O abismo e a empatia

Contos de Francisco Rogido mesclam lirismo, violência e humor ácido para iluminar os abismos e resistências da experiência humana
Ilustração: Italo Amatti
28/07/2025

Há uma novidade digna de atenção no universo assimétrico da literatura brasileira contemporânea. A capa da coletânea de contos Náufragos do escolho, de Francisco Rogido — tão bela quanto perturbadora —, traz um piano de cauda flutuando entre nuvens sobre uma cidade sombria, com a fachada de um cinema ao canto. As pernas do instrumento derretem, e a imagem mistura caveiras e bebês que mergulham de cabeça em uma piscina que despenca dentro do próprio piano.

Já no título e subtítulo — Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais) — Rogido antecipa dois traços essenciais da obra: o estranhamento e o humor insólito. A escolha do termo “escolho”, pouco comum no português cotidiano, evoca seu étimo italiano scoglio, que remete a “espinho”, “obstáculo” ou “perigo”. O inventário entre parênteses intensifica o tom farsesco, quase metalinguístico, desafiando o leitor a não buscar literalidade nos tais “98 infernos” ou “63 takes”. A contagem é mais estética que exata.

Embora a obra flerte com a linguagem cinematográfica — visível na estrutura dos contos, no ritmo, nas marcações de cena e nos diálogos — há momentos de delicadeza e lirismo, como em A falta agrava a tristeza da noite, no qual o encontro amoroso entre dois idosos internados num hospital surge como antídoto à brutalidade da morte iminente.

Contudo, o tom predominante é sombrio: angústia, frustração, violência, miséria, loucura e dor são moduladas por ironia, poesia e um sentimentalismo discreto. O microconto Lá não existem flores, com apenas meia página, ilustra isso de modo exemplar. Nele, um vendedor de flores — que madruga para o trabalho e jamais participa das festas para as quais suas flores são enviadas — se angustia com uma dúvida final: “quem levaria flores ao seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?”

Rogido transita com domínio pelos limites da linguagem, dando voz a personagens periféricos: operários, idosos solitários, fracassados, habitantes de bairros afastados, figuras anônimas que só ganham espaço nas páginas policiais. Em comum, esses seres carregam deficiências e contradições que os aproximam de qualquer leitor. Ainda que caibam no clichê do “fracasso social”, são dotados de inesperada nobreza, capazes de gestos que revelam empatia e compaixão – mesmo diante do abismo.

A literatura brasileira oferece antecessores naturais: Dom Casmurro, de Machado de Assis, ecoa na dissecação moral de certas personagens; O cobrador, de Rubem Fonseca, na crueza do submundo urbano; Dalton Trevisan na concisão e oralidade; e Luis Fernando Verissimo na verve sarcástica. Há ainda marcas de Ana Cristina Cesar (no lirismo cotidiano), de Cassandra Rios (no desnudamento da sexualidade não normativa), de Márcia Denser (na crítica às normas de gênero), e até de Clarice Lispector, especialmente no uso do fragmento que, paradoxalmente, se sustenta como totalidade.

A epígrafe nietzschiana (“Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo”) aprofunda o estranhamento como chave de leitura. Narrados muitas vezes em primeira pessoa — por humanos, animais, ou até cadáveres — os contos obrigam o leitor a se deslocar, a experimentar o mundo pela ótica do “outro”. Em 5×7, o narrador é um corpo morto; em Mateus, um esteticista funerário negocia com um cliente inescrupuloso que, ao contratar os serviços para preparar um cadáver, exige de volta o terno, os sapatos, a aliança e os dentes de ouro do morto. O diálogo é desconcertante, tragicômico: “Pensei… pensei… o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro… Quem pensa demais acaba se enganando.”

Náufragos do escolho é um livro corajoso. Lança o leitor ao desconforto, à estranheza e à ternura. Não há indulgência ou compaixão fáceis. O que se constrói, na justaposição de horrores e lampejos de beleza, é uma ética da escuta e do olhar para o invisível. Rogido revela, com maturidade rara para uma estreia, que o inferno pode ser mesmo os outros — mas que neles também pode haver salvação.

Náufragos do escolho
Francisco Rogido
7Letras
192 págs.
Dário Borim Jr.

É professor de Estudos Luso-Afro-Brasileiros na Universidade de Massachusetts Dartmouth (Estados Unidos), onde é diretor do Departamento de Português. Nascido e criado em Paraguaçu, no sul de Minas Gerais, também é cronista, editor literário, fotógrafo, radialista e tradutor.

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