O pai da menina morta, romance de estreia de Tiago Ferro, propõe desde seu título uma recusa à prosa ensimesmada que move o moinho da ficção de todas as épocas. A essência de sua negação se encontra em Montaigne, autor do mais pessoal dos livros, mas que nunca se faz monólogo, entabulando conversa com o leitor desde o início, ao admitir-se uma perspectiva então inédita e, para tanto, compondo nova forma: o ensaio. Não há dúvidas de que o livro de Ferro é romance, mas o pendor ensaístico que abona toda boa ficção é o baixo contínuo em que se move um trabalho penoso, atravessado por um humor constrito, difícil, mas incontornável, de prospecção da intimidade ruinosa. É, sobretudo, um ensaio de forma.
Como falar de uma experiência tão pessoal sem recair na selva oscura dos lugares-comuns? Primeiro passo, orientação histórica:
Depois de Freud o mundo passou a ser medido a partir do umbigo de cada um. Há quem diga que por isso não surgiu um Shakespeare na modernidade. As pessoas da época do bardo se entendiam observando o olhar do Outro. Jamais um poor bastard daqueles pensava em mergulhos introspectivos.
O mergulho introspectivo inevitável do livro é, também, o encontro consigo mesmo como outro.
Cabe explicar a primeira asserção: Tiago Ferro, pessoa física, é, de fato, o pai de uma menina que, aos 8 anos, morreu. A escolha do título, mais do que assumir o inevitável, aponta para outra direção: a do nascimento do autor, do romancista Tiago Ferro: “Eu não sabia que era capaz de escrever”. Tomado como antonomásia, o título caberia em um antigo manual de literatura brasileira referindo-se a Cornélio Penna, autor de um vasto e pouco lido romance, A menina morta (1954). Assim, a própria capa, que ostenta o nome do autor no canto superior esquerdo e o título centralizado levemente à direita, cria um paradoxo semiótico. De alto a baixo, inscrito em vermelho, no fundo, em queda livre, reaparece o título. Tiago, como autor, é, também, O Pai da Menina Morta.
A piscadela para a tradição não implica tanto o intertexto direto, embora seja possível localizar leves semelhanças com o romance de Penna, como a da morte inexplicável de uma menina a partir da qual se narra uma complexa trama de dissolução familiar e social. Quando tratara do assunto poucos meses após o fato, em texto na Piauí, a opção vocabular de Tiago era diversa, menos assertiva. Era, ainda, trabalho de luto in progress. Ao retrabalhar a experiência não tanto como relato, mas, sim, forma, a precisão do termo, sem esmaecimentos sintáticos, emerge com força: “Morta”. De Cornélio Penna, conservemos, ainda, a preciosa advertência — e também justificativa de seu modo esguio de sociabilidade literária — contra a sarna biográfica, que muitas vezes se projeta sobre o que deve realmente permanecer: “Tudo que deve persistir deles [dos autores], em minha opinião, é somente sua obra de ficção. Viverá só em seus personagens. Como disse em um artigo que escrevi há muitos anos, deixemos apodrecer em paz os corpos dos nossos autores”. Mas ao Pai da Menina Morta não é lícito apodrecer em paz.
Em um livro que não aceita complacentemente a ideia de autoficção, uma importante cadeia imagética que o atravessa é a da vida como filme, espaço liminar entre sonho e realidade, dimensões precípuas na construção do romance. Desde o parágrafo inicial, o narrador diz que, ao invés de se preocupar com o figurino cotidiano, “Prefiro me concentrar no roteiro”. As indicações não param, do filme de Godard que foi ver com a namorada quando falam sobre ter filhos (e que serve, em sua descontinuidade, como palimpsesto do diário em ruínas cujas entradas compõem o romance) à elucubração curiosa passada em um posto de gasolina de um filme de David Lynch em El Paso, afetando, inclusive, a própria mirada diária do narrador: “vejo a cena desse pai com distanciamento. Perdoar. Como quem assiste a um filme.”. No limite, a instância projetiva do filme emerge quase como esboço possível de um modus vivendi:
E se sonho e realidade forem categorias falsas para nos distrair da verdade de que a vida é apenas uma gravação? Um roteiro definido, ensaiado e gravado há muito tempo. E que nós, numa certa condição incompreensível, somos atores e espectadores ao mesmo tempo. Como espectadores não podemos alterar o filme, o roteiro já foi decorado e a película está pronta. Mas na dobra do ator queremos acreditar que é possível interferir, agir, mudar as coisas. Bastaria bater palmas duas vezes e dizer pronto, agora acorda.
