Ana Paulo Maia surgiu na literatura com um romance, O habitante das falhas subterrâneas (2003), marcado por uma forte personalidade narrativa. Escudada na estética da violência urbana, sobrepujava o gênero para entrar de cabeça na degradação humana. Três romances depois, a escritora lança seu quinto livro, De gados e homens, demonstrando um amadurecimento conseqüente. A evolução, claro, não é nada radical. A nova obra ainda é uma sucessão de crueldades gratuitas e cenas de violência, mas percebe-se claramente uma preocupação maior com a linguagem, que ganha contornos poéticos, e com a construção dos personagens, que recebem um tratamento psicológico mais profundo.
De gados e homens parece uma seqüência da trilogia A saga dos brutos, formada pelos romances O trabalho sujo dos outros, Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e Carvão animal, onde os personagens, de tão identificados com suas profissões — ofícios sempre assinalados pelo convívio próximo a alguma forma de violência — tornam-se indiferentes às dores, às degradações, às crueldades. A diferença vem com a observação de que agora Ana Paula põe mais sentimentos em seus personagens, o que os torna mais preocupados e atentos com o próximo, mesmo sem perder a insensibilidade diante dos quadros dantescos em que vivem.
Violência e realidade
Neste romance, Edgar Wilson, o protagonista, é o atordoador de um abatedouro de bois que fornece carne para uma fábrica de hambúrguer. Ou seja, sua função é matar o gado com uma marretada na testa e sangrá-lo. Acredita que sua função é mais humana do que parece, e por isso procura sempre olhar nos olhos do animal antes de matá-lo. Quer compreendê-lo e também se fazer compreendido, estabelecendo assim uma relação de cumplicidade. Daí faz a defesa de que o animal não deve sofrer, recebendo um único e certeiro golpe: “Não sente orgulho do trabalho que executa, mas se alguém deve fazê-lo que seja ele, que tem piedade dos irracionais”.
Como os protagonistas dos livros anteriores, de tão identificado com os bichos com quem convive, Edgar Wilson resguarda seus sentimentos com relação às outras pessoas. Chega mesmo a matar seu semelhante sem sentir a mesma culpa de quando mata um boi. É um universo absurdo, sim, e também uma visão pessimista da condição humana. No entanto, Ana Paula não está indo muito além de um realismo renovado. Aliás, outro festejado autor atual, Marçal Aquino, afirma que sua literatura é tão realista quanto a de escritores como Machado de Assis e Raul Pompéia. A diferença é que a sociedade brasileira há muito já não carrega aquela flor de ingenuidade, e também as camadas inferiores desta comunidade deixaram de ser pano de fundo para agora protagonizarem tramas e enredos.
Este movimento, seguido muito de perto por Ana Paula, ganha corpo com a chamada literatura pulp, gênero surgido nos Estados Unidos ainda no início do século passado que privilegiava uma escrita despretensiosa, apenas comprometida com o divertimento. Daí incorporar os livros fantásticos, a ficção científica e os romances policiais. Na releitura que hoje se faz pelos autores brasileiros, no entanto, é a nossa realidade absurda e cruel que ganha espaço. Também este é um movimento que data de outros séculos, com autores como Álvares de Azevedo (que tem seu Noite na taberna publicado postumamente em 1855), Lima Barreto, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan.
Falar de violência e realidade é já uma tradição nossa, enfim. No caso da escrita de Ana Paula, este conceito ganha uma força maior, pois não se intimida diante do reflexo sanguíneo, diante da podridão. Suas cenas são ousadas, quando não repugnantes, como aquela em que, em um livro anterior, o irmão come com cachaça o rim do outro. Sem querer buscar justificativas vazias, estas ações são plausíveis num ambiente em que a degradação chegou aos extremos. Esta cultura dá outra psicologia aos homens. Eles retornam ao princípio da luta fratricida pela sobrevivência, onde agora já não o mais forte, mas o mais despojado de ética e medo é quem vai viver. Assim, cada novo romance da autora aponta para o mundo a que chegamos sem nos darmos conta. É como se nos dissesse que o hambúrguer que está em nossa mesa pode ter custado bem mais do que a vida de um boi. Existem conseqüências sociais por trás de todo processo de fabricação. “Cumprido seu dever, ele vai à cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado”, escreve Paula. Aliás, nos idos de 1970 Ferreira Gullar alertava para o fato de que o branco açúcar que adoçava seu café numa manhã de Ipanema não fora feito por ele, nem pelo padeiro da esquina.
E talvez tenha sido na leitura da poesia social de Gullar e de outros poetas que Ana Paula tenha se inspirado para dar ao seu realismo cruel uma pitada mais poética. Claro que esta poesia foge das descrições de mortes e crimes, mas se apresenta muito bem quando se fala em cenários: “Do lado esquerdo da pista um pasto pequeno acomoda algumas cabeças de gado. Vacas ruminam e descansam entre montanhosos e exuberantes cupinzeiros edificados sobre a grama em meio ao pasto”.
Dualidade humana
É uma renovação ainda tímida, reconheça-se, mas ela vem aliada ao fortalecimento de um sentimento quase esquecido nos livros anteriores da autora: a dualidade humana. Antes havia quase que um padrão único para seus personagens, sempre indiferentes, sempre degradados, sempre cruéis. Agora, sobretudo na figura de Edgar Wilson, estes homens ganham mais veracidade ao revelarem suas contradições. Todos têm parcelas boas e más. Edgar é senhor desta dualidade, embora seu lado bom somente enxergue os animais. “Ele acaricia a cabeça do animal. A vaca possui uma mancha marrom na testa, em forma de gota. Ele certamente se lembrará dela quando estiverem novamente cara a cara.”
De gados e homens é sim um salto na literatura de Ana Paula Maia, mas seus leitores fiéis não se sentirão traídos. Sua forte marca de narradora de um mundo cruel e indiferente ainda não se apagou, para o bem de quem procura entretenimento e realismo num romance.