O avesso da literatura

Mais do que uma hashtag, a censura aos escritores Jeferson Tenório e Airton Souza é um cerceamento de toda literatura
Os escritores Jeferson Tenório e Airton Souza
11/03/2024

Em qualquer curso de roteiro, escrita criativa ou afins, uma lição básica é entoada como mantra: “show, don’t tell”. A ideia de “mostrar, não contar” altera a dinâmica do texto, reflete-se tanto no emissor quanto no receptor. Para o autor, significa evitar a preguiça narrativa. Para o leitor, implica uma postura ativa para desvendar os significados profundos do texto. Um exemplo: se um narrador optasse por simplesmente contar, alertaria, de maneira fria e objetiva, sobre a persistência do estereótipo sexual atrelado à raça negra. No entanto, ao escolher mostrar, esfuma o juízo de valor do narrador e constrói um cenário, personagens, contexto e um lapso temporal; todos esses elementos têm a função de construir a espinha dorsal para que o leitor alcance a mensagem.

Os vetores da mensagem são escamoteados em véus delicados: a descrição do vestuário de um personagem, a psicologia oculta nas elipses dos diálogos, a maneira como a ação é apresentada.  Pensemos que a afirmação: “há fetiche sexual na imagem que o branco tem do negro” se distenda em uma exposição sobre o namoro entre Henrique e Juliana, “moça ruiva, de dezenove anos, moradora de Gravataí”. Pensemos que o narrador opte por arrolar momentos cruciais desta relação: a apresentação à família da namorada, o reconhecimento gradual de estar inserido em um mundo branco, a admiração por “aquele professor negro que falava de Shakespeare e Ogum com a mesma intensidade e beleza”. O ritmo denuncia que o tempo do discurso está desajustado ao tempo da história; o narrador pisa no acelerador ao arrolar outros momentos em que os clichês são desvelados: um comentário sobre a suposta aptidão para os esportes baseada na cor de sua pele (“você não corre?”) ou a associação entre raça e um estilo musical (“você deveria gostar de pagode”). O conflito é transferido para a perspectiva da namorada, e o narrador dá voz às amigas de Juliana, que questionam a fetichização racial: é neste ponto que, através de uma técnica que remete à mimese Aristotélica, tornamo-nos voyeurs do diálogo íntimo entre Juliana e suas amigas, interessadíssimas em saber se o clichê é verdadeiro (“Tem pegada mesmo, como dizem dos negros? E o pau dele? É grande?). O parágrafo todo poderia ser resumido pela definição da “ironia dramática” de James Wood: “ver através dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver mais do que ele mesmo consegue ver”.

Vejam que, para que a mágica do “show” aconteça, todas as engrenagens precisam funcionar. O autor, este deus onipresente mas invisível, deve ter o controle meticuloso da técnica narrativa. Se exceder ou faltar na caracterização do cenário, se velocidade não for precisa, se os personagens forem rasos, se um maniqueísmo excessivo transformar o conflito em panfleto, a mensagem final se perde, o autor é condenado ao círculo infernal dos amadores.

O diálogo também é uma engrenagem que precisa estar azeitada. Se as vozes soarem artificiais, mecânicas, a mágica não acontecerá, o leitor se dará conta de que está diante de um títere inanimado, o pacto da crença na ficção é quebrado. E, neste ponto, não é necessário ser um doutor em crítica literária, todos nós sabemos o que é um filme com falas ruins. Sabemos porque concordamos que o critério da avaliação do diálogo é a verossimilhança. Buscamos a experiência mais próxima da realidade do personagem: o que ele fala, como fala, quando e por que fala.

Wood cita a “linguagem degradada” dos personagens para exemplificar como o narrador se descola das criaturas — um processo que resulta no surgimento de múltiplas vozes dentro do romance. Em O avesso da pele, romance de Jeferson Tenório, somos levados à intimidade de uma conversa real e dolorosa, uma câmera focada em um episódio isolado, mas que pode ser interpretado como um conceito: uma cena iterativa (realizada inúmeras vezes) e durativa (de ação prolongada).  Mas a censura se ruborizou porque a personagem não teve o decoro científico ao se referir a um órgão sexual masculino. Ou, talvez, porque o léxico das adolescentes não tenha sido o mesmo que um José de Alencar utilizaria.

Tenório, em sua rede social, escreveu: “O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”. Sua fala soa mais como um lamento diante um sistema que desconhece a literatura do que uma defesa do próprio romance. Perceber o “vocabulário de baixo calão” sem entender o contexto e as motivações da obra é como olhar para o afresco A criação de Adão da Capela Sistina e não enxergar a magia do encontro físico entre o humano e o divino, mas tão somente um pau, aliás bem modesto — e nada pedagógico para ser exposto dentro de uma igreja.

O argumento de que “no meu tempo, as coisas eram mais inocentes/ melhores/ verdadeiras…”, panaceia do conservadorismo que confunde a perversão do mundo com a derrocada pessoal, não se aplica à Literatura: Machado abordou a infidelidade em A cartomante e flertou com contratos fáusticos em A igreja do diabo. Guimarães Rosa revelou uma fé de matriz africana em São Marcos, O Ateneu retratou a descoberta da homossexualidade e até o Alencarzão velho de guerra, em Lucíola, escreveu sobre a prostituição. Isso sem dizer de Gregório de Matos, e seus dois “ff”, um furtar e outro foder. Mais do que uma hashtag, a censura a Tenório é um cerceamento de toda literatura. Somos o Avesso da Pele porque, ao aceitar o episódio, perdemos Machado, Rosa, Barreto, Amado, Hilst, Ubaldo Ribeiro, Dalton… perdemos a essência da literatura, golpeada por textos higienizados e um conceitualismo frio, relutante em retratar os picos e vales das interações humanas.

