As mudanças políticas da história brasileira assemelham-se em alguns pontos: começam de maneira histriônica, assumem caráter fantasioso, jamais realizam o prometido e… enriquecem seus protagonistas. Apresentado desta forma, tal conjunto parece uma generalização espúria, mas o leitor apartidário sabe que ele guarda certo fundo de verdade. E de 1889 até hoje, em nosso complexo período republicano, deve-se adicionar a essas características uma recalcitrante tentação ditatorial.
A república, aliás, nasce sob o signo da ditadura: da “proclamação” de 15 de novembro — eufemismo típico da nossa nomenclatura histórica, que substitui, neste caso, a palavra “golpe” — à constituição promulgada em fevereiro de 1891, realiza-se uma única eleição, para escolher os membros da assembléia constituinte, pleito que as oligarquias dos estados manipulam e cujos resultados as chamadas mesas eleitorais falsificam. O país teria novas eleições, igualmente manipuladas, apenas em 1º de março de 1894, quando é escolhido para a presidência Prudente de Morais. Até sua posse, em novembro do mesmo ano, a balbúrdia se instala: Deodoro da Fonseca comanda o governo provisório; a seguir, é nomeado presidente pela assembléia constituinte; fecha o congresso meses depois; finalmente, entre golpes e contragolpes, renuncia em favor de seu vice, Floriano Peixoto. Este apenas dá continuidade à ditadura, chegando a depor governadores estaduais, às vezes com uso da força. A Revolução Federalista — na verdade, uma guerra civil — começa em fevereiro de 1893; em setembro do mesmo ano, com a Revolta da Armada, o exército se divide. Apesar da crise disseminada por todo o país, parcela dos militares não quer eleições, mas Floriano, que depende do apoio dos paulistas, vê-se obrigado a convocar o pleito que elegerá Prudente de Morais. A guerra civil só terminaria em 1895.
Durante os primeiros meses da república, entre novembro de 1889 e junho de 1890, um brasileiro residente na Europa escreve, utilizando o pseudônimo de Frederico de S., seis longos ensaios sobre o golpe militar e seus desdobramentos. Publicados na Revista de Portugal, que pertencia a seu amigo íntimo, o escritor Eça de Queirós, os textos, reunidos sob o título de Fastos da ditadura militar no Brasil, são paradigmas do melhor publicismo, análise cética, arguta e irônica da ditadura que transformou o país politicamente estável numa farsa cujos principais personagens — exatamente como nos dias de hoje — são a demagogia, o empreguismo e a corrupção.
Sob a assinatura de Frederico de S. escrevia o fazendeiro, empresário, banqueiro e bon vivant Eduardo Paulo da Silva Prado, que inspirou a Eça de Queirós o personagem Jacinto, de A cidade e as serras. Poucos conseguiram ser panfletários tão geniais como ele — um “reacionário magnífico”, afirmou Wilson Martins. O curioso, no entanto, é que jamais, até o golpe republicano, ele se interessara pela política nacional, ainda que fosse estudioso da nossa história. Capistrano de Abreu, também seu amigo, lembra, no belo perfil que escreveu sobre Eduardo, em 1901, sua “repulsão” à política. Era conservador, sem dúvida, mas de um tipo especial, ainda segundo a definição de Capistrano:
Em seu monarquismo entravam elementos muito diversos. Humilhava-o a inauguração de levantes e pronunciamentos militares vigentes na América espanhola, do que o Brasil se tinha mantido imune; chocava seus instintos de artista ver abolida uma instituição antiga, a única antiguidade americana, elo que prendia uma cadeia ininterrupta de nove séculos; indignava-o a indiferença, a bestialização dentro do país; ofendia-o a ironia do estrangeiro; e em todos estes sentimentos confirmou-o o rumo que assumiam as coisas.
Tornou-se publicista, dessa forma, por acaso, premido pelos fatos e por um agudo senso ético. E sua oposição à ditadura o levaria a escrever outro livro, A ilusão americana, publicado durante o governo Floriano Peixoto, que decreta sua prisão e manda confiscar a obra. Prado, à época residindo na Fazenda do Brejão, em São Paulo, fugiu a cavalo para a Bahia e, de lá, novamente à Europa.
