A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os pattern, as formas.
Franco Moretti
Cultura é uma palavra bastante complexa. É um fenômeno social constituído por vários níveis, para recordar a definição semiótica dada pelo sociólogo americano Clifford Geertz; ela passa a todo instante por transformações, como coloca Terry Eagleton em A idéia de cultura. É nesse grande melting pot que se encontram os atos e os rastros deixados de tudo o que foi feito e produzido pelo homem. Toda manifestação artística pode ser vista dentro dessa trama como um vestígio que integra o tecido cultural que é muito mais amplo e para o qual confluem as inúmeras ações humanas.
Franco Moretti, italiano, professor de literatura da Universidade de Standford, tem apresentado nos últimos anos, em forma de livro e ensaios, alguns já publicados no Brasil, uma nova perspectiva para os estudos literários. Perspectiva essa que, se de um lado parece ter muitos adeptos, de outro causa bastante polêmica e tremores.
Um exemplo das discussões propostas por Moretti são os artigos que levam o título de Conjectures of world literature e More conjectures, publicados na New Left Review, em 2000 e 2003. O segundo ensaio, como o autor explica no parágrafo inicial do texto é uma resposta ou, melhor dizendo, a continuação do debate iniciado em 2000. A frase que inicia as conjecturas é: “Nos dias de hoje, a Literatura Nacional não tem muito sentido: a era da literatura mundial está começando”. Conjecturas é uma palavra-chave que já dá indícios de que se está num debate aberto, no qual a legibilidade das relações, antes desconsideradas, promove e estimula suposições sobre um novo olhar para o estudo das trocas e das inter(relações) entre os sistemas literários. Seguindo a trilha da trama traçada por Moretti, na qual a produção literária pode ser vista como um macro-sistema, a questão que se coloca não é mais somente o que estudar e, sim, o como estudar. De fato, para o professor de Standford, a literatura não pode ser vista como algo estático, ou seja, como um objeto “fixo”, simplesmente passível de análise.
Os passos percorridos delineiam as preferências metodológicas, e isso está claro no modo como ele calibra a sua lente de análise a partir do distant reading. Elemento já presente em outros livros como o Atlas do romance europeu (2003, Boitempo), Signos e estilos da modernidade (2007, Civilização Brasileira), A literatura vista de longe (2008, Arquipélago) e na série O romance, cujo primeiro volume chegou ao mercado editorial brasileiro em 2009, com tradução de Denise Bottmann, pela Cosac Naify.
O que se tem é um complexo sistema, formado por inúmeras relações e tensões, e o estudo da literatura mundial/universal deveria visar também o reconhecimento desses cruzamentos, por vezes pontuais, que formam nós e tecem essa grande trama que são as literaturas. Como ver, ler, compreender e interagir com esse sistema?
A cultura do romance é o volume inicial de O romance, publicado inicialmente na Itália pela Einaudi, entre 2001 e 2003, que tenta dar conta do gênero que dominou a literatura nos últimos séculos. O projeto editorial de O romance é de Franco Moretti, que cuidou da organização de todos os volumes, tendo no último a colaboração de Pier Vincenzo Mengaldo e Ernesto Franco. Uma obra (essa coleção) de bastante fôlego, quase monumental, como há muito não se via, mas que traz os signos da contemporaneidade. A clivagem, característica dos nossos tempos, é um elemento presente e marcante dessa coleção. Recapitulando: são cinco volumes, com um total de 178 colaboradores, pertencentes a 99 instituições de todo o mundo, reunidos nesse projeto editorial. Estudiosos ou não de diferentes culturas, com abordagens variadas, que se conhecem entre si ou não, colocados lado a lado nos sumários, trazem as visões e reflexões sobre o desenvolvimento e a história do romance.
Mas, atenção: o leitor que pretende encontrar nas suas mais de mil páginas uma seqüência cronológica da evolução desse gênero irá se decepcionar. O que se encontra ao folhear o pesado volume é o romance visto por grandes temáticas, nas quais se enquadram os ensaios desses inúmeros estudiosos. Em 2006, O romance teve uma versão reduzida na Inglaterra, obtendo grande repercussão. O crítico do London Review of Books, David Trotter, apresentou a edição como um marco central para os estudos literários.
Pluralidade
A cultura do romance é dividido em quatro grandes temáticas: “O romance se faz espaço”, “Narração e mentalidade”, “Gente que escreve, gente que lê” e “Narrar a modernidade”, contendo cada uma cerca de 13 ensaios. É interessante chamar a atenção para o fato de os autores atuarem em diferentes áreas do saber; e é essa pluralidade de olhares e de corpus, com um movimento de distanciamento e aproximação, que dá também a unidade do livro. Outro aspecto a ser considerado é que os ensaios de abertura e encerramento, que não estão inseridos nas grandes temáticas, levam a assinatura de dois escritores: Mario Vargas Llosa e Claudio Magris. Isso significa que o olhar se expande mais uma vez, porque a lente do estudioso soma-se àquela do escritor, que reflete e pensa sobre a literatura.