Contígua à camada fílmica, há uma ambiência Calderônica, da vida que é sonho e do sonho que é vida (“pues estamos/ em mundo tan singlular,/ que el vivir sólo es soñar;/ y la experiência me enseña/ que el hombre que vive sueña/ lo que es, hasta despertar”), pois os personagens que rodeiam o narrador, tendo nomes ou não, estão antes a cumprir papéis aos quais se acoplam do que a existir livremente. Mais do que isso, a percepção do narrador sobre o caráter sistêmico dessa ambiência torna impossível o seu enraizamento em qualquer um dos lugares de repouso que o luto geralmente aporta: yoga, psicanálise, sexo, amizade e, em certa medida, até a propalada dimensão curativa da escrita. Profeta proscrito (“O Pai leproso. A maioria das pessoas não quer chegar perto”), que traz em si a chaga do inominável (“qualquer gesto meu é superinterpretado num nível de paranoia e exegese”); sobrevivente a que se contempla com gozo quase sádico (“é desagradável, mas irresistível, olhar a carne exposta”), como o fruir de um filme de guerra, comentado na fila do pão de queijo: o seu eterno vaguear, refratado em uma forma de busca sem repouso, tem como horizonte o reconectar-se ao frágil veio sulcado da vida.
Dar forma à dor
Um dos meios pelos quais o romance esboça tais tentativas é pela projeção de alteridades marcadas pelo lastro comum da perda. Pais órfãos de filhos tornam-se, por agudos instantes, personagens a que a voz narrativa flagra no palco, em meio à elaboração possível do luto. Drummond, vulgo Carlos, “tenta esquecer da dor lembrando de cada um de seus poemas”; Eric Clapton, com os dedos a doer no deslizar das cordas, “só encontra paz no sono”; Gilberto Gil retira “o filho dos escombros do acidente”; Charles Darwin insiste em sua “ficção do reino animal” não para desbancar Deus, mas para encontrá-lo; John Travolta é homem para quem “já é tarde demais para desistir da cientologia”; quem sabe até Keanu Reeves, com a vida atravessada pela perda de um amigo próximo, da filha natimorta e da ex-namorada, implicado obliquamente pelas referências a seu filme icônico, em que os ferimentos virtuais também laceram o corpo físico. Comum a todos, a necessidade de prosseguir, de “dar forma à dor”, de continuar tocando, compondo, escrevendo, pois “O mundo está ali como sempre esteve e cada um vai dar a ele a forma que puder”.
A intromissão de listas (de supermercado, das melhores músicas em língua inglesa, da variação dos graus da febre) em meio às entradas mais narrativas parece, num primeiro momento, apontar para um desejo de coesão organizativa, de limar os conectivos que fazem a linguagem o que ela é, que hierarquizam, acoplam, traem e segregam os nomes, de olho naquilo o que sobra, resta: o núcleo duro da vida. Mas o resultado é inevitavelmente subvertido, seja pela própria urgência narrativa que rebenta ou pelo disparatado das conexões que prescindem da sintaxe ostensiva — efeito da melhor poesia.
