Era um homem de já setenta e tantos anos, gordo apenas na barriga e largo ainda nos ombros, forte para a idade e bastante corado para quem começava uma conversa reclamando de doenças respiratórias. Pulmões grandes, mas fracos, ele dizia. O sujeito me abordou, enquanto eu esperava um ônibus na Praça Santos Andrade. Isso já faz três anos. Tossiu e queixou-se do clima, três vezes. Assim seria bem fácil um velho pegar pneumonia. Eu, o primeiro da fila. Ele, o único atrás de mim. Um senhor em busca de aproximação.
Da debilidade de sua saúde, partiu para questões mais inescrutáveis: “Você é judeu?” Pego de surpresa, eu disse que não, sem adivinhar-lhe os motivos. E ele, aliviado: “Ainda bem. Já teve fimose?” Não, nunca tive. O velho: “Sorte sua. É circuncidado?” Também não era. O homem, então, examina-me o fundo dos olhos, aparentemente satisfeito: “Sorte sua. Eu sou. Circuncidado”. Põe uma mão marota na braguilha: “Quer ver?” Dou um pulo para trás e ele logo avisa que é brincadeira. Ele ri com a boca bem aberta, mas nunca mostrando os dentes. “Sou circuncidado, mas não sou judeu. Nem tive fimose. Foi apenas uma experiência médica. Muito azar o meu, não acha?”
Naquele momento, diagnostiquei-lhe a demência. Só mais um louco no ponto de ônibus. Eu, azarado, esperava a linha Augusto Stresser. Dependendo do dia e do horário, pode demorar até quarenta minutos. Assim, o velho tinha tempo suficiente para me contar uma história curiosa e normativa. “De fundo moral”, garantiu. Resumindo, ele disse que, nos anos 50, havia servido, como soldado, numa suposta e remota tropa de paz em Jerusalém. Mais um mitômano, portanto. Rapidamente, concentrou-se em descrever detalhes da vida noturna daquela cidade milenar. Suas mulheres e seus bordéis fabulosos — aquilo não lhe abandonava o espírito ainda pândego. Então falou, preso de uma fantasia sem freios, sobre como a visão do prepúcio intacto dos militares ocidentais enchia de júbilo as prostitutas de lá. “Comigo, elas não reagiam euforicamente: pensavam que eu era judeu.” Algo realmente lamentável e interessante, os vários parâmetros femininos. Mas que homem, afinal, liga para idiossincrasias sexuais? Continuou, então, discorrendo sobre as orgias a que se entregara tão alegremente, mesmo prejudicado pela circuncisão injusta e sem propósito. Trocavam todos o posto de vigilante pelo colchão suado e fino das moças. E isso constantemente. Até que um tenente — homossexual, segundo ele —, invejoso dos prazeres dos subordinados, pôs fim à festa soldadesca. Teria gritado para a tropa: “Vocês não têm vergonha de pegar putas na Terra Santa?” Foram todos marchando para a detenção. O velho ainda nomeia um por um os companheiros boêmios, saudoso de todos aqueles lá, que, inclusive, já morreram. Mas dizia ser difícil imaginar-lhes os cadáveres — impossível até — quando a única coisa boa ainda viva em sua lembrança eram aquelas tardes e noites de loucura irresponsável que tiveram, ele e os mortos, na Jerusalém dos anos 50.
Essa história absurda, que interrompo pouco antes do fim, conto não apenas por ter me comovido de forma inesperada, mas também porque diz respeito a um dos motes de O Mesmo Mar (Companhia das Letras, 325 págs.), último livro do israelense Amós Oz. O romance — se é que se pode defini-lo assim —, construído à moda dos trovadores e menestréis bíblicos e medievais, é quase todo escrito em verso. Livre e branco, mas de força rara e ritmo impressionante. Uma volta heróica ao poema longo e narrativo. Oz, porém, passa longe do épico: forja antes uma tragicomédia sobre a família, o amor e a morte. E o terror descrito por ele em O Mesmo Mar é tão harmonioso e cotidiano que parece natural e até bonito.
O Narrador — alter ego confesso de Oz —, logo no início, lança sobre a história um pretenso “lema de nosso tempo”, enganosamente otimista e balsâmico: “Nada de ilusões”. Que nos sirva de consolo o seguinte: “Todo mundo, de um jeito ou de outro, acaba sozinho”. Adverte, assim, àqueles leitores que, talvez, venham a perder seu tempo torcendo pela felicidade amorosa dos protagonistas. Isso não vai acontecer. Nunca acontece com ninguém. Albert Danon, por exemplo, um contador sexagenário, nos é apresentado no momento mais negro de uma viuvez recente, dolorosa. O amor, para ele, está totalmente perdido para a morte. Agarra-se, então, como muitos outros personagens do livro, à inutilidade de suas memórias de conforto conjugal ou familiar. Nada condenável. Como lidar com a morbidez da saudade? “Mesmo que uma pessoa viva até os cem anos, nunca vai parar de procurar os que já morreram”, escreve Oz. Mas por quê?
