É um absurdo, ou simplesmente comodidade de uma formação classe média e capenga, acharmos que apenas pessoas graduadas detêm o conhecimento e têm algo a ensinar sobre a vida. A literatura é, em época de alta velocidade e tempo escasso, um dos poucos refúgios para o crescimento do ser humano fora dos padrões de educação tantas vezes excludentes, que visam ao lucro antes de tudo, como os cursos de inglês que pontuam cada esquina, cursos de reciclagem para o mercado de trabalho etc.
O que dizer das várias portas que nos abre o simples Decálogo do contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), em que, entre outros conselhos para os companheiros de profissão, ele diz: “Pegue seus personagens pelas mãos e conduza-os firmemente até o final…”. Essa frase revela a principal habilidade desse escritor, como artífice de personagens densos, dentro de enredos que entrelaçam seu imaginário a uma escrita depurada.
Em Contos de amor, de loucura e de morte, publicado pela primeira vez em 1916, os quinze contos e suas diversas experimentações parecem até uma coletânea dessas em que o escritor já tem idade avançada e pretende fazer uma reavaliação da sua obra. Falsa impressão que causam essas narrativas, trabalhadas em um mesmo período, que perpassam desde o olhar fotográfico sobre homens que vivem à beira do rio Paraná, em Misiones, na Argentina, ao fantástico de um animal que vampiriza uma pessoa escondido dentro do travesseiro.
Apegar-se aos personagens é algo que Quiroga cobra de seus leitores para esse passeio pelos três imponderáveis que o título já anuncia: amor, loucura e morte. Quem já teve a oportunidade de ler o contista Newton Sampaio (1913-38), autor paranaense de morte precoce que deixou livros como Irmandade e Contos do sertão paranaense (Imprensa Oficial do Paraná, 2001) percebe uma semelhança: essa rota é pura armadilha, uma estrada que leva o leitor (já metamorfoseado em personagem) de cara contra um muro.
Ou de cara contra o susto, o trágico, os assaltos repentinos de que a vida é feita. O conto A Morte de Isolda é narrado por meio da consciência de um homem, que assiste à peça Tristão e Isolda, e súbito vê, sentada no camarote, uma mulher com quem quase se casou, mas um capricho o fez desistir e, mais tarde, arrepender-se. Ali, contemplando a moça, e em outros textos, como Uma Estação de Amor, Os Mensá e Yaguaí, os personagens de Quiroga estão acossados pelo tempo e seu retorno, como uma maré que avança, mas reflui.
A criação de situações de loucura, e desespero frente ao nada que é a morte, do conto A Galinha Degolada, que narra a vida de um jovem casal alimentado pelo sonho de constituir família e filhos (no entanto gera apenas crianças autistas) bastaria para machucar estômagos fracos. Mas a sonda do uruguaio busca reentrâncias, camadas mais escondidas.
A história, em si, não garante o contista. O que paga a leitura desse uruguaio é a sua busca pelo diferente, pelo universo do outro, a capacidade de mergulhar em algo que não lhe pertence. Em Os Barcos Suicidas, o narrador é tripulante de um navio e ouve sobre um misterioso fato: marinheiros que se atiram ao mar, sem motivo aparente. Ou ainda, narrativas como Os Mensá, sobre dois peões a serviço de uma madeireira exploradora, dão a idéia de que Quiroga, refugiado na cidade de Misiones, era um estrangeiro em busca de tinta para sua caneta de inventor.
Além do último conto A Meningite e sua Sombra, em que o nervo da angústia é amolado até o limite, destacam-se aquelas narrativas que criam o ponto de vista dos animais. Um mestre seu, Jack London, foi o criador de Buck, Caninos Brancos, e outros cães metáforas da condição humana de adaptação e luta a todo momento. Os fox-terriers de Quiroga, da mesma forma, são estranhos à paisagem, pagam o preço de viver em uma região de caça pesada, tendo sido criados para as caças de divertimento da aristocracia.
No caderno Mais!, da Folha de São Paulo, mês passado, o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, no ensaio Uma História do Conto, ao fazer um roteiro de influências dentro do conto mundial e americano, diz o seguinte sobre Quiroga: “Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe”.
Antes disso, o cubano referiu-se à vida conturbada de Quiroga, repleta de fatalidades que culminaram no seu suicídio, no que, para ele, “parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção”. Desse ponto de vista, Contos de amor… realmente tange a biografia de Quiroga de uma maneira, usando um termo da moda, subliminar. Eu, no final das contas, fico com a ficção.
Por mais que a universalidade seja exigência para um bom escritor, a proximidade geográfica provoca uma identificação com a literatura de Quiroga. Trata-se de um cenário próximo da fronteira com o Brasil, diferente daqueles gélidos de London e de Tchekov. Afogados nesse oceano de informações, barulhos e compromissos diários, olhar a espécie humana em confronto consigo e — não temos mais isso — com a natureza de rios e animais, é um exercício que não consta nas lições das grandes metrópoles.
Decálogo do Contista
por Horacio Quiroga
I- Creia em um mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov — como em Deus.
II- Creia que sua arte é uma montanha inacessível. Não sonhe em dominá-la. Quando puderes fazê-lo, só tu saberás.
III- Resista o quanto puderes à imitação, mas imite se a tentação for muito forte. Mais que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da personalidade exige paciência.
IV- Tenha fé cega não na sua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ame a sua arte como a sua mulher, dando-lhe seu coração.
V- Não comece a escrever sem saber aonde ir. Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas.
VI- Se quiseres expressar com exatidão esse fato: “Um vento frio soprava do rio”, não há na linguagem humana palavras mais exatas que essas. Seja dono de suas palavras, sem te preocupares com tuas dissonâncias.
VII- Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão as camadas de cor adicionadas a um substantivo fraco. Se fizeres o que for preciso, ele terá, por si só, um colorido incomparável. Mas terás que buscá-lo.
VIII- Pegue seus personagens pelas mãos e conduza-os firmemente até o final, sem deixar que nada o desvie do caminho traçado. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de resíduos. Tenha isso como verdade absoluta, mesmo que não seja.
IX- Não escreva sob emoção. Deixe-a morrer, e depois a evoque. Se fores capaz de revivê-la, terás chegado à metade do caminho.
X- Não pense em seus amigos ao escrever, nem nas reações a sua história. Pense como se seu relato só interessasse a seus personagens, e você fosse um deles. Não se dá vida a um conto de outro modo.