O absurdo como denúncia da realidade

O nonsense e a ironia conduzem os contos de "Algum lugar em parte alguma", de Nelson de Oliveira
Nelson de Oliveira, autor de “Poeira: demônios e maldições” Foto: Tereza Yamashita
01/11/2006

Parte de um projeto literário, inicialmente constituído de 45 contos no volume de Fábulas, que abarcaria mais de quatrocentas páginas, as histórias de Algum lugar em parte alguma foram desmembradas da obra principal. Agora publicadas, completam a tetralogia iniciada por Nelson de Oliveira com os premiados Naquela época tínhamos um gato, Os saltitantes seres da lua e Treze, livros que marcaram sua segura estréia literária, e que também são excertos da obra original.

O nonsense e a ironia, características que marcaram seus contos e romances, entre os quais Subsolo infinito, A maldição do macho e O filho do crucificado, perpassam também as histórias desse novo livro, sem que isso seja um clichê ou incursão numa mesma fórmula de capturar o leitor pelo humor e o despojamento. Nelson não se vale da pequenez dos recursos artificiosos, capazes de facilitar a compreensão de seu universo narrativo ou dourar a pílula para leitores menos afeitos a uma narrativa mais elaborada.

Com uma linguagem cristalina, às vezes corroborada pela fantasia ou utilizando-se de elementos que nos remetem à versatilidade dos mestres do roteiro cinematográfico, o autor “penetra surdamente no reino das palavras”, como diria o poeta Itabira, para escrever as histórias que precisam ser escritas, com o rigor psicológico e a necessária densidade das tramas, sem que para isso lance mão de uma prosa engajada no intelectualismo ou caminhe em direção ao hermetismo. E, com engenho e arte, alcança plenamente aquele plus, tão necessário à revelação de um episódio, de um universo, de um conflito ou drama.

Aliás, Chico Lopes, escritor e crítico paulista, residente em Poços de Caldas, também identificou na prosa de Nelson esse talento para criar uma teia de fluidez, rimo e a poesia que capturam o leitor e o torna um cativo de sua prosa ao mesmo tempo diáfana e contundente: “Sempre achei a prosa de Nelson uma facilidade e uma fluência que nos pegam rapidamente, e ela agrada pelos abismos de ironia e nonsense que abriga”.

Os contos que parecem retirados de atmosferas oníricas, onde realidade e absurdo dão a impressão de fundir-se num jogo de gato e rato, quando a fantasia brinca de esconde-esconde com os dramas mais pungentes, sugerindo, nitidamente, uma metáfora da própria realidade. Pois o que é esta, senão uma permanente usina de inverossimilhanças e acontecimentos surreais, a contrastar com a ficção, sempre mais recatada do que a vida e a morte, que se banalizam e apequenam a própria existência?

Nelson não exagerou na conformação de seus personagens nem carregou nas tintas quando esboçou as histórias que têm o ingrediente do supra-real. Menos como estilo e mais como atitude estética de exorcismo dos fantasmas quotidianos. Solidão, morte, isolamento social, inadaptabilidade ao meio, denúncia da rotina escravizante, dos males da política e do fracasso das relações, delineando um espectro de espantos, delírios e desesperos que constituem o dia-a-dia do mundo perverso que flui aos nossos olhos passivos, mas tão “cheios de si e de vento”, vazios de existência e esperança, como ocorre com Madalena, de Senhora aos domingos, atrelada à imutabilidade dos acontecimentos e da sua trajetória.

Alguns contos são paradigmáticos e elucidam, na prática literária de Nelson de Oliveira, a eficácia com que a fórmula não corrosiva e não caricatural de humor ajuda-nos a compreender e absorver a realidade, ainda que se diga respeito a um cenário angustiante. É o que se colhe da leitura do orwelliano Os antepassados, os porcos, que serve tanto para firmar aquela velha sentença de Terêncio, apropriada por Marx — “humano non alienum puto est”: tudo que é humano não me é estranho — quanto para ratificar a percepção freudiana, segundo a qual “tudo que é estranho é porque já conhecemos”. E nada mais hiperbólico que a normalidade, tanto que o escabroso é a exceção que confirma a regra.

Eis aí os seres de Nelson, afetados por suas fragmentações psicológicas e sucumbindo às perdas íntimas para confirmar o contrário, ou a partir da negação da realidade endossar o absurdo e expor climas kafkianos, policialescos, misteriosos ou claustrofóbicos, capazes de legitimar os arquétipos sinistros que permeiam tudo o mais na vida contemporânea . Pobre Patinho Frank, cheio de si e de vento esboça a desagregação familiar e suas aparências, capazes de suas excrescências, camuflagens, monstruosidades e exacerbações. O conto que dá título ao livro, com os protagonistas Bella e Otto e seu cachorro de nome Cão, que se bifurca pelos escaninhos de uma favela, vai mostrar a dependência dos dois ao animal, a única quebra para o isolamento e a incomunicabilidade do casal, enquanto em O irmão brasileiro, o autor trata, em um texto pungente, da perda (ou da busca da identidade).

Os seis contos de Algum lugar em parte alguma conduzem o leitor a uma instigante e reflexiva leitura, em que a verdadeira dimensão humana dos personagens não se esconde na subversão das imagens e cenários, nem no absurdo e inusitado recompostos, ricamente experimentada pelo autor. A leitura funciona como denúncia metafórica da própria realidade e lança um olhar questionador sobre os valores que a sociedade contemporânea, fetichista e veloz, alberga e reproduz.

Algum lugar em parte alguma
Nelson de Oliveira
Record
286 págs.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

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