A mulher morta de Danon, Nádia, não resistira a um câncer no ovário. Não é por acaso que Oz aproxima da sua concepção de morte o útero doente da falecida. Cria-se, desde as primeiras páginas, o símbolo de que o escritor necessita para improvisar sobre a máxima religiosa que prega — e até louva — a nossa volta inexorável ao pó. Danon tem um filho, Rico, descaradamente edipiano. Perdida a mãe, ele larga a namorada e se desgarra do lar. Parte ridiculamente para o Tibet, atrás de qualquer coisa que lhe sirva de lenitivo para o luto. Nas montanhas, ao pisar, incauto, a beira de um precipício escuríssimo, vem-lhe a reflexão suja: “O abismo tem cheiro de útero”. Nas suas andanças pela Ásia selvagem, Rico encontra Maria, uma prostituta portuguesa já bem madura e sem-vergonha, cantora de fados e amante de meninos, e com quem acaba se envolvendo. Maria, não totalmente contra sua vontade, é obrigada por ele a simular cuidados e atitudes maternais na hora tão boa do sexo. Enquanto isso, em Israel, seu pai, torturado pela ausência de Nádia e de Rico, recolhe em sua casa a ex-namorada do filho, Dita, que passava por dificuldades financeiras e perdera seu apartamento.
A carência amargurada desses dois abandonados é descrita de forma tão pungente quanto simples. Por meio do confinamento doméstico e corriqueiro, do cotidiano de duas pessoas solitárias pela mesma causa, e que dividem o mesmo banheiro, o mesmo sofá, a mesma faca de manteiga. Quando surge o desejo de um pelo outro, parece finalmente fechar-se um ciclo inevitável. Sogro e nora sentem-se compelidos a uma união desastrosa. Danon e Dita, então, passam a viver quase maritalmente.
O Mesmo Mar trata de um assunto bastante complicado: o homem, infantilizado pelo medo — da morte, da solidão, do escuro —, corre atrás de algum tipo relativamente infantil de proteção. E a imagem que com mais freqüência se associa a necessidades dessa espécie é a da mãe. Sociedades primitivas matriarcais consideravam o mar um elemento essencialmente feminino. Entidade sempre parturiente, divindade eternamente gestante. Mãe e berço de toda a vida. De lá, tudo na Terra teria saído para a evolução trágica. Mas a tradição religiosa hebraica, desde o Gênese, também cuidou para que a figura da mulher — além dos fins maternais e reprodutores a que foi histórica e quase que exclusivamente relegada —, se tornasse, antiteticamente, a personificação linda do pecado, o símbolo charmoso da tentação diabólica e, portanto, da morte irrevogável do espírito. “Vieste do pó e ao pó voltarás.” Útero e morte, juntos para sempre. A mãe de Nádia já alertava a menina assustada pela violência da menarca: “Toda mulher é castigada e deve verter sangue de sapo, pagar pela serpente e pela maçã, em dor parirás filhos e caminho de volta não há, apenas na gravidez e quando ficamos velhas é que conseguimos alguma remissão”. Rico, por sua vez, lembra de um versículo de Jó, o preferido de seu pai: “Nu saí do ventre da minha mãe, e nu para lá voltarei”. E pensa que, já que tudo é assim, burro e passageiro, para que preocupar-se tanto com a cruz que carregamos na vida? A “cruz no caminho”, conclui, não seria tão importante quanto o fim da jornada, o retorno ao útero.
A poesia de Oz se aproveita muito bem dessa proximidade com o Velho Testamento. Lança mão da mesma técnica narrativa — eficiente e magistral — utilizada no Cântico dos Cânticos, poema erótico atribuído ao Rei Salomão, tido em Israel como o patrono da literatura sapiencial. Os amantes tratam-se, assim como no texto bíblico, por “meu cervo”, “meu gamo”, “minha gazela”. Carinhosamente. Alguns versos, em Oz, são idênticos ao original salomônico: “Teus olhos são como pombas”. Em momentos de maior ardor sensual, a anatomia dos casais é comparada com acidentes geográficos e maravilhas naturais. As analogias vão de arbustos a rochedos. Da mesma forma, o afastamento entre namorados, cônjuges, ou pais e filhos, é representado pelas distâncias físicas que os separam: entre Israel e o Tibet, há montanhas intransponíveis, vales extensos, amplidões assustadoras. Ligando todas as terras, porém, há sempre o mar. Vasto, mas único. O mesmo.
