Morte num Ano de Sombra — biografia de T. E. Lawrence que a Record lançou em abril deste ano — tem feito chegar, desde então, ao autor e à editora, cartas e perguntas de leitores interessados em obter maiores esclarecimentos sobre a tese do assassinato de “Lawrence da Arábia”. A editora lançou, logo em seguida, a magnífica tradução (1938) de Os Sete Pilares da Sabedoria, e a biografia se manteve, de julho a setembro, no topo do Fórum de Debates da Revista BRAVO, com o maior número de intervenções anotadas.
Lawrence foi assassinado? Pelo próprio serviço secreto do seu país?? Por qual motivo???
Minha intenção, aqui, é responder a tais questões de um modo mais claro do que no livro (onde o assunto é tratado da forma alusiva que cabia — num projeto de biografia mental antes de mais nada). De qualquer modo, fiquei surpreso com a quantidade de pessoas para as quais o assassinato de Thomas Edward Lawrence soa como uma completa novidade, sessenta e cinco anos depois do suposto “acidente” de moto cujo mistério começou a ser desvendado, há mais de três décadas, como a bem planejada eliminação de um herói muito incômodo, “voando” na sua moto, de Dorset talvez para Berlim daqueles anos de sombra.
Nesta última semana de outubro (participando de um debate na II Feira Nacional do Livro do Rio Grande do Norte), pude aquilatar o quanto a versão, oficial, da manobra fatal de Lawrence — para evitar o choque com dois ciclistas que também faziam a curva, em sentido contrário — se incrustou na mente de todos, talvez com a ajuda do grandioso filme Lawrence of Arabia (1962), o qual começa com a sequência do “acidente”, filmada de modo totalmente crédulo por Sir David Lean. Na cena, não aparece, naturalmente, o furgão preto visto por Ernest Catchpole, quando o cabo do Royal Army Ordnance Corps, quando ele olhava na direção da estrada, a uma distância de noventa metros da curva, momentos antes de ouvir o estrondo do choque — e aparecerem os dois ciclistas “sãos e salvos”, plantados na beira do caminho do desastre. Nessa altura, Lawrence deveria estar morto, ou nos estertores, lançado da moto abalroada para o céu chuvoso, na curva dos 47 anos incompletos, muito longe dos desertos da sua juventude (baseei meu livro nessa fração de tempo e no “retrospecto brutal” que, dizem, ela provoca).
O rebelde do Hedjaz, o Hamlet que se perguntava, a toda hora, pelo sentido de uma existência (traída pelas “criaturinhas a construir abrigos” na sombra poluta da dádiva, duvidosa, da vida etc), entretanto sobreviveria, por seis dias ainda, aos terríveis ferimentos no corpo já calejado, para espanto dos médicos que o receberam no hospital militar de Bovington. Em face disso é que o serviço secreto britânico deslocaria dois agentes para permanecerem, vinte e quatro horas, à cabeceira e à porta do quarto do paciente resistentemente incômodo — enquanto a sua casa passava a ser “guardada” pela polícia e por agentes que controlavam todos os acessos à Clouds Hill… até se dar o óbito esperado, precisamente às oito horas e quinze minutos da manhã de 19 de maio de 1935.
Lawrence estava morto, afinal. As nuvens se adensavam lá fora (e em toda a Europa — (desde a ascensão de Hitler ao poder, dois anos antes), mas aquele excelente soldado, que se tornara uma lenda viva, já não corria o risco de sucumbir à corte da direita inglesa, que o vinha assediando. Instruídos por Berlim, os fascistas britânicos haviam identificado, no herói da Arábia, um herói magoado — e há tempo que trabalhavam numa aproximação de Clouds Hill pelo caminho mais curto, naquela quadra da vida do seu proprietário: o velho trilho da independência irlandesa, aspiração que nele despertara, lentamente, na sequência das decepções políticas com o desfecho da Rebelião Árabe.
Todos sabem que T. E. Lawrence prometera, no deserto, mais do que poderia, como tenente temerário, não hesitando em “avalizar” a palavra do rei da Inglaterra — por sobre as falsas promessas políticas feitas à família real hachemita e seus seguidores.
Em meados de 30, Prestes a ser desmobilizado, Lawrence se preocupava com o que iria fazer da vida, após atingir a idade limite para permanecer como recruta (ele que alcançara a patente de coronel, na saga à frente das tribos beduínas). Sabe-se que acalentava a idéia de escrever uma biografia do líder nacionalista irlandês Roger Casement — executado por traição, em 1916 — e que mantinha contatos com Cliveden, Mosley e outras figuras do fascismo inglês, insistentes na tentativa de aproximação daquele espírito “disponível” no seu refúgio de Dorset. Diga-se, de passagem, que a facção socialista — na pessoa de Ernest Thurtle — também já fizera suas tentativas, e que tais manobras, de uns e de outros, eram perfeitamente identificadas pelo autor de Seven Pillars of Wisdom. “Os trabalhistas julgam-me um espião imperialista e os conservadores consideram-me um bolchevista…” — ele escreve, numa carta a John Buchan, em 1931.
Tanto para um lado quanto para o outro, a política de segurança inglesa certamente não quis arriscar com qualquer possível tendência do herói apto e desocupado — e sem dúvida que alguma sentença não escrita se pôs em marcha, no sentido de cortar o mal pela raiz, naquele caso, naquela estrada, naquele ano de sombra de 1935.