O atual projeto literário de Paulo Bentancur problematiza aspectos sombrios da existência humana. E isto se evidencia já na capa de seu mais recente livro, A solidão do diabo. Tons escuros, revelando um sujeito com os braços cruzados, sugerem, e os textos confirmam, que o escritor gaúcho, realmente, trata de impasses. Que impasses? O livro, dividido em duas partes, soma 59 contos e todo o conteúdo da primeira parte se apresenta como uma resposta do autor para dilemas humanos — dilemas sem solução.
Viver é prejudicial à saúde? Viver, de acordo com a ficção de Bentancur, é perder. Os personagens dos contos bentancurianos, da primeira parte do livro, são derrotados. Não há sequer a hipótese da redenção. O cotidiano esmaga. O cotidiano sufoca. O cotidiano, enfim, derrota.
Estava ali, continuaria a estar, numa permanência, não de pedra, que, enfim, não se tratava de literatura, mas de um homem para o qual todos os demais nada têm a revelar além do fato de já terem nascidos condenados e não saberem disso ou se negarem a admitir a irrecusável verdade.
O fragmento é aleatório. Mas diz respeito a muitos personagens de A solidão do diabo. Homem ou mulher. Remediado ou pobre. Jovem ou velho. Tanto faz. A existência é ruína. E não há salvação. Pra ninguém. Um é alcoólatra. Outro usa drogas. Há quem não agüente e se suicide. Tem a personagem vítima de estupro. Há diversas vítimas na ficção de Bentancur. As famílias, então, são terrivelmente infelizes. Os urbanos estão condenados ao marasmo e à ausência de sentido nas metrópoles. Há quem definhe sufocado em uma cidadezinha qualquer. E, para quase todos, no fim do dia, apenas cansaço. Durante as madrugadas, pesadelos. Tudo isso, nas páginas de A solidão do diabo, se chama viver.
Náufragos do cotidiano
Rotular os contos de A solidão do diabo de realistas seria simplificar ao extremo o projeto literário de Paulo Bentancur. Afinal, a ficção bentancuriana dialoga sim com o cotidiano real, mas também estabelece pontos de contato com o cotidiano literário. Por exemplo, com o cotidiano edificado pelo russo Anton Tchekhov (1860-1904). Algumas das peças tchekhovianas, sobretudo as seis reunidas no livro O assassinato e outras histórias, apresentam existências inviáveis — a exemplo do que se lê nos contos do escritor gaúcho. Bentancur é, entre outras coisas, um sujeito histórico, que vive o seu tempo, problematiza os impasses do presente e carrega no imaginário a herança da tradição literária. Os contos de A solidão do diabo podem ser lidos tanto como uma resposta do escritor, um grito, até mesmo um manifesto diante da falta de sentido de tudo, da vida, do mistério humano como sinalizam ser também uma conversa de Bentancur com autores que o antecederam.
Carlos, personagem central do conto O mágico do azar, traduz a visão de mundo, e literária, de Paulo Bentancur. Carlos não aceita a vida como ela se apresenta. Carlos cogita, então, transformar o porvir, o cotidiano previsível e frustrante que se anuncia para qualquer e todo ser.
Um dia Carlos imaginou: e se fosse mágico, mágico mesmo, ou melhor, um santo capaz, não de prestidigitações, de milagres. Sim, milagres. Porque no reino do real o que pode se transformar mesmo é somente pela ação do milagre, do fenômeno; nunca do truque.
Milagre. Eis a alternativa para, efetivamente, modificar a realidade. Afinal, logo ali, a três passos, a cinco minutos, a seis meses, a dez anos, ou mais ou menos, o naufrágio acontecerá. Os personagens bentancurianos são, sim, náufragos — náufragos no e do cotidiano. Vários se afogam. Outros tentam driblar o inevitável. Placas podem até oferecer “Buda, Krshina, Cristo/ um coração, o ombro, a mão/ um visto pro Japão”, como canta outro gaúcho, o Nei Lisboa. Mas não há como evitar. O abismo ou, ainda, o naufrágio chega. Sem aviso. Para todos.
Um dia houve redenção
No capítulo 30 do livro Como eu se fiz por si mesmo, o escritor Jamil Snege (1939-2003) descreve um encontro com um espírito. Snege, sem poder controlar os passos, chegou em um café, onde um espírito havia se apossado de um corpo físico para que o contato sobrenatural se materializasse.
A razão do nosso encontro, explicou, era para alertar-me de que o homem já é suficientemente humilhado, maltratado, para que continuemos a fazê-lo com a literatura. Redima o homem, falou, e foram suas últimas palavras, porque imediatamente aquela figura pálida, alta e bem vestida — que eu jamais vira e nem tornei a ver — virou-se sem se despedir e caminhou em direção à esquina.
