Caso você pense que Crônica da estação das chuvas é mais um livro a retratar a vida das gueixas, é bom puxar o freio, açodado leitor. É um pouco disso e mais, muito mais. Também não vamos nos deixar levar pelas veredas da ingenuidade e negar que a literatura japonesa tem gigantesca obsessão pelo tema, o que me traz tédio, imenso tédio. E, quando um suposto exotismo vira tédio, convenhamos, está na hora de trocar de canal. Mas, como falei, Crônica da estação das chuvas extrapola esse universo e traz mistério, melancolia e solidão à miserável condição humana nua e crua, tudo isso envolto no mais delicado dos papéis de presente: a sensibilidade de um grande escritor.
A orelha do livro avisa ao leitor que ele encontrará um panorama da vida noturna da cidade de Tóquio no início do século 20. Mas o que vem a ser vida noturna? Bares? Boates? Luminosos? Neons? Isso como moldura; no centro, o ser humano e sua eterna solidão. Para combatê-la, por vezes ele assume um papel ridículo, de caricatura sem graça. Vida diurna e vida noturna não são nada extraindo-se o ser humano. Então, coloquem-se, nas sombras da noite, homens, velhos, gueixas e prostitutas. Tema: amor e sexo. Alguma novidade?
O livro de Nagai Kafu tem elementos do romance policial e tem um quê de kafkiano, o que me leva a um impasse. Não sei se grande parte dos escritores japoneses tem uma pontinha de Kafka ou se este extraiu alguns elementos da literatura japonesa para criar sua obra magistral. Aproveito para recomendar a leitura de Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami. Aqui, a razão de viver de uma das personagens é procurar gatos desaparecidos, uma prostituta cita Hegel e chovem peixes.
Alguns pontos unem Crônica da estação das chuvas e Kafka à beira-mar. No romance de Kafu, Kimie sai de casa para fugir de um casamento que seus pais, assim como os parentes, tentavam forçá-la a aceitar. Vai trabalhar como gueixa em Ushigome e, em menos de um ano, arranja um patrão e se estabelece como sua amante. Murakami, por sua vez, apresenta Kafka Tamura, um solitário adolescente que decide fugir da casa do pai para escapar de uma profecia, além de partir em busca da mãe e da irmã que se foram quando ainda era criança. Nessa caminhada, Kafka encontrará Satoru Nakata, um idoso detentor de poderes sobrenaturais. Kafu e Murakami trabalham com personagens marginais. Em Murakami, o inusitado se apresenta em profusão; Kafu, muito pelo contrário, é francês ao extremo.
Os dois se assemelham em alguns aspectos, embora se distanciem num fundamental. Nos livros de Murakami, o leitor encontrará surpresas e mais surpresas. Kafu, embora mais poético e de rara precisão estética, não foge à previsibilidade. Não acontece muita coisa em Crônica da estação das chuvas — talvez aí o ônus da influência do naturalismo francês. Kafu aproximou perigosamente da vida a sua ficção. E a vida não tem muita graça. Feito o mais que providencial parêntese, sigamos.
Personagem rasa
A vida dos personagens de Crônica da estação das chuvas não tem nada de exótico. Louvável é a delicadeza com que aborda o universo das gueixas. Noves fora, ele descreve o modo de vida de pessoas comuns e seus sentimentos. Com um agravante, insisto: a velhice. A velhice, o ensaio para o patético, que transforma tudo em prioridade, inclusive a dedicação de uma gueixa, de uma prostituta.
Embora trate da vida das gueixas, a trama de Kafu extrapola o universo japonês, talvez a grande diferença dele para Kawabata que prefere temas quase que exclusivamente japoneses.