Como afirma Moretti, na apresentação de A cultura do romance: “Algo faltará: é inevitável; mas esta não é a Arca de Noé. É uma obra coletiva, que procura reinterpretar o romance do ponto de vista do mundo de hoje; e o mundo de hoje, se tal é possível, à luz da longa aventura do romance”. A totalidade é uma impossibilidade, ainda mais quando se trata do romance, enquanto gênero, sem nacionalidade, visto numa conjuntura mundial. É para essa “conjuntura”, essa teia imbricada de relações e de diálogos polifônicos, que dão forma e também transformam, que Moretti chama a atenção.
É possível pensar o mundo moderno sem o romance? é o título do texto de Vargas Llosa, no qual indaga sobre o papel da literatura na formação do cidadão.
Vivemos numa época de especialização do conhecimento, causada pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. (…) A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana.
A literatura, para o escritor peruano, pode ser um elemento de desequilíbrio ou de equilíbrio, depende do ponto de vista. Na sua fala, Llosa continua o discurso sobre a função dessa manifestação artística afirmando que ela é “propagadora da inconformidade” e “alimento dos indóceis”.
O romance é concebível sem o mundo moderno? é o texto de Claudio Magris. Professor de literatura alemã e escritor, ele inicia pela tradição crítica italiana, com Benedetto Croce, e afirma que o romance e o mundo moderno vivem numa espécie de simbiose. “O romance é o mundo moderno; não apenas não poderia existir sem este, como a onda sem o mar, mas por alguns aspectos identifica-se com este, é a mutável expressão dele, como o olhar e o contorno da boca são a expressão de um rosto”. É uma expressão das relações e conflitos entre o homem e a sociedade, ou “fluxo do mundo”, que reforça a idéia de movimento e transformação. É perpassando por diferentes momentos da trajetória desse gênero, lembrando que o termo romance remonta à Idade Média, a fala de Dostoiévski sobre Dom Quixote, até chegar à modernidade e à contemporaneidade, que ele traça o percurso do texto, sem deixar de citar os grandes nomes da literatura romanesca. Entre as várias obras citadas está Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Ao falar da obra roseana, o crítico-escritor sublinha o caráter mítico-religioso da vida e “a confiança em um universal que une o múltiplo”. Depois de todo um resgate, Claudio Magris deixa, quase no final do ensaio, uma questão: “Em um mundo onde a bioengenharia está criando ‘super-homens’, criaturas e espécies de difícil definição, onde a virtualidade substitui a suposta realidade, onde os imateriais bits — como são chamados — substituem os átomos, o que pode fazer ou ser o romance?”.
Problemáticas
Os aspectos apontados por Llosa e Magris não interessam a apenas uma literatura nacional, mas são problemáticas postas para toda a produção literária mundial. O que não significa que todos lhe darão o mesmo tratamento. O tecido literário é plural e múltiplo: forma e conteúdo; texto e contexto.
Os outros quatro volumes da coleção, ainda inéditos, são: As formas, História e geografia, Temas, lugares e heróis e Lições. Umberto Eco, Jeffrey Brooks, Peter Burke, Alberto Asor Rosa, Frederic Jameson, Jack Goody e Beatriz Sarlo são alguns dos nomes que aparecem como colaboradores do projeto. Entre os quais há o de dois brasileiros. Luiz Costa Lima que abre a primeira parte do quarto volume, intitulada “A longa duração”, com o ensaio A imaginação e as suas fronteiras, dividido em quatro partes: “A imaginação na antiguidade e na modernidade”, “Romance e filosofia da história: Schlegel e Hegel”, “O controle, e o romance como campo ideal para a sua compreensão” e “O controle em ato: a ‘laminagem’ do romance inglês no século VIII”. Roberto Schwarz aparece no quinto e último volume, que tem uma estrutura diferenciada dos demais, já que segue uma linearidade respeitando a cronologia das obras e dos autores trabalhados. O texto de Schwarz, A cambalhota de Machado é sobre Memórias póstumas, e vem depois de um ensaio sobre Victor Hugo e antes de outro sobre Henry James.
O foco central apresentado desde A cultura do romance e que permanece nos demais volumes não é mais só como a forma do romance mudou ao longo da trajetória do gênero. Na verdade, o que Moretti traz à baila para os estudos literários são as razões e o porquê de todas essas mudanças, que podem e devem ser mapeadas. Um olhar novo que foi assinalado por textos em Bookforum, Times Literary Supplement e o Nation, que caracterizou o projeto como uma coleção ambiciosa. Como diz o organizador de O romance: “Portanto, boa leitura e bom trabalho. Hoje, mais do que nunca, é bom ter perto de nós o prazer e o espírito crítico”.