O suposto recado do possível espírito para Snege encontra ressonância na segunda parte do livro A solidão do diabo. O segundo momento da obra é, na realidade, a reedição de Frio, livro que Paulo Bentancur publicou em 2001. Os 18 contos de Frio não apenas redimem os personagens, mas oferecem cotidianos e horizontes viáveis, o oposto do que se dá nos outros 41 contos de A solidão do diabo.
Um casal abre espaço para um terceiro elemento participar da relação em A seis mãos. Uma personagem feminina surge e incendeia o imaginário e a rotina dos moradores de um bairro em Depois da loirinha. Um sujeito adquire imóveis deteriorados com finalidade de preservar a memória em Ruína. Um Caim e um Abel se reconciliam depois de muito conflito em Encontro no apartamento. Enfim, o autor de Frio é diferente do autor que escreveu os contos da primeira parte de A solidão do diabo. Anteriormente, sua visão denunciava esperança, esperança que não teria espaço posteriormente. Antes, a ironia se irmanava com o humor; depois, a desilusão passou a ditar o tom.
O cotidiano de Paulo Bentancur, a atividade de escritor e editor, tornou-se matéria-prima de algumas peças de Frio. Os bastidores e o dia-a-dia do universo literário ganharam espessura em A arte da recusa, A ilha e, sobretudo, Nossa obra-prima. Neste conto, um editor recusa os original de um estreante, mas se interessa pela namorada dele. Ao final, o aspirante a ter um livro publicado constata não ser um autor, mas salienta que lutará para continuar com a namorada. “Você não pode negar, Dirceu, que uma obra-prima eu já consegui na vida. É a Marta. E essa, você vai me perdoar, essa nunca, mas nunca mesmo, vai ser sua”.
Eu escrevo pra você me entender
A literatura de Bentancur tem, ou pode ter, entre outros objetivos, a finalidade de atingir, mesmo, possíveis leitores. Do ideal e refinado ao iniciante e leigo. O texto, supostamente simples, é de fácil compreensão. Isso não quer dizer que não haja nada nas entrelinhas. Ao contrário. Há camadas, sim, a serem decifradas. Mas a prosa bentancuriana também funciona e dialoga com aqueles que desejam fazer apenas uma única leitura, mesmo que apressada. É o que se constata em Diante do túmulo de meu pai.
Meu pai, diante do túmulo de meu avô:
— Por isso odeio a vida!
Não a odiava, claro. Odiava o que, não sendo vida, está contido nela. As suas eram as lágrimas de um homem derrotado e condenado a sobreviver. Humilhado pela vida que, tendo-lhe tirado tudo, ainda o fazia continuar e oferecia-lhe outras coisas. Trairia, não o pai, mas o cadáver do pai, se aceitasse a indiferença brutal e, ao mesmo tempo, a generosidade da existência persistindo sem se transformar em um cadáver. Odiava, talvez, o paradoxo da vitória pessoal ante a tragédia pessoal reconhecida e, no entanto, transposta.
Agora não odeia mais, está morto.
— Por isso odeio a vida! — digo, sem me conter, no cemitério, ao lado do meu filho, diante do túmulo de meu pai.
É isso. Comunicação direta. Seja nos contos de 2001 como nesta produção recente, o autor se vale de linguagem transparente para chegar até o leitor e, uma vez lido, pode provocar, no mínimo, algum desconforto. A prosa de Bentancur, entre outros efeitos, pode tirar o leitor da comodidade, da letargia, da passividade e do estado de aparente satisfação que, por exemplo, a publicidade de nossos tempos sugere e estimula. Sim. A ficção bentancuriana pode até ser interpretada como uma negação do que se propaga pelos comerciais — e até pelos livros de auto-ajuda. A auto-ajuda induz o leitor a possibilidades inesgotáveis e as propagandas prometem paraísos artificiais — o que é completamente desconstruído nas páginas de A solidão do diabo.
Luzes da ribalta e não há ninguém. Um automóvel zero quilômetro e a sensação de impotência. Telefone celular com dois mil e um recursos e a agenda vazia. Botox, retocagens, lipoaspiração e falta de fôlego e indisposição para tudo. Os contos de A solidão do diabo podem deslocar o olhar e fazer com que o leitor problematize: não há como fugir dos impasses. A literatura de Bentancur é um anticorpo em meio ao oba-oba de um tempo de alegria, felicidade e consumo obrigatórios.