Em Crônica da estação das chuvas, o egoísmo, o ciúme, do jeito japonês, se é que me faço entender, dão a tônica da narrativa. Há um esboço de mistério. Primeiro, Kimie tem a manga de seu quimono cortada quando voltava para casa em companhia de amigas. A seguir, tem um pente de tartaruga incrustado de pérolas arrancado de seu penteado sem que ela percebesse. Tem mais: um filhote morto de gato é jogado dentro do guarda-roupa do quarto alugado onde morava. E ainda não acabou. Kimie lê num tablóide um artigo onde sua intimidade é escancarada. Faz menção a um determinado sinal em parte de sua anatomia que não costuma ficar exposta. Esses fatos a levam a procurar um vidente.
Quando se chega a esse ponto, resta pouco, quase nada.
Nasce daí o paradoxo: como uma personagem tão rasa consegue gerar uma série de complexidades? E, por falar em personagens rasos, não pense, atento leitor, que esse rótulo cabe apenas a Kimie. Mesmo assim, Kafu consegue prender o leitor. Credito essa solidariedade à melancolia que emana unanimemente do elenco de personagens. O leitor perceberá uma certa lealdade do autor às suas personagens, quase todas vitimadas por um complexo de inferioridade. Seja a gueixa em sua permanente marginalidade, seja o velho abandonado pela mulher, seja o bailarino rejeitado, todos estão unidos sob o véu da humilhação. No entanto, o autor não os joga à execração do leitor, não elege vilões tampouco destaca heróis. Todos chafurdam na lama paralisante de existências comuns, sem propósitos, sem amor.
Após o embarque da mulher, o marido estabelece um diálogo com o jovem Muraoka.
— Aqui terminou mais um capítulo na vida de Tsuruko — disse Susumu, enquanto jogava seu charuto consumido pela metade na direção dos trilhos.
— Ela não vai voltar depois de seis meses?
— Ela deve voltar um dia. Mas provavelmente nunca mais para minha casa.
— Sensei, eu também tive essa impressão.Foi uma espécie de sexto sentido.
— Ei, Muraoka.Por que você não se tornou amante dela? Eu sempre soube.Ela procurava por alguém como você, um jovem sentimental de coração puro.
Patético. O marido já não dava importância à mulher, esta recebe uma proposta para trabalhar na França e aceita. A delicadeza com que Kafu mostra a humilhação contida do marido é um dos pontos altos do livro. É isso: um escritor delicado, sutil, um gentleman, inclusive no trato com seres frios, dissimulados e traidores.
O ourives da obviedade
Nagai Kafu ensaia suas cenas, pena que muitas não ultrapassem as raias do simples ensaio. É o que se pode notar no aparente mistério apresentado logo no início da trama. Este leva o leitor a criar uma atmosfera policial. No entanto, ela se dissipará tão logo crie uma intimidade com o enredo, e o desfecho é prontamente antevisto pelo leitor atento. Kafu é o ourives da obviedade, não há originalidade no seu enfoque. O arauto da tradição, o naturalista francês, se é que você me entende, paciente leitor.
Kafu não é um romancista moderno, não se percebe nele a menor intenção de transcender os limites de sua aldeia, não aborda conflitos psicológicos ou questões sociais. Contudo, consegue estabelecer uma tênue tensão no modo de viver japonês, e fez desse veio o sustentáculo de sua obra. Ao descrever o ambiente, Kafu por vezes exagera. São tantos elementos que chega a ser constrangedor. Para apresentar um caminho ele utiliza: De um lado, castanheiros, damasqueiros… De outro, uma alameda formada por touceiras de bambus… Dos troncos mais antigos, via-se um movimento contínuo… O intenso aroma das flores dos castanheiros… As folhas mais novas do pé de damasco… Filtrados pelas copas das árvores, os raios de sol… O sussurrar da brisa… O gorjear de um pássaro... Ufa!
Não há muitas possibilidades de mudança na narrativa de Kafu. Determinismo, é claro que você sabe do que estou falando, arguto leitor. A hereditariedade e o ambiente determinam o ser humano. Crônica da estação das chuvas é a comprovação dessa teoria. Por isso, se for necessário escolher, fico com Murakami.