Para os admiradores brasileiros da literatura russa, o momento editorial pelo qual passamos é singular. Depois de um longo período conhecendo as grandes obras dessa nação somente através de traduções terceirizadas, geralmente da França, desde o início do século, contudo, o leitor nacional tem tido atualmente a seu dispor uma gama de novas edições vertidas diretamente da língua russa, como as produzidas por Paulo Bezerra para a Editora 34, além de outras de não menor importância, como as recentes traduções de Eugênio Onêguin, de Púchkin, na Ateliê, por Alípio Correia de França Neto e Elena Vássina, e na Penguin-Companhia, por Rubens Figueiredo, em cuja versão optou-se pelo título Evguiêni Oniéguin.
Todavia, quando o tópico é tradução, o terreno é movediço, pois como é bem sabido, é virtualmente impossível que uma tradução possa canalizar plenamente a força estética, as sutilezas, enfim, a expressão artística em sua inteireza e pureza originais para uma nova língua, de uma nação diversa. Assim sendo, as edições podem (e devem) ser apreciadas naquilo que oferecem, não se desvalorizando as traduções terceirizadas acima mencionadas, nem se supervalorizando as atuais, diretas do original.
Com isso em mente, e dentro do contexto da discussão, é instrutiva a leitura de uma dessas novas traduções, no caso uma inédita em termos de obra integral: O cavaleiro de bronze e outros poemas.
O homem e sua obra
Aleksándr Púchkin tem seu lugar assegurado no cânone literário, não só da literatura russa como também da mundial. Se na Rússia ele se configura como imagem proeminente e inaugural, no exterior foi visto por não poucos outros artistas com admiração, e sua morte prematura, em duelo, foi largamente lamentada na época.
Atuante em uma época na qual o Romantismo nas letras ainda vicejava, a obra puchkiniana reflete, seja em seus poemas narrativos, seja em seus versos de ocasião, influência marcante do movimento. Se em Eugênio Onêguin (cujos excertos compõem a obra aqui resenhada) têm-se no personagem título e em seu amigo Vladimir Lênski a antinomia que marca a figura masculina romântica típica, isto é, a boemia e o idealismo (encontrável, a título de exemplo, também em Macário, do nosso Álvares de Azevedo), também nos poemas de Púchkin encontramos expressões equivalentes. Isto é, do idealismo romântico:
Alina!, tenha dó, meu anjo.
Pedir-lhe amor não posso ousar.
Talvez eu não mereça o ar
do amor: pecados vis, abranjo! (…)
Mas também da carnalidade boemia, mais realista e prática:
E a confiança vossa — em mim?,
bem como a ingênua Agnès teria?
De amor, em qual romance, ao fim
algum patife quem morria? (…)
Sabemos: eternal paixão —
de três semanas nunca passa (…)
Fingi-me: louco, insano assaz
e vós fingindo um casto lado —
juramos… e depois… ai… ai!
Depois, largamos nossas juras
Ambas as facetas conduzem grande parte dos poemas que têm como tema a relação amorosa. Em Lila, Adèle, Madrugada, entre outros, temos versos mais singelos, de um lirismo não de todo isento das convenções da época, quais sejam: o amante cavalheiresco, sempre indigno da amada, celebrando sua exuberância ao mesmo tempo que lamenta a não consumação do enlace amoroso.
Por outro lado, Púchkin também é versado na arte do epigrama, e em poemas como a série dedicada à coquete Aglaia Antónovna Davýdova, vemos o poeta no auge de sua mordacidade, lançando mão de uma licenciosidade que nada fica a dever a um Bocage:
Davýdova, de nula honra a ver,
vivendo, sempre, vítima das Fúrias:
mal fradas fora, a busca por prazer.
E fez-se o caos!; Mercúrio pôs penúrias (…)
dela, um olho, pouco a pouco, inchado,
rebenta: e, dama, o quê? — “Meu Deus, amado!,
melhor assim: buraco novo aqui!”