Risada universal
Passados mais de 120 anos, ler Fastos da ditadura militar no Brasil é um exercício de estranhamento e melancolia, pois essas páginas proféticas antecipam os vícios das nossas lideranças políticas, revelando desalentadora verdade: as piores notícias que encontramos na mídia não são novas, mas apenas a repetição bolorenta de crimes e abusos praticados desde sempre. Ao mesmo tempo, a obra oferece a narração das conseqüências do golpe republicano no calor da hora, sem meias palavras e, melhor, sem o distanciamento histórico e ideológico dos livros didáticos ou das teses esquerdistas, em que jamais se lerá o que de fato aconteceu:
Todas as instituições representativas estão abolidas. A liberdade do cidadão está confiscada. Hoje, no Brasil, não há tribunais, não há leis que protejam o indivíduo contra a violência quando ela vem do governo. O cidadão é preso, deportado, sujeito a todas as agressões oficiais, sem ter recurso nenhum contra elas. O poder armado dos soldados e dos marinheiros não tem outro limite além da sua vontade. E o regime da suspeita, da delação, as cenas de perseguição política, cidadãos eminentes transportados pelas ruas entre baionetas, espetáculos desconhecidos da população brasileira, tudo mostra que está destruída a civilização política do país.
O governo não se contenta em prender e banir centenas de pessoas, mas também censura ou empastela os jornais que ousam demonstrar imparcialidade e dar voz à oposição. E o discurso dos golpistas — repercutido pela parcela subserviente da imprensa — é o mesmo de todos os revolucionários: quem se opõe a nós, opõe-se à pátria; “o Governo Provisório respeitará todas as opiniões, contanto que não sejam contrárias às do povo, do exército e da marinha”; a revolução — que não passou de uma quartelada — busca a “salvação pública”; a minoria que toma o poder, diante do silêncio abobalhado da população, governa por decreto, legisla “com frenesi”, altera “as relações sociais, políticas e jurídicas a seu único e bel-prazer”; institui-se o “absolutismo militar”. Eduardo Prado sintetiza o estupor dos que se mantêm lúcidos:
[…] Hoje, o habitante do Brasil não sabe a transformação que um ministro quis dar às leis senão pela surpresa que experimenta, pela manhã, ao ler nos jornais um decreto que altera subitamente as mais importantes reações sociais. E cada dia os fatos provam brutalmente que o poder tudo pode. É portanto natural que cresça entre o povo o temor de quem tem um poder tão absoluto; do temor passa-se à lisonja, da lisonja desce-se à abjeção. Os governados aviltam-se. Os governantes abusam.
E completa, em seu último artigo, ainda falando da perene chuva de decretos: “Aquilo já não é militarismo nem ditadura, nem República. O nome daquilo é carnaval”.
Mas como se comportavam os grandes revolucionários, os supostos salvadores da pátria? A pena implacável do polemista relata o que os livros de história escondem:
O militar que por sua própria deliberação tomou o lugar de chefe de governo marcou a si mesmo um ordenado superior ao de todos os presidentes de república do mundo, exceto o da República Francesa. E o país ainda lhe deve ficar grato, porque, se ele quisesse levar o Tesouro Nacional para a sua casa, ninguém o poderia impedir. Os cidadãos que se constituíram ministros dobraram os ordenados antigos de ministro. Estes simples atos indicam claramente que o Governo Provisório, em matéria de delicadeza e de escrúpulo, se parece com as demais tiranias militares da América. Os prets dos soldados, os soldos dos oficiais, que criaram a nova ordem de coisas, foram aumentados, e foram constituídas novas pensões militares. Um suntuoso palácio foi comprado para a residência do marechal chefe do Estado.