Oz também parodia os salmos de Davi no que têm de mais dolorido e comovente. O pastor que se torna rei de Israel, o matador do gigante, monarca severo e sedutor, é, assim como Danon, “traído” pelo filho Absalão. Danon, por vezes, chama Rico pelo nome amaldiçoado do príncipe que, quando fugia a galope do pai, acabou emaranhando a cabeleira revoltosa numa árvore. Totalmente preso à galharia baixa, Absalão caiu do cavalo. A queda revelou-se, por fim, fatal.
Há, no entanto, telefonemas que, hoje, encurtam as distâncias. Quando Dita conta a Rico sobre o envolvimento ilícito entre ela e o seu pai, ele reage de maneira inusitada: “Quando eu era bebê a mulher dele me deu de mamar e trocou minha fralda e me fez adormecer sobre seu ventre, e agora minha mulher faz o mesmo com ele. Logo mais lhe dará de mamar”. Forma-se, aí, a tragédia revelada por Oz em O Mesmo Mar: os homens buscam, em toda a mulher, a mesma mulher. A proteção que perderam com o avanço dos anos. E as mulheres idealizam homens de coragem e determinação. Sonham com um casamento viril antes mesmo de conhecer o rosto de seus futuros noivos. Quando, por fim, consuma-se o matrimônio, descobrem-se casadas com um bando de crianças frágeis. Amantes e pajens. A humanidade é, enfim, um berçário de barbados em polvorosa.
Os outros personagens do livro de Oz são, também, causadores dessa mesma empatia temerária. Há o produtor de cinema que, obcecado pela rejeição de que sempre foi vítima, considera-se um monstro abjeto, mas amoroso; há o carpinteiro viciado em ópera, pai de família sempre alegre e bem-disposto que, durante décadas, luta contra tendências suicidas sem sentido e quase irrefreáveis; há a viúva, apaixonadíssima por Danon, que o convence a visitar um grego capaz de falar com os mortos. Na parede de sua casa, um Cristo crucificado ainda menino. Lá, ambos os viúvos, por intermédio do charlatão, tentam, pateticamente, comunicar-se com seus esposos falecidos. Na saída, ao cruzar a rua, Danon acredita ter visto Nádia. Ou uma mulher extremamente parecida com ela. Porque Danon, exatamente como todo mundo, nunca deixará de procurar os que já morreram. Os mesmos homens e as mesmas mulheres.
Assim como o velho mentiroso do ponto de ônibus. Triste pelo batalhão de amigos mortos. Diz, entretanto, que trouxe uma lembrança de Israel para o Brasil. Uma menina. Casou-se mesmo com uma daquelas prostitutas judias. “Está aí até hoje, a velha.” O homem finalmente pára de falar, calado por algum tipo familiar e desagradável de emoção. Mas só por um minuto. Depois pergunta: “Você sabe quais são as melhores mulheres do mundo?” Não faço idéia. Ele mesmo responde: “As putas de Jerusalém. Sabe por quê?” Nem imagino. Ele parece incomodado com a obviedade da questão não respondida: “Porque elas estão lá, em Jerusalém. Nunca as tire de lá”. Quer a minha confirmação com um aceno de cabeça. Eu aceno. “Nunca tire uma mulher da sua Terra Santa. Da sua Terra Prometida.” Nunca descobri se a intenção do homem sempre fora a de criar ali, de improviso, uma parábola qualquer a respeito de Deus sabe quantas ilusões perdidas. Mas ele foi feliz, pelo menos na maneira como desenvolveu a sua história. Completou avisando que as mulheres, longe da terra onde forjaram seus sonhos, definham, estragam e, às vezes, morrem ainda jovens, de câncer ou simplesmente asfixiadas. Como peixes retirados do mar.
Oz, felizmente, não nos condena — embora pareça tentado a isso — a um destino tão perverso quanto a total incompatibilidade de interesses entre homem e mulher. E é certo que ele chega a minimizar perigosamente as diferenças perceptíveis entre os vivos e os mortos. Mas acaba nos sugerindo uma última possibilidade de paz e redenção através da natureza. Ela é, talvez, a maior personagem de O Mesmo Mar. A única que, segundo o Narrador, consegue aparentar um mínimo de felicidade e harmonia sem buscar motivos ou preocupar-se com consertos.