Notas sobre um fracasso irresistível

Road trip de “Todos nós adorávamos caubóis” explora paisagens além do interior gaúcho
Ilustração: Carol Bensimon por Eric França
01/01/2014

Após a publicação da nona edição da Granta em português — aquela que ficou conhecida como a dos “melhores jovens escritores brasileiros” —, é com maior atenção que o público e o setor livreiro recebem as obras mais recentes dos autores selecionados pela revista. Em 2013, algumas casas editoriais souberam aproveitar todo o destaque dado aos nomes desses escritores quando do lançamento de seus respectivos romances: Laura Erber lançou o seu primeiro, Esquilos de Pavlov; Ricardo Lísias publicou mais um, Divórcio; e Michel Laub deu seqüência à “trilogia sobre os efeitos individuais de catástrofes históricas iniciada com Diário da queda”, com A maçã envenenada.

Entre os escritores listados na Granta, há ainda uma subcategoria: a dos que não apenas podem ser citados como presentes na revista como também publicaram livros em que expandem a experiência de leitura desta. No geral, são estes os autores que enviaram excertos de romances em andamento, quando das inscrições. Em 2014, há a expectativa do lançamento de, pelo menos, Antes da queda, de João Paulo Cuenca, e F para Welles, de Antônio Xerxenesky — supondo que os títulos sejam mantidos. Em 2012, poucos meses depois do anúncio dos vinte nomes escolhidos, publicou-se Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, cujo primeiro capítulo saiu na revista com o título Apneia. O romance ganhou o prêmio São Paulo de Literatura.

Ainda em 2013, três obras mataram a curiosidade do leitor que achou que a Granta não era o suficiente: Antonio Prata publicou Nu, de botas, em que amplia suas reflexões sobre o tema das crônicas da infância, já presente em Valdir Peres, Juanito e Poloskei — uma exceção à regra romanesca dos escritores citados; Vanessa Barbara lançou Noites de alface, romance sobre um velho viúvo e uma vizinhança, que ganhou o mesmo título do trecho já publicado; por fim, semelhantemente, Carol Bensimon chegou às livrarias com seu Todos nós adorávamos caubóis, que dá seguimento ao excerto publicado como Faíscas.

Os três últimos constam da minha lista de melhores leituras de 2013. Não a de “melhores livros brasileiros lidos em 2013” nem a de “melhores livros escritos por brasileiros presentes na nona edição da Granta lidos em 2013”: repito, melhores leituras de 2013. No entanto, por falta de distanciamento crítico com relação aos dois primeiros — sabendo-se que gostar muito de tudo que alguém escreve nos tira um pouco a noção do ridículo, eu muito provavelmente resenharia o livro do Antonio em versos metrificados e rimados, bem como escreveria sobre o da Vanessa a partir de critérios gastronômicos, tais como “temperos para salada” —, detenho-me no romance de Carol Bensimon.

 “Lave-me”
Uma vida empoeirada: é para isso que Cora volta, depois de três anos em Paris. Itens históricos e um carro amontoados numa garagem, juntando pó. Sua passagem para o Brasil foi paga com um propósito específico, familiar, mas é outra a vida empoeirada que a personagem busca: ela retornou para viajar com Julia pelo interior do Rio Grande do Sul. Uma road trip.

O segundo romance de Carol Bensimon parece unir o que há de melhor em seus dois livros anteriores. Todos nós adorávamos caubóis se aproxima do que há de mais forte em Pó de parede — livro de narrativas breves publicado pela Não Editora em 2008 —: o conto A caixa. O cenário significativo de uma garagem, alguma preocupação com a questão da arquitetura (vide trecho a seguir), a personagem que retorna de Paris em razão de um evento-chave, o passado a imiscuir-se no presente, tudo isso remete ao conto referido. Falar que a capa segue o mesmo esquema de cores talvez fosse levar a comparação um pouco longe demais…

Durante algum tempo, fiquei olhando para a rua. Não era mais a mesma rua, quer dizer, era a mesma rua mas, no lugar das casas dos meus amigos de infância — onde eles estavam agora? —, tinham erguido um prédio. Assustava-me pensar que as preferências estéticas de alguém podiam estar resumidas naquele mastodonte branco de dezessete andares, que se destacava na quadra como uma mulher nua em uma congregação de freiras ou como uma freira no I Encontro Brasileiro dos Praticantes do Poliamor.

Por outro lado, as semelhanças com Sinuca embaixo d’água (Companhia das Letras, 2009), primeiro romance da escritora, se iniciam na extensão das narrativas, ambas longas; passam pela atenção a detalhes sutis dos movimentos externos e internos — em especial, no que tange à temporalidade — da história; e findam na voz única que rege a narrativa. O último ponto, no entanto, pode ser encarado como um diferencial, na medida em que Bensimon evita um dos aspectos mais problemáticos de Sinuca ao escolher apenas um narrador e ponto de vista para Todos nós adorávamos caubóis. Naquela obra eram três os narradores principais — Bernardo, Camilo e Polaco —, que, apesar de possuírem histórias, contextos e vidas muito diferentes, soavam exatamente iguais; o leitor que se perdesse no meio da digressão de um personagem tinha de retornar ao início do capítulo para lembrar quem era o narrador deste, por exemplo. No novo romance, é apenas Cora que nos guia.

Ação
Paris era o cenário perfeito para uma história que não estava acontecendo.

Sei que “não acontecer nada” é uma consideração subjetiva: há quem diga que O fabuloso destino de Amélie Poulain não tem história, e quem veja no filme história que não acaba mais. Também sei que não é unanimidade a idéia de que há um número absurdo de livros contemporâneos que abusam do “não acontecer nada” e da técnica do “continue lendo porque supostamente o meu narrador é especial e porque o livro tem traços de autoficção e porque estou reinventando a linguagem”, mas eu já tive a minha quota desses, pelo menos por enquanto.

Esta pequena seção é para fazer o alerta de que Todos nós adorávamos caubóis não é um desses livros. As coisas acontecem. Mesmo que não em Paris. Mesmo que em cenários imperfeitos.

Questão de gosto
Onde está a crítica da literatura brasileira contemporânea? Se não está no ambiente acadêmico, está muito próximo: num café na esquina da reitoria, onde costumo me encontrar com um mestrando amigo meu para conversarmos sobre o tema. Difícil a tarefa de resumir os temas da última conversa, mas a lista a seguir é um bom indicativo: a galera do bullying, o conceito de literatura middlebrow, publicidade, spoilers (“por favor, não!”) e mimesis. Aprofundemo-nos no último item, sem intenção alguma de resumir o calhamaço de Auerbach.

“É algo que existe” é a justificativa que ambos lemos em uma resenha que dá razão para a fraca representação feminina em um romance premiado — “fraca” tanto no sentido de “pequena, minúscula” quanto no sentido de “incompleta, desprovida de empatia/conhecimento do outro”. Não há muito o que se argumentar nesse sentido: há uma realidade e o autor a representou. Um historiador daqui a cem anos poderá falar do Brasil de hoje a partir da leitura