Eduardo Prado insiste que se faça a conta de quanto recebem os membros da numerosa família de Deodoro, agora empregada e “largamente remunerada pela ditadura”. E em abril de 1890 ataca novamente: “As pensões a militares e, de vez em quando, a alguns civis, enchem colunas e colunas do Diário Oficial; as comissões a amigos tanto no Brasil como no estrangeiro, as gratificações, as aposentadorias sucedem-se em conto”. E não deixa de apresentar, com todas as cores, o lado grotesco, digno de zombaria, dos que, subitamente, podem fazer do Estado o quintal de suas casas, o espelho de suas egolatrias:
A ditadura, quando não se notabiliza pelo crime, distingue-se pela vaidade. É o governo dando uniformes fantasiosos e teatrais ao exército; o ministro da Marinha, ordenando que todos os oficiais tenham os mesmos cordões de ouro dos generais; o governador do Rio de Janeiro viajando com pompa soberana, precedido de clarins, recebido por uma sociedade musical chamada Lira dos conspiradores, para espantar pelo fausto um país acostumado à simplicidade de Dom Pedro II; o ministro da Marinha recebendo dos repórteres navais da imprensa os bordados de sua farda de almirante e regando com champanhe a dádiva; o retrato do sr. Rui Barbosa, ministro da Fazenda, estampado nos novos bilhetes de banco, honra que nenhum país seriamente republicano deu a nenhum cidadão vivo, e que nenhum outro estadista ousaria aceitar…
Mas nosso publicista não se satisfaz com a mera denúncia dos abusos. E ainda que seu estilo contribua para demonstrar a gravidade dos fatos, a melhor parte vem logo a seguir, quando analisa e julga, sob o ponto de vista da ética, o que acabou de relatar:
Todas estas vaidades e todas estas exagerações pertenceriam somente ao domínio do burlesco se não revelassem um estado político lastimável, um verdadeiro retrocesso na dignidade e no decoro dos costumes políticos. Todo o desequilíbrio moral é funesto em suas conseqüências, embora risível nas suas formas; mas, quando revelado por quem governa, é uma verdadeira calamidade nacional. Nos negócios interiores de uma Nação a vaidade, o capricho, a ignorância e a boêmia são sempre fatais.
Conclusões que servem com perfeição à nossa história republicana, chegando à Brasília da última década.
Meses depois, Prado escreverá: “O militarismo de 15 de novembro passou depressa da traição para o ridículo”. E no ensaio As finanças e a administração da ditadura brasileira, sentencia: “A ditadura pode suster a execução das leis, deixar de lado o código. Não pode, porém, conter a risada universal”.
General incruento
Esta última citação exemplifica as principais qualidades estilísticas de Prado: objetividade mordaz e argumentação cristalina. A 30 de novembro de 1889, resume o que representa um governo comandado por militares: “Hoje, quando o marechal Deodoro pensar de um modo e os seus ministros de outro, quem cederá? A espada, que não tremeu ao ser desembainhada contra as instituições que o general julgara defender, não precisará mesmo reluzir de novo para fazer emudecer e sumir-se debaixo do pó da terra os novos ministros, talentosos patriotas, mas patriotas desarmados”. No ensaio publicado em 9 de janeiro de 1890, diante da procrastinação das eleições, conclui: “Falam na dificuldade de organizar as novas listas eleitorais, homens que não acharam difícil o mudar em uma manhã todas as instituições do seu país!”. Comparando as repúblicas brasileira e norte-americana, assevera: “[…] Entre elas medeia mais do que um século, mais do que a distância que vai de Boston ao Rio de Janeiro. Divide-as o imenso abismo que separa um Washington de um Deodoro da Fonseca”. Ao recordar a elogiável abolição dos escravos, que transformara os habitantes do país, sem diferenças, em homens livres, elogia Pedro II e lamenta: “A tirania militar entendeu de outro modo a sua missão; e, hoje, se viver sem leis, sempre à mercê do capricho alheio, é viver sem liberdade — pode-se afirmar que, no Brasil, não há senão escravos”. Com delicioso sarcasmo, ilustra, em junho de 1890, no que se transformara a política nacional: “Os partidos políticos, hoje, só poderão galgar o poder agarrados à cauda do cavalo de um general” — mutatis mutandis, a situação do país parece ter evoluído: dos rabos dos cavalos passamos, hoje, à cauda de uma estrela ou à barba de um demagogo…
Mas Eduardo Prado está longe de ser lacônico. Ele nos oferece páginas memoráveis, em que escarnece de republicanos tidos como proeminentes: Benjamin Constant, Rui Barbosa e Quintino Bocaiúva. Sobre este último, ministro das Relações Exteriores de 1889 a 1891 e negociador do Tratado de Montevidéu (cujo objetivo era solucionar a Questão das Missões com a Argentina), escreve críticas tão contundentes e acertadas que o próprio congresso não aceita ratificar os termos do acordo — a contenda seria resolvida apenas em 1895, graças ao brilhantismo do Barão de Rio Branco.
