Menos comum do que as coleções de poesia são as coleções de crítica literária que proponham, com base numa curadoria, intervir no campo da reflexão sobre literatura.
Desde 2010, acompanhamos a Coleção contemporânea, organizada por Evando Nascimento e publicada pela Civilização Brasileira. A coleção, que não publica só crítica literária, já trouxe a público livros importantes, como os de Karl Erik Schollhammer sobre ficção contemporânea, João Cezar de Castro Rocha sobre Machado de Assis e Antonio Cicero sobre a relação entre filosofia e poesia.
Também desde 2010 a Coleção ciranda da poesia, organizada por Ítalo Moriconi na Editora da UERJ, tem lançado pequenos ensaios dedicados a poetas contemporâneos, acompanhados por uma breve antologia de textos. Os livrinhos coloridos trazem propostas de leitura muito heterogêneas e tratam de poetas às vezes surpreendentes, com destaque para os volumes dedicados a Ghérasim Luca, por Laura Erber; Ana Cristina Cesar, por Marcos Siscar; Roberto Piva, por Sergio Cohn; Antonio Cicero, por Alberto Pucheu, e Aníbal Cristobo, por Manoel Ricardo de Lima.
Em ambas as coleções o discurso acadêmico comparece marcado por uma evidente abertura à linguagem coloquial. Na contramão de um imaginário segundo o qual os professores universitários se encastelam num discurso estéril, em parte essa abertura acontece graças à autoria de escritores que não são professores universitários, como são os casos de Antonio Cicero ou Sergio Cohn. Em parte também ocorre devido à consolidação de uma geração de críticos que, passadas as gerações que priorizaram uma revisão do Modernismo em larga medida e suas consequências teóricas, procuram ora dialogar com o leitor não especialista sem perder o rigor da interpretação, como nos casos de João Cezar e Karl Erik, ora empreender uma reinvenção estilística adotando procedimentos de interpretação com pouco ou nenhum precedente em nossa crítica, como nos casos de Pucheu, Siscar e Manoel Ricardo.
Mais afim à segunda vertente, que renova procedimentos críticos, a Coleção entrecríticas, organizada por Paloma Vidal para a Rocco, propõe-se a ampliar o time de críticos literários para o âmbito da América Latina e no mesmo lance ampliar o texto literário por abordagens que o considerem não como inserido num campo, mas tendendo a um movimento em direção a outro campo. Trata-se, segundo a organizadora afirma no site da coleção, de desenhar “um terreno comum de reflexão sobre uma abertura da literatura”.
Assim é que as quatro autoras da coleção — todas, como Paloma, nascidas na Argentina, duas delas professoras em universidades no Brasil — nomeiam seus livros utilizando dois procedimentos que marcam a abordagem da literatura como estrangeira de si: ou empregam a conjunção “e” (Literatura e ética, Poesia e escolhas afetivas) ou então qualificadores da estranheza (Frutos estranhos, A literatura fora de si). E, a julgar pelos dois títulos já lançados, a literatura é realmente compreendida como um campo instável.
Um deles, Poesia e escolhas afetivas, de Luciana di Leone, propõe-se a abordar a produção poética atual sob a chave conceitual do afeto, no intuito de tornar mais transparentes os modos de consagração na poesia, que muitas vezes são atravessados pelas relações pessoais construídas entre os diversos atores. Poeta, editor, leitor, crítico — todos participam em algum grau daquilo que Luciana chama de “tramas da consagração”, e se no Modernismo os poetas às vezes se orgulhavam de serem aparentados entre si (como João Cabral repetia a respeito de Manuel Bandeira), hoje os afetos mobilizam mais do que uma tosca curiosidade biográfica ou uma desconfiança acerca de grupos de poetas autorreferentes: torna-se, o sinal de afeto, procedimento estético — o que não o imuniza de contradições éticas.
Fruto da crise de enunciação do poeta, os poemas produzidos acabariam por encenar “as formas de agrupamento que a poesia experiencia, mesmo fora do poema”. A ausência de um projeto estético definido, que se reconhece na geração de poetas surgidos a partir da década de 1990, encontraria na formação de comunidade o seu tema e as suas práticas. Daí: poesia e escolhas afetivas. É somente depois de atravessar os conceitos de afeto e comunidade, abordando-os desde a filosofia de Espinosa até as reflexões de Roberto Esposito e Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy e Gilles Deleuze, Manuel Castells e Nicolas Bourriaud, entre outros, num catálogo de autores que oferece um panorama do e um posicionamento no debate acerca dos conceitos abordados, é somente depois dessa trilha conceitual que a autora se dedica a, agora com um (como se diz) referencial teórico desenhado, interpretar a poesia contemporânea.
Talvez o rigor de um ensaio se meça mais pelo seu risco do que pelo que o assegura no gênero — entre texto e pretexto, que se escolha, antes, o texto. Pois o que se arrisca no livro de Luciana di Leone é antes a sua hipótese da “virada afetiva” para a poesia contemporânea do que o passeio teórico que, seguindo uma trilha mais ou menos marcada porque inscrita no gênero, nem por isso aguça o discurso.
É o que acontece, por exemplo, quando, ao analisar o blog que o poeta Aníbal Cristobo escreveu durante o ano de 2008, recorre a uma revisão bibliográfica acerca dos blogs para concluir que cumprem o papel social de uma “exibição do eu” — no que não recai Cristobo. Em casos assim, em que a pesquisa acadêmica citada corrobora o senso comum e ao mesmo tempo supostamente o autoriza, devido ao metódo de interpretação, nota-se certa codificação do ensaio num formato acadêmico, como se, por precaução, o texto não estivesse autorizado a se misturar ao senso comum em que mergulham — querendo ou não — autor e leitor.
Se do ponto de vista teórico o livro é panorâmico, do ponto de vista interpretativo (por necessidade do recorte analítico) não o é: afirmativo da potência contraditória dos afetos, elege a Editora 7Letras e os poetas por ela editados Aníbal Cristobo e Marília Garcia como objetos paradigmáticos de “uma lógica de afetos conviviais”. Editorialmente, a criação de coleções piratas, antologias, blogs e o apagamento da autoria individual em poemas escritos a quatro ou mais mãos são sinais de circulação do afeto que muitas vezes não se preservam com a profissionalização do poeta: “Afinal de contas a pergunta: podem, os afetos, ser profissionais?”. Poeticamente, a citação operada como profanação da memória (em Cristobo) e como citação afetiva (em Marília) desestabilizam a identidade do poema presente e do poeta ou poema citados, fazendo do encontro uma experiência-chave para a composição e a leitura do poema.
No que é decisiva, Luciana põe em circulação o afeto, que ela identifica como constitutivo da cena de leitura do poema contemporâneo, mas restam poucas dúvidas de que a poesia atual emaranha uma rede muito mais complicada. É preciso que, a partir da leitura, se reafirmem outros paradigmas afetivos para a poesia, pois, em se tratando de afetos, mesmo a noção de paradigma não admite o valor de regra, e ganha, como no livro de Luciana, o valor de “mais um”.