Gesto análogo vê-se na presença de entradas de verbetes de dicionário, em que o retorno à pureza do vocábulo é golpeado dramaticamente pela necessidade de um léxico particular. Tais conexões, em verdade, são parte da espinha do livro, em que a decepção por uma coxinha sem catupiry estilhaça o nexo sujeito-objeto, expõe a falácia da dimensão temporal e conclui com um paralelismo gritante: “Não tem nada mais triste do que bufê de padaria na hora do jantar. Não há nada mais absurdo do que continuar escrevendo na fila da câmara de gás”.
O que temos em mãos é um diário ruinoso: coletam-se laivos e lascas de tempos, lugares, gêneros e instâncias desconformes, a que o diário acopla, mas não necessariamente organiza. Há em certos narradores a pretensão de falar de uma zona morta, sem contato com a vida, como que pairando acima dela. O narrador deste romance rejeita o não lugar que o luto quer lhe impor (“O Pai da Menina Morta será sempre inadequado. Em todos os lugares”); mais do que isso, rejeita a dinâmica coercitiva da escrita como ordenação da vida. O tocar as vísceras do real, algo que só grandes autores conseguem, é não um alçar-se acima dela, mas tornar a escrita seu ato contínuo, daí o gesto interrompido de leitura de O brilho do bronze, de Boris Fausto: “As entranhas do autor não estão ali. Eu sei disso. Ele nunca sonhou com lobos”. Por fim, cabe à voz narrativa a suspeição sobre seus próprios passos, pondo em cheque o veio curativo do ato de escrever, tanto por sua eficácia real quanto por subjugar a escrita a meio de alcançar uma outra coisa: “Escrever me cura/ Estou sendo honesto?”.
Sem resposta precisa para nenhuma das infindáveis perguntas que profusamente formula, o narrador inscreve-se nas dobras da autoria, espaço de ação limitada mas possível: “Nós também somos feitos de espaços em branco […] Eu sinto profundamente cada um desses espaços. São abismos internos. É preciso cuidado para não se perder”. Aos poucos, o que emerge da descontinuidade é a figura de um autor, o “Autor Destes Fragmentos”: não é Bataille, não é nem será romancista, pois “não consegue escrever mais do que parágrafos curtos e desconexos” e “realmente não é capaz de narrar com realismo uma cena longa”. Mas será lido, porque as pessoas “nunca foram a uma noite de autógrafos de um autor morto”. Entre estes espaços, que podem ou não ser preenchidos, está o que separa narrador-autor e leitor: “A linguagem é uma cilada”. Mas é por ela que o narrador grunhe, pedindo a Deus por uma forma, “um contorno reconhecível”. Este contorno é o livro de que ele, narrador, é o pai. Se não puder finalizá-lo, clama, abrindo mão da paternidade, a quem lhe der ouvidos: “por favor revisa, mexe no que for preciso, eu confio, dedica para a Minha Filha, e publica como seu”.
A menção a Hermann Kafka, outro pai tornado órfão e destinatário de uma das mais famosas cartas não entregues da história, incita-nos a pensar o romance como Carta à filha, mas não é o caso. Trata-se, antes, de carta do remetente “Eu não quero ser O Pai da Menina Morta” para o destinatário “Eu sempre serei O Pai da Menina Morta”. Entre tais polos, a forma explode. E o livro, enfim, é dedicado não à filha, mas “Aos que restaram”.
Numa conjunção poderosa de imagens que cabe ao leitor atrelar, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, primeiro homem a escapar da Matrix, vê a Terra do vácuo espacial (e ela não é plana). Uma vez vislumbrado o que não cabia a humanos olhos, mas só a ele, o escolhido, eis a dúvida (marca precípua do ensaísmo): “Resume playing. Start from beginning”. A forma do livro, em grande medida, toma para si a difícil missão de, a cada passo, lista, pergunta, verbete, carta, fragmento, e-mail, nota, delírio, esboço, grito, repor a tensão entre tais instâncias — eliminar o mundo ou reordená-lo? —, compondo, em verdade, um “desorganismo”, que como a Menina-Deus do excerto final, encara o leitor de frente, “Piscando, envolvendo tudo, ganhando e perdendo forma sem parar”. E isso não é pouco.