Novos migrantes, velhas questões

O romance "Tinta branca", de Alexandre Alliatti, tem o olhar voltado para as migrações atuais
Alexandre Alliatti, autor de “Tinta branca”
01/10/2023

Em julho de 2023, uma série de explosões em um silo de grãos no interior do Paraná deixou oito trabalhadores mortos, sete deles haitianos. O incidente lançou luz sobre a silenciosa, mas significativa, migração de haitianos no Brasil. Movimento que tem tido o sul do país como um de seus destinos principais. Só no Rio Grande do Sul o grupo representava metade do total de trabalhadores estrangeiros empregados até 2022, de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Nesse sentido, a região conhecidamente orgulhosa de sua ascendência europeia é hoje marcada pela expressiva chegada de estrangeiros negros.

É esta a questão no centro de Tinta branca, romance de estreia de Alexandre Alliatti. Situada na fictícia Nova Colombo, interior do Rio Grande do Sul, a trama gira em torno do crime de ódio sofrido por Benjamin, jovem haitiano. A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Zago, professor de história cuja família imigrou da Itália para a cidade no final do século 19 — “Os primeiros registros eram de 1888, quase junto com o fim da escravidão”. A aproximação da vinda de imigrantes italianos e a abolição aponta para outro fio central no romance: o retorno de Giovanni, jovem brasileiro negro, a Nova Colombo para investigar o suicídio do pai, ocorrido décadas antes. Migrantes haitianos, negros brasileiros, brancos orgulhosos do sangue europeu. Esses três elementos entrelaçam-se e armam o palco para a prestação de contas histórica.

A história sempre volta
O crime contra Benjamin ocupa centralidade no romance. Amarrado a um poste, o haitiano é cercado por moradores de Nova Colombo e coberto por tinta branca. A imagem que dá nome à obra serve também como metáfora para a política de embranquecimento da população empreendida na segunda metade do século 19. Em específico, ela lembra o uso da imigração europeia para tais fins. A cena com descendentes de europeus literalmente pintando o migrante negro de branco é modo perspicaz de figurar o conflito no cerne das novas migrações.

Nas notas finais do livro, Alliatti escreve que a cena foi inspirada na obra Amnésia, de Flávio Cerqueira. Nela, o escultor plasma uma criança negra derrubando um balde de tinta branca sobre si. Em uma fala para o Museu de Arte de São Paulo, Cerqueira explica que “a obra faz referência ao embranquecimento das populações negras no Brasil”. O deslocamento da agência no ato feito por Alliatti — Benjamin é forçadamente coberto por tinta ao contrário do menino de Cerqueira — aumenta a perversidade da imagem e melhor captura a violência da política de embranquecimento.

Afirmava que estava consciente de que nossos antepassados também haviam chegado ao Brasil como imigrantes, mas que eram um tipo diferente, um tipo obstinado por trabalhar. E concluía garantindo que sua maior missão como prefeito era preservar o trabalho, a tranquilidade e os valores dos cidadãos da cidade.

O discurso do prefeito de Nova Colombo é atravessado pelas velhas ideias eugênicas. Estrangeiros brancos são trabalhadores e ajudam na construção do país. Negros são um problema a ser resolvido. Alliatti não está só no cenário literário contemporâneo na tematização das novas migrações. Julián Fuks foca na questão em A ocupação, enquanto Patrícia Melo e Itamar Vieira Junior a incluem nos respectivos Menos que um e Doramar ou a odisseia. Contudo, é André Timm com Morte, sul, peste, oeste quem mais se aproxima da proposta de Alliatti. Assim como Tinta branca, o romance de Timm também figura a experiência de haitianos no sul do país e a constatação do racismo brasileiro. Ambos autores problematizam a relação da construção de uma certa identidade sulista e a imigração europeia, mas Alliatti é mais engenhoso em seu tratamento.

O emaranhamento de diferentes tempos e a representação da sobrevivência de antigas ideologias dão força a Tinta branca. Em parte, isso ocorre em referências a Cristovão Colombo e o início do projeto de colonização. O nome da cidade e a estátua do explorador genovês na praça principal simbolizam a normalizada celebração em espaço público de uma empreitada favorável somente a grupos hegemônicos. Sob o olhar da estátua de Colombo ocorre não só o ataque a Benjamin, mas também a reação dos migrantes negros. Se o primeiro acontecimento traça linhas entre a violência histórica contra negros e o projeto de colonização, o segundo elucida como há resposta contra tal agressão. Nesse sentido, Alliatti recorre à história do Haiti não só para tratar de mazelas ligadas à migração, mas também o impacto da revolução da nação caribenha — “Falei que quanto mais os negros se rebelavam, piores eram as punições aplicadas pelos brancos, e maior a raiva dos escravos”. Com a Revolução Haitiana de norte, a ira é figurada no romance como motor na luta contra injustiças.

É na construção do personagem de Giovanni que Alliatti dá o maior salto na narrativa. A presença do brasileiro negro desestabiliza o discurso identitário de Nova Colombo como cidade descendente de italianos. A opção de Alliatti de introduzir o personagem para somente no capítulo seguinte revelar que se trata de um homem negro é sagaz. A brincadeira de Giovanni com o próprio nome no capítulo da revelação — “Com n duplo e i no final, bem italiano” — pode ser entendida como piscadela para o leitor e suas expectativas de quem habita o sul do país.

A estratégia do autor de surpreender quem lê nem sempre funciona. A obra contém três grandes revelações. A primeira marca a divisão do romance em suas duas partes. A seguinte ocorre ao longo da segunda metade enquanto a última encerra a narrativa. A previsibilidade das primeiras duas revelações, cujo intuito é trazer grandes reviravoltas, principalmente a segunda, faz com que o romance perca força. Entretanto, a última gera um final impactante para a narrativa ao reforçar a ideia de que contas são prestadas, mesmo que tardiamente.

A tragédia familiar de Giovanni dá ao tema da obra outra dobra. O elo estabelecido entre o preconceito enfrentado pelos haitianos e aquele sofrido pela família de Giovanni elucida como não há como discutir a migração contemporânea no Brasil sem tratar do racismo. Em um país que usou a imigração como ferramenta de embranquecimento da população, a chegada de estrangeiros racializados provoca profundo incômodo. A potência de Tinta branca está na representação de migrações atuais como atravessadas por antigos conflitos da sociedade brasileira.

Sobre o assunto, vale lembrar o episódio em que Moïse Kabagambe foi morto na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em 2022. Três homens espancaram o jovem congolês até a morte em um quiosque em plena luz do dia. Assim como as mortes dos sete haitianos no silo de grão no interior do Paraná, a tragédia de Moïse pode ser entendida como diretamente ligada à violência contra negros no Brasil. As histórias de Benjamin e Giovanni no romance de Alliatti reforçam essa mesma lição. Como cantado por Elza Soares, a carne mais barata do mercado é a carne negra — brasileira ou não.

Tinta branca
Alexandre Alliatti
Patuá
187 págs.
Alexandre Alliatti
Nasceu em Curitiba (PR), em 1982, e foi criado em Canoas (RS). É formado em Jornalismo pela UFRGS, onde também cursou Letras. Vive em São Paulo (SP), onde trabalha como jornalista. É pós-graduado pelo Instituto Vera Cruz no curso de Formação de Escritores. Tinta branca é seu primeiro livro publicado.
Allysson Casais

Doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

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