Prêmio Sesc
A insistência na exposição da anatomia narrativa em O avesso da pele tem um propósito: demonstrar que a politização dos temas mascara a falta de conhecimento técnico dos debatedores — e desnecessário dizer do paradigma recente deste fenômeno, quando vacina e ivermectina foram discutidas como se tivessem saído dos livros de Friedman. O que aconteceu com Tenório não foi a primeira nem será a última vez que a cultura é instrumentalizada. E este é o gancho para falar do Prêmio Sesc de Literatura, que também sofreu um revés recentemente. Após a leitura na Flip de um trecho de Outono de carne estranha, romance vencedor de 2023, o alto escalão da entidade decidiu que o tema era inapropriado. Airton Souza, o vencedor, foi tolhido de viajar pelas regionais do Sesc, Henrique Rodrigues, um dos mentores intelectuais do prêmio, foi demitido, e o próprio certame se vê com incertezas: como evitar que “temas delicados” sejam abordados? Estabelecer um júri político coexistindo com a instância julgadora técnica? Delimitar que a obra contemplada só receba a chancela da vitória se concordar em remover os “pontos sensíveis”? Exigir a adesão a um “manual de boas práticas” no edital?

Aqui, falo com a experiência vivida nos dois polos do prêmio. Como vencedor da edição 2012/2013, olho para trás sabendo que meu romance, apesar de não ter palavras de baixo calão ou “temas sensíveis”, seria rejeitado já pelo título: O evangelho segundo Hitler. Hoje está um dia morto, de André de Leones, e Parafilias, de Alexandre Marques Rodrigues, seriam podados pelo conteúdo impróprio. Desesterro, de Sheyla Smanioto, Antes que seque, de Marta Barcellos, Entre as mãos, de Juliana Leite, Mikaia, de Taiane Santis Martins, Última hora, de José Almeida Júnior, seriam barrados por, cada qual a seu modo, entrarem no tal balaio dos “temas sensíveis”. Como jurado da edição de 2021, ao lado da talentosíssima Luci Collin, miro o que está por vir: ao ler os romances da fase final daquele certame, deparei-me com uma miríade de vozes, sotaques, estilos. Distintos no uso (ou não) de palavras de baixo calão, nos véus que acobertavam seus motivos mais íntimos, os originais formavam um corpus único, um Leviatã dentro do Leviatã, um testamento sobre as questões mais prementes de um determinado tempo-espaço.  Um corpo que ainda me assombra.

A obrigação do júri consiste em um infausto trabalho: analisar, no mosaico de vozes, aquela que mais dialoga com o seu tempo, a que mais equilibra forma e conteúdo, procedimento e imaginação, técnica e inventividade. Mesmo munido destas premissas, o júri erra. Tenho, em meu bloco de anotações, os nomes dos originais que li, que ousei apontar vícios e virtudes, que preteri. Torço para que ganhem vida, alcem voo e para que, enfim, a autoria seja desvelada. Imaginei, muitas vezes, o momento: adicionar a pessoa em uma rede social, dizer, olá, você não me conhece, mas, em 2021, li seu original, fui um dos responsáveis pela sua derrota. Este exercício mental funciona (segundo minha terapeuta) como um pedido de desculpas amplo e indeterminado, talvez um gesto inconsciente por não ter sido perspicaz ao identificar os rumos tomados por este corpus literário.

Ao olhar para o passado, vejo como o prêmio alavancou e consolidou carreiras. Juliana Leite venceu o prêmio APCA, Débora Ferraz e Maurício de Almeida, o prêmio São Paulo. Luisa Geisler,  vencedora na categoria Romance e Contos do Sesc, foi inserida na antologia da Granta dos melhores  jovens escritores brasileiros. Rafael Gallo é o atual vencedor do Prêmio Saramago, um dos mais importantes da literatura lusófona. Mas, se houvesse regra conservadora, a história seria outra: um dos contos de Réveillon e outros dias (livro de Gallo, vencedor do Prêmio Sesc 2011) narra a história de um amor não convencional entre mãe e filho. Houvesse um censor com o cálice transbordando de valores cristãos, não existiria a trajetória de uns dos mais promissores escritores desta geração. Gallo perderia, perderíamos Gallo.

Ao olhar o futuro, vejo o uso da citação de Julio Cesar: “um ovo de serpente que, por sua natureza, uma vez chocado se tornará nocivo; razão pela qual deve ser morto ainda na casca”, mas a questão é que não há serpente alguma. Se fossem estudiosos de ovos, os censores seriam péssimos biólogos. Como conservadores, são péssimos na interpretação de texto.  Não faz muito tempo que Roberto Alvim, então no comando da Secretaria especial de Cultura, adotou a retórica de Goebbels para dizer que a arte “será heroica e será nacional (…) ou então não será nada”. Os episódios de O avesso da pele e de Outono de carne estranha são vítimas de um discurso que durou mais que o discursante. Ao impor condições para que a arte seja feita, livros do PNLD serão revistos, originais morrerão antes de nascer: a arte será reduzida a nada.

Marcos Peres

É autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

Rascunho