens são diferentes. No primeiro, Pássaro selvagem, Roniwalter usa de diversos narradores para contar uma mesma história. As vozes se misturam para mostrar a vida dura dos habitantes de uma cidade do interior, que moram à beira da estrada poeirenta Rio-Bahia. Conta a história de uma família — que, na verdade, representa todas as famílias —, sob o ponto de vista do filho caçula. É ele quem acaba pegando carona num caminhão velho e indo para São Paulo tentar a sorte. Em Paragens, a narrativa é em primeira pessoa. Um retirante revê sua vida na metrópole, passando pelas estações de trem. Cada parada, uma lembrança. Tiziu usa as mesmas personagens do primeiro conto — pelo menos os mesmos nomes. O homem, que viveu na cidade da garoa por anos e anos, resolve voltar para sua terra. O livro todo, portanto, é o começo, o meio e o fim de uma saga. Vivida por milhares. E com o final em aberto.

O autor — Roniwalter Jatobá é mineiro de Campanário, mas aos dez anos mudou-se para a Bahia. Depois de servir o exército, foi para São Paulo. Trabalhou como operário no ABC paulista. Conseguiu, mais tarde, emprego na Editora Abril, e acabou formando-se em jornalismo. Publicou os livros Sabor de química (1976), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1982) Juazeiro: guerra no sertão (1996), A crise do regime militar (1997), O pavão misterioso e outras memórias (1999), e O jovem Che Guevara (2004).

Paragens
Roniwalter Jatobá
Boitempo
169 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho