O totalitarismo é um fantasma vivo, uma sombra constante na Europa e na América do Sul. A atual onda de radicalismo e de ascensão da extrema direita se apresentou como movimentos identitários, nacionalistas e até mesmo de libertação para, orquestradamente, se transformar em farsa e tragédia — dois elementos da sintaxe da violência. Para entender o novo milênio — que na verdade já parece envelhecido e cansado — é preciso voltar ao começo do século 20, quando o nazifascismo surgiu.
Em A fita branca, Michael Haneke, cineasta austríaco, conseguiu retratar muito bem o período que antecedeu o Terceiro Reich e o descalabro emocional daqueles que se tornariam a juventude hitlerista dali a pouco. O filme, que chegou a concorrer ao Oscar de melhor longa internacional, é a síntese do absurdo e do abandono, da construção de um universo de pavor e repressão — tudo isso com a sutileza de uma narrativa direta, seguindo com perfeição os passos já caminhados por Kafka.
Outro discípulo do escritor tcheco, o português Gonçalo M. Tavares, também soube distender o tempo para voltar a um dos períodos mais perversos da civilização moderna. Em O diabo, que encerra — ao menos até o momento — a série Mitologias (composta também por A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado e Cinco meninos, cinco ratos), Tavares retorna a um de seus universos mais absurdos e alegóricos para perseguir as pegadas do Mal. Em nenhum dos livros da trilogia sabemos ao certo em que tempo estamos; ainda assim, é possível entender que os personagens vivem uma época de total violência e desastre moral e econômico — sempre por meio de uma linguagem carregada de metáforas e alegorias.
Uma das cenas mais tocantes e incômodas do tríptico está no primeiro livro, A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado: a mulher, que teve a cabeça arrancada pelo marido, precisa procurá-la e pede ajuda dos filhos. Esse estranhamento percorre a maioria dos livros do autor — veja-se a pentalogia O reino (ainda incompleta no Brasil), a série O bairro, o romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai ou os contos de Short movies. Trata-se da chave para penetrar na obra de Tavares, que reúne cerca de quarenta livros, muitos deles inclassificáveis, mas de uma genialidade rara.
O diabo está nos detalhes
O diabo é um desses livros que não se encaixam em rótulos convencionais. Quando o tinhoso ronda a casa dos cinco irmãos — Olga, Alexandre, Maria, Tatiana e Anastácia —, percebemos que o mundo está em colapso. Não apenas porque as trevas invadiram a Terra, mas porque testemunhamos o desmoronamento de todas as convicções humanas. Não espanta, portanto, que logo na abertura, ao receberem a visita inesperada, cada um reaja de modo diferente: há quem aceite como gesto de carinho, há quem queira matá-lo. O apocalipse, como se vê, é logo ali.
Tavares segue a linha de Walter Benjamin e investiga o mal do mundo a partir do olhar das crianças. Para o pensador alemão, a infância sempre foi fundamental para compreender a consciência do adulto, com seus traumas e as belezas que acabam ficando para trás. É o mesmo universo que, além de Haneke, o cineasta húngaro Béla Tarr explorou em O cavalo de Turim e Satantango: um mundo esquálido e opressor, em que os sentidos — metafóricos, morais e sensoriais — são esvaziados diante de uma pragmática abusiva. É impossível — ou inevitável — não pensar nos rumos tomados pelos Estados Unidos com a reeleição de Donald Trump. O ar distópico é o mesmo: uma teocracia sufocante e obscurantista. O que resta, portanto, é o desejo imenso de isolamento e deslocamento, as duas únicas alternativas para quem não suporta viver num estado de exceção.
A diferença entre Tavares, Haneke e Tarr está justamente no que mais une o português ao tcheco: o humor. Da sintaxe quase parabólica de O diabo às situações narradas, a obra é um aceno sarcástico ao absurdo. Se os livros da série O bairro tinham comicidade na caricatura de seus personagens — escritores como Karl Kraus, André Breton, Robert Walser, Paul Valéry e Brecht —, as Mitologias caminham para o oposto: a barbárie, a banalidade do mal.
Na prática, o que se constrói é uma narrativa insolente de tão inteligente, que retrata em sua linguagem o caos:
Alexandre espreita pela janela, mas já não vê o diabo. Onde está ele?
Alexandre corre todas as janelas da casa, olha em todas as direções e nada: não se vê o diabo.
Olga saiu do esconderijo e está ao lado de Alexandre, quer ajudá-lo.
Maria, Tatiana e a Boneca, Anastácia: todas estão ainda debaixo da cama; têm medo.
Alexandre espreita por uma janela, Olga por outra.
É Olga, que é tão esperta, é Olga quem o vê: o diabo.
Está sem cabeça, grita Olga.
Está sem cabeça, grita Alexandre.
E por falar no conceito de Hannah Arendt, o que se percebe em O diabo é exatamente a burocracia e as engrenagens do Estado esmagando o povo. Na era da pós-verdade, só restam os escombros das democracias, fragilizadas por fissuras sociais e morais sucessivas. A obra de Tavares oscila entre dois polos: o passado (o fascismo e o Estado engendrado para o massacre) e a pós-verdade (a maquiagem de uma liberdade soterrada por um novo totalitarismo, desta vez digital e hiperconectado).
Explorador de abismos
Apesar de toda a tragédia narrada em O diabo, a obra é magistral pela linguagem e pela potência figurativa — dois elementos que parecem se perder no abismo da ignorância alimentada tanto pela inteligência artificial quanto pelo algoritmo. A escrita é resistência diante da tirania de um mundo imbecilizado, em que os erros do passado, antes fossilizados, retornam à vida.
Ao mesmo tempo, toda a dor narrada carrega uma poética de imensidão. Quando Baudelaire retratou a modernidade em seu Spleen de Paris, seus personagens caminhavam por uma cidade de luzes e belezas que ocultavam o mal, mas criavam também as sombras: se existe claridade, há também trevas. Os personagens de O diabo também são caminhantes, mas na escuridão, entre ruínas e descalabros. Vivem no oposto da modernidade parisiense: os escombros de uma sociedade em colapso — algo tão bem avivado pelo escritor em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai.
Como Sebald, Gonçalo M. Tavares explora os abismos — assim como diria Vila-Matas — e busca nessas ranhuras a matéria-prima para uma das obras mais inventivas e perturbadoras da literatura do século 21. Ao ler e interpretar o terceiro milênio, O diabo se revela um manual de sobrevivência para tempos de esgotamento e destruição de identidades.