Noturnas pulsações

Resenha do livro "Mecânica dos fluidos", de ReNato Bittencourt Gomes
ReNato Bittencourt Gomes, autor de “Mecânica dos fluidos”
01/05/2002

Mecânica dos fluidos, de ReNato Bittencourt Gomes, é um livro de estréia. Ele assina ReNato porque “há mais de trinta anos” carrega “o nascimento no nome”. Revisor profissional, “quando não tem ninguém olhando, escreve aquilo que chama de seus contos”. Esses dados pitorescos são um atrativo à parte num livro que chama a atenção antes pela força e domínio verbal. São contos que, à maneira de Clarice Lispector, podemos chamar de “pulsações” ou, à maneira de Caio Fernando Abreu, de “noturnos”. Herdeiro de uma geração recente que vive sob a égide dos paradigmas do conto brasileiro moderno — paradigmas que podem atender pelos nomes de João Alphonsus, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Clarice, Moreira Campos, Samuel Rawet, José J. Veiga e Lygia Fagundes Telles, sem falar num pessoal mais recente como Luís Vilela, Jamil Snege, João Gilberto Noll, Domingos Pellegrini e Caio Fernando, entre tantos outros —, colhendo também em fontes mais recuadas no tempo, nacionais e estrangeiras, ReNato tem o perfil dos escritores que já nascem prontos. Sua família espiritual é a dos que afiam a lâmina do grito, dos escritores que mergulham no ser com a coragem da aventura, portador de uma mensagem que é patrimônio de uns poucos que têm a consciência de que a literatura é antes de mais nada uma aventura de linguagem e, mais que isso, uma aventura de vida.

Aos tantos acima citados, poderia acrescentar ainda vários outros, um elenco que se destaca nos últimos anos, mas já ali se encontram algumas das fontes literárias que podem servir de parâmetro para a compreensão do autor de Mecânica dos fluidos. As afinidades mais imediatas e claras seriam com Clarice e Caio, embora ReNato seja bem menos seduzido pelo enredo — aspecto que o aproxima, em certos momentos, de alguns andamentos de Guimarães Rosa e de Dalton Trevisan, apesar da pouca semelhança que mantém com esses autores. Esses andamentos que arriscaria chamar de poéticos, no caso de ReNato, giram sempre, e insistentemente, num pequeno núcleo temático. Como Caio e como Clarice, ele é um cultor do exótico e do encantatório, buscando na palavra mais que o sentido, a música.

Boa parte de seus contos, de resto, são peças que poderão eventualmente integrar um único corpo ficcional, fragmentado em cartas, trechos de um diário intemporal, depoimentos muito próximos daquele “lirismo desacorçoante” apontado por Cíntia Moscovich na apresentação, que por vários motivos é página definitiva para a compreensão do autor. Suas afinidades eletivas, como bem apontou Cíntia, se entremostram — e porventura também se escondem — nas epígrafes. Assim, Erico Verissimo (“Ponho na mesa todos os meus sonhos. Não basta? Jogo então a vida.”) e Graciliano Ramos (“Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze.”) são, nesse passo, os pilares de sustentação de Mecânica dos fluidos, construção pirotécnica de um escritor que vive o seu corpo-a-corpo com a palavra com a garra e o empenho de um domador de feras: “Até lá, é o breu, meu descontrole palavroso.”

De Graciliano, ReNato herda a modulação áspera da voz — não o classicismo da linguagem, que no autor de Mecânica… é mesclada, balança entre a dicção clássica e o ínsito ou o pop, na linha de Caio Fernando Abreu, forma nem sempre confiável de se pagar tributo ao moderno — pois o poeta já se disse cansado de ser moderno, que o melhor é ser eterno.

Mas as epígrafes denunciam outras leituras, sobretudo dos evangelhos — como é sabido, a grande fonte da literatura universal. Além dessas epígrafes, o texto é geralmente polvilhado de referências, jazida que cabe ao leitor explorar: das letras de música popular à poesia clássica e moderna, de Machado de Assis aos meios de comunicação contemporâneos etc. E para fechar o capítulo das filiações, vale mais um registro: no conto De frangas e de mulheres, há traços estilísticos de João Antonio; e no final do conto Tardes tropicais, sente-se a presença de Dalton Trevisan. São heranças, são influências, contudo nada que comprometa a autenticidade da voz do autor, que arma seu mosaico de forma a desvirtuar qualquer semelhança aparente.

Escrevendo sempre na primeira pessoa, o narrador quase sempre dirige-se a uma interlocutora que é muda e que em determinados momentos ele chama de Dona Moça, como quem escrevesse carta ou página de diário para a musa, ou as musas. Às vezes é o tom do monólogo que prevalece, como em Uma senhora ou em Blues, mas há sempre a interlocutora silenciosa, marcada por um “você” que pontua a maioria dos textos. Com exceção do conto De frangas e de mulheres, no qual o interlocutor é um Guri — dos melhores momentos do livro —, e também dos contos Do cansaço e da solidão, Inferno e Canibal, nos quais, salvo engano, o narrador dirige sua retórica farfalhante para o leitor — ou mais que isso: para o mundo e seus desconcertos, em tom que arranha o apocalíptico.

A recorrência de algumas palavras e imagens determinam o que chamei acima de um corpo narrativo, pois temática e formalmente o livro é circular em sua carga simbólica. Seu verbo é carne, é grito e é alma, e coração, máquina feroz de visgo e medo, treva e luz, ruídos e fantasias abissais: mecânica de fluidos. Um narrador que não se impõe limites: “Que bem pode vir desse amontoado de palavras? Não se corrige a vida, muito menos com palavras”, embora acrescente mais adiante que “ainda assim preciso renovar o relato, como quem reza sempre o mesmo rosário”. Esse é um dos segredos do livro e de seu narrador, para o qual “a vida é uma catedral de mistérios”.

É por meio de um infinito repisar os mesmos temas e as mesmas imagens que o escritor tece a sua túnica — que nada terá de inconsútil, porque é nas costuras que percebemos as sutilezas da amarração. Um bordar de Penélope que dá conta dos desacertos amorosos, dos descompassos de um ser machucado frente ao furor do mundo, traços muito nítidos de um personagem que é quase um estereótipo. Com a determinação de quem doma a fera de si mesmo, nessa via de mão dupla que é a visita obsessiva aos estados agônicos do ser em face da vida que ruge lá fora, o contista fragmenta-se e repete-se, numerosos são os seus pontos de tensão e contensão.

Todo texto publicado é sempre um salto sobre os próprios limites. Num misto de ficção e confissão, e entre as tantas vozes atuais, ReNato Bittencourt Gomes vem ocupar o seu espaço: “Não existe outro recurso: tudo que tenho é linguagem — ela e a tua ausência.” Isso tem um nome: literatura. E na velha lição de Erico e de Graciliano, a matéria-prima é uma só: vida.

Mecânica dos fluidos
ReNato Bittencourt Gomes
Imprensa Oficial do Paraná
120 págs.
André Seffrin

Nasceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1965. É crítico literário, ensaísta e antologista. Autor, entre outros livros, de O demônio da inquietude (2023).

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