Sobre o ministro da Fazenda, a quem dedica inúmeras tiradas irônicas, comenta:
[…] Cada vez que o sr. Rui Barbosa telegrafa à Europa, a baixa é certa nos fundos brasileiros. A velha imagem da espada de Brenno fazendo baixar a concha da balança pode ser substituída pelo telegrama do sr. Rui Barbosa. A algaravia financeira que ele escreveu no seu funesto relatório veio tirar as últimas ilusões aos que esperavam ainda na competência do ministro das finanças do sr. Deodoro.
E ao analisar um trecho da logomaquia ruiana, decreta: “Toda esta literatura quer dizer que o sr. Rui Barbosa e seus amigos andam contentes de si mesmos e seguros do futuro. Podia isto ser dito mais simplesmente. O sr. Rui Barbosa é, porém, o homem das amplificações literárias e bancárias”.
No que se refere a Benjamin Constant, ministro da Guerra e, logo depois, da Instrução Pública, chama-o de “incruento general-de-brigada”, por ter participado da Guerra do Paraguai com “a rapidez mas não o brilho do relâmpago”:
Trabalhou muito no cargo de ministro da Guerra este felicíssimo militar! Entrou tenente-coronel e, ao cabo de cinco meses, saiu general-de-brigada e grã-cruz de São Bento de Aviz. Tudo isto foi conquistado rápida e incruentamente, sem prejuízo dos parentes, que receberam aceleradas promoções e vistosas condecorações. O sr. Benjamin Constant é positivista ortodoxo, mas há meio de acomodar-se sempre a gente com o céu, com o orçamento, e até com São Bento e Augusto Comte.
Aborreceu a traição
As palavras do anti-revolucionário vaticinam a desilusão das inteligências que, no primeiro momento, apoiaram o golpe. Anos depois, em agosto de 1909, durante a curta presidência de Nilo Peçanha, Euclides da Cunha — republicano convicto desde os tempos de estudante na Escola Militar, onde foi aluno de Benjamin Constant — escreveria a Otaviano Vieira:
[…] Tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os mirabeaux andam aos pontapés. Em cada esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais… É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem.
Defensor da monarquia, Prado não hesita, contudo, em criticá-la, culpando-a pela revolta militar, o que, em sua opinião, não diminui os erros dos golpistas: dentre eles, o de terem instituído um federalismo que abandonou os estados nas mãos das oligarquias locais, reforçando as práticas mandonistas e coronelistas da nossa classe política. E não seria exagero afirmar que a instabilidade republicana seguiu repercutindo através do tempo, condenando-nos a seguidas crises institucionais e a vários períodos de sinistra memória, como, por exemplo, o Estado Novo.
O que costuma ser um gênero menor, crônica jornalística banal, Eduardo Prado transformou — graças ao estilo, à inteligência e ao desassombro — em documento de inconformismo e revolta. Morreu jovem, aos 41 anos. No último parágrafo de Fastos da ditadura militar, ele gravou: “Ninguém duvidará […] de que quem escreve estas linhas só atacou os dominadores do Brasil porque, como homem civilizado e do seu século, aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania”. Sete anos antes de sua morte, Eça de Queirós lhe escreveu: “O que posso dizer afoutadamente é que V. nos faz sempre a mesma falta, e que não há frase mais repetida entre nós que: Se o Eduardo cá estivesse”. Qualquer um desses trechos poderia servir de epitáfio ao seu túmulo, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no qual emerge, da base de granito, uma coluna rósea cujo fuste, partido ao meio, representa a existência ceifada prematuramente — a sobriedade, na vida e na morte, foi a marca de quem afrontou as leis de exceção e as macaquices dos poderosos.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Afonso Arinos e Pelo sertão.