No poema, as consequências atrozes da sífilis no corpo humano, mais que motivo de lamento, tornam-se o ponto de partida para a renovada busca pelo prazer libertino. Por mais corrosivo que seja, não haveria de ser por essa sua faceta em especial que o poeta seria proscrito da Rússia por certo período de sua vida pelo tzar Alexandre I, e mais tarde, quando reintegrado, mantido sobre estreita vigilância pelo tzar subsequente, Nicolau I. Tal se daria pelos aspectos políticos de alguns de seus versos, cujos exemplares, na presente coletânea, são um tanto escassos.
Além da temática amorosa, no presente volume encontram-se exemplares de versos reflexivos quanto aos valores humanos temerários, imbuídos de vaidade:
“Tudo é meu” — a voz ao oiro;
“Tudo é meu” — ao sabre a voz.
“Tudo compro” — a voz ao oiro;
“Tudo tomo” — ao sabre a voz.
É o que também se encontra na série de poemas que enfoca o ato de escrever, mais especificamente como o artista é visto à luz da sociedade na qual sobrevive, e busca seu lugar ao sol:
(…) Tormenta orelhas (ai
mais um);
depois: impresso — ao Letes vai:
Tibum!
Em todos esses poemas de ocasião, nota-se a preocupação com o ritmo, a preferência pela expressão poética breve, mesmo rigorosamente contida e leve.
Compõem também o volume os poemas narrativos do autor, tais como os já mencionados excertos de Eugênio Onêguin, além de O cavaleiro de bronze; há também um excerto dramático: uma curiosa versão puchkiniana do Fausto.
São Petersburgo
Pela primeira vez traduzido e publicado em sua inteireza no país, O cavaleiro de bronze é um poema dividido em duas partes, antecedido por uma introdução. Nesta, tem-se a descrição singular e um tanto mítica da fundação da cidade de São Petersburgo, “a mais abstrata das cidades”, como já a chamou Dostoiévski, pelo tzar Pedro, no limiar do século 18, às margens do rio Nevá. Eis um desafio à natureza empreendido pelo homem, dadas as condições pouco favoráveis à empreitada. Esta “janela para a Europa”, a mais famosa cidade russa da literatura, contudo, será tomada de assalto, já na primeira parte do poema, pelo rio, numa espécie de desforra da natureza, impiedosa com as vidas e sonhos de seus habitantes, em especial com a figura humana principal do poema, o funcionário público Evguéni. De sua pobre habitação, onde devaneava sobre seu futuro ao lado da amada Paracha, Evguéni se vê de repente sobre o monumento de um leão, observando a desolação ao seu redor, diante da estátua impassível do fundador da cidade, o “cavaleiro de bronze”, a salvo da enxurrada.
Mesmo nessa simples descrição dos sucessos do poema, pode-se antever muitas camadas simbólicas de interpretação. Estas são aprofundadas pelas metáforas, e na expressão estética que implica também o ritmo dos versos, tem-se uma relação adequada entre forma e conteúdo, como na movimentação interna e externa do pobre Evguéni (que a tradução bem preserva):
E corre à fímbria, pressa farta:
surgindo o golfo; a casa, então…
E: é isso, o quê?…
Evguéni: freio.
Voltou-se; e foi; voltou, no anseio.
Mirava… e bis… repete: olhar.
Por fim, no excerto de Fausto, criação de Púchkin que visa preencher uma lacuna de tempo no original goetheano, temos não só uma adequada apropriação da criação de outrem, mas também uma espécie de comentário implícito do leitor Púchkin da obra original:
é o tipo: impõe à beleza azar,
sacia-se, voraz, devasso,
e traga o pejo em fero traço.
e, disso tudo, no final,
desponta a conclusão, sequente…
Há no Mefistófeles puchkiniano uma consciência da insaciabilidade fáustica que só será assim expressa no termo do poema original, já na segunda parte. É duvidoso que o poeta tenha lido a segunda parte, publicada em 1832, então tem-se nesta versão uma sólida antevisão do russo dos caminhos que o poeta alemão seguiria.
A presente edição, bilingue, é boa. A tradução é belo esforço, embora sucumba em certas partes às dificuldades inerentes: por vezes, há uma recorrência do uso de dois pontos, ponto e vírgula e pausas que atentam contra a fluência do ritmo; este tende a parataxe; comparativamente rareiam outros recursos, como os enjambements; escolhas ponderadas pelo tradutor, sem dúvida.
Contudo é apreciável esforço, que merece ser conhecido.