O romance continua a roubar a cena, no palco das atenções dos estudos literários. Tanto é verdade que inúmeros intelectuais da atualidade debruçam-se sobre a complexidade de temas suscitados a partir da necessidade de redimensioná-lo, nestes tempos pós-modernos.
Assim, por exemplo, o crítico italiano Franco Moretti organizou a profícua coletânea La cultura del romanzo (Einaudi, 2001), em que comparecem os mais diversos autores, intitulada. Alfonso Berardinelli trata da questão, sob outro enfoque, no interessante estudo Não incentivem o romance (Nova Alexandria / Humanitas Editorial, 2007).
Abrindo o diálogo com essas obras, já que anterior a elas, Geografia do romance, de Carlos Fuentes, impõe-se como leitura obrigatória. O que pretende, num primeiro momento, esta antologia de ensaios é encontrar respostas eficazes às cruciais e apocalípticas elucubrações acerca da possível morte do romance.
Logo, às páginas iniciais, o autor assume a postura defensiva dos que, de modo indignado, buscam combater a tese de quem proclama a morte do gênero tão decantado ao longo do tempo, na história da literatura.
De fato, especialmente a partir da década de 1950, devido ao verdadeiro boom da comunicação imediata, da avalanche crescente de informações que passou a alargar os limites de acesso à notícia, o romance pareceu ter perdido sua primordial razão de ser: a de encarnar, por excelência, o papel de portar a novidade, de contar o novo, de narrar o que era, antes, desconhecido ou inacessível. Porém, o que é preciso notar é que a chamada sociedade da informação acabou gerando uma falsa onipotência, em relação ao domínio dos vastos territórios do saber. Se, por um lado, passamos a conviver com um amplo espectro de novidades de toda ordem, que convocam todos os sentidos, no universo da espetacularização bem descrito por Guy Debord, por outro, é como se o excesso de luzes do grande show ofuscasse nossa capacidade de discernimento e de escolha. Daí porque Fuentes, acertadamente, evoca Baudrillard, ao acusar que a essa “explosão de informação” corresponde uma inevitável “implosão do significado”. E é justamente a partir dessa constatação que o brilhante autor mexicano passará a enunciar os muitos motivos pelos quais a idéia de dissipação das forças do romance é, na verdade, inconcebível.
Assim, ele sustenta que, se nunca estivemos, como hoje, tão bem informados, nunca, paradoxalmente, nos sentimos tão incompletos, oprimidos, solitários e carentes de imaginação. Como conseqüência e respondendo, de saída, à pergunta: “O romance morreu?”, poderíamos pensar na importante função que ele passa a assumir, preenchendo o vazio desses caóticos tempos. Cabe, hoje, ao romancista dizer o que não pode ser dito, de nenhuma outra maneira, o que os meios de comunicação, que servem ao aparato ideológico do poder, não dizem.
Mais do que negar a morte do romance, apenas para nutrir a fogueira das vaidades conservadoras de perpetuação do gênero, é preciso revitalizá-lo como meio de eficaz combate à circularidade hermética e tirânica dos jogos de informação e poder que visam alienar consciências. Conforme já disse Adorno, consciências alienadas são os principais instrumentos a alimentar a engrenagem de aniquilação da liberdade.
Se, em meados do século 20, o vasto oceano de informações parecia inundar impetuosamente os espaços bem marcados do romance, a nova era do vazio acabou por resgatá-lo, com outras vestes, ampliando muito mais seu poder de abrangência, conferindo-lhe a missão singular de reinventar o mundo, numa dimensão mais humana e livre.
Novos territórios
As metamorfoses pelas quais foi passando o romance, no cumprimento de sua trajetória, em vez de reduzirem-lhe o campo de atuação, ao contrário, fizeram com que fosse anexando novos territórios, redimensionando seu lugar na cartografia literária, num novo mapa em que não cabem estreitas fronteiras.
Ao tratar desse percurso, num recorte diacrônico que se inicia em meados do século 20 até a atualidade, Fuentes reitera a urgência de exorcizar as mais que conhecidas bruxas que assombraram os escritores de sua geração, as rígidas exigências do cânone realista: realismo x fantasia; nacionalismo x cosmopolitismo; compromisso x formalismo.
Embora não haja nenhuma originalidade em apontar tais dicotomias como extremamente limitadoras da potencialidade mesma do romance, há a necessidade, mais que premente, de recordar o estado de inércia e estagnação antiliterárias a que conduziram.
Se, no México, Kafka chegou, em certo momento, a se transformar em sinônimo do “anti-realismo”, nosso autor combate, veementemente, tal acusação, inclusive em causa própria, interrogando:
Hoje, quem duvida de que é o escritor mais realista do século XX, aquele que com maior imaginação, compromisso e verdade descreveu a universalidade da violência como passaporte sem fotografia do nosso tempo? A lei, a moral, a política, a desorientação, a solidão, o pesadelo do século XX se encontram todos, neste supostamente irreal e fantástico Franz Kafka…
Um dos grandes méritos destes ensaios de Carlos Fuentes está na profundidade — mais do que na originalidade — com que vai retirando, aos poucos, do baú das antigas discussões literárias, as que parecem fundamentais para o entendimento do que é preciso romper definitivamente. É preciso romper as fronteiras entre realismo e fantasia; regional e universal; engajamento e arte purismo, a fim de que o romance reine esplendoroso num território livre, para que a liberdade da arte nos guie ao que ainda não vimos e não sabemos.
A nova geografia do romance se instaura no mapa das possibilidades, já que como propugna o tcheco Karel Kosic cada obra de arte, por um lado, expressa a realidade, mas simultânea e inseparavelmente, também a forma.
Criando a realidade, sem deixar de expressá-la, o romance, em sua nova roupagem, preenche o vácuo gerado pela superficialidade do excesso de informação, não pelo que demonstra ao mundo, mas pelo que lhe acrescenta. Dissipando as fronteiras estéreis das enunciadas dicotomias, ele se espraia na cartografia de uma terra comum, muito além das nacionalidades, encarnando uma voz universal e singular, por meio da imaginação e da palavra.
A universalidade do possível
Abolidas as grades do realismo que só permitiam ver o conhecido, relativizando os modos de ver e narrar, o romance germina, agora, no fecundo território das infinitas possibilidades. O que, no limite, a literatura de nosso tempo nos oferece é a chance de preencher o buraco negro em que estamos imersos, de revelar-nos a parcela não-escrita ou não-lida do mundo. Mas, a fim de dizer o que ainda não foi dito, é preciso, primeiramente, ampliar os recursos. Se no território do possível entram todos os personagens, todas as linguagens, todos os tempos históricos distantes, todas as vozes a que Bakhtin denominou polifônicas, há também que encontrar novos recursos procedimentais, novas formas que correspondam a este imenso espaço aberto, recém-conquistado.
No entanto, como o Angelus Novus de Paul Klee, embora sempre direcionando o olhar ao porvir, o romance jamais pode deixar de se voltar ao passado. Tradição e criação representam as duas faces da mesma moeda, intercambiáveis, na intersecção inesgotável dos tempos: “Tudo é presente, entendes? Ontem não terminará senão amanhã, e amanhã começou há dez mil anos” (William Faulkner)
Sob o mesmo céu
Depois de traçar os meridianos e latitudes do novo mapa das formas romanescas, Fuentes elege Borges, Goytisolo, Roa Bastos, Ramírez, Camín, Kundera, Konrád, Barnes, Lundkvist, Calvino e Rushdie, provando que todos estes autores convivem sob o mesmo céu, sob a égide de um denominador comum, além das fronteiras de suas idiossincrasias e respectivas nacionalidades.
Esta é terra de todos, em que a inclusão é a tônica dominante.
Interessante perceber o quanto a nova concepção ontológica do romance, advinda, sobretudo, das idéias de Bakhtin, propõe um eixo de análise capaz de apontar as falhas de certos reducionismos provenientes dos, hoje, chamados “estudos culturais”. Nesse sentido, o que advoga Fuentes é que, mais do que ser um representante da literatura, especificamente, mexicana, ele é e almeja continuar sendo um literato. A mesma linha de raciocínio pode ajudar a reequilibrar a tensão de forças em que certos discursos, ideologicamente comprometidos com causas políticas, por exemplo, de defesa das minorias, pretendem dar conta, de modo inadequado, da complexidade dos fenômenos artísticos. Por isso, é preciso certa cautela na crença indiscriminada que se apóia em vozes de uma literatura “de indígenas”, “de negros”, “de homossexuais”, etc.
Ao tratar da necessidade de romper as barreiras concretas de espaço e das grades aprisionantes do comprometimento engajado, que tanto tolheram, num passado recente, o alcance de vôo do romance, Fuentes privilegia-o como forma narrativa aberta do que está sendo,
numa arena onde as histórias distantes e as linguagens conflitantes podem reunir-se, transcendendo a ortodoxia de uma só linguagem, de uma só fé ou de uma só visão do mundo, trate-se, no nosso caso particular, de linguagens e visões das teocracias indígenas, da Contra-Reforma espanhola, da beatitude racionalista do Iluminismo, ou dos pluto-hedonismos industriais dos nosso dias.
Assim, Borges é agente fundamental neste processo de anexação de novos territórios do romance, já que buscou uma síntese narrativa superior, conseguindo abolir as fronteiras da comunicação entre as literaturas.
Juan Goytisolo vem para o espaço comum das linguagens, propondo uma narrativa sinuosa, simultaneísta e ambígua, apoiado, como todo grande romancista, na noção universal de deslocamento.
Roa Bastos concilia o destino individual e o destino histórico no que abrange o eu e o outro como destinos compartilhados.
Aguilar Carmín exemplifica, ao máximo, a idéia de que toda obra literária tem sua própria autobiografia, que difere da autobiografia do autor e da biografia dos personagens.
Kundera acredita que a mentalidade totalitária centrada na onipotência tirânica de uma só voz é diametralmente oposta ao verdadeiro espírito do romance, cuja essência busca a descoberta da relatividade do mundo.
György Konrád, romancista húngaro, fala por todos nós, tratando dos conflitos cruciais da guerra quotidiana e insidiosa dos que planejam os espaços urbanos contra os que os habitam, nesta guerra moderna: a violência dos manipuladores da vida contra os que a vivem.
Julian Barnes, representante da nova geração de narradores ingleses, renova a tradição com sua voz universal, rompendo as barreiras convencionais de tempo e gênero, apelando para a caracterização a partir das idéias e da linguagem, olhando de frente para a inteligência do leitor.
Calvino quer capturar, num livro, a parte ilegível do mundo, reiterando que o que não está escrito será sempre mais do que o que já está escrito, o que faz com que a imaginação do leitor assuma o papel de protagonista no script literário universal.
Rushdie sabe que a ficção deve manifestar a diversidade cultural, pessoal e espiritual da humanidade. Nesse anúncio do mundo multipolar e multicultural, não há filosofia única, fé única ou solução única que possa sacrificar a riqueza extrema das culturas humanas.
Reconhecendo o brilho fulgurante e peculiar de cada uma dessas estrelas, o que esta Geografia do romance de Carlos Fuentes nos ensina é que necessitamos do outro, para completarmos-nos a nós mesmos, e que nossas individualidades podem cintilar, ainda que mutantes, sob o manto de um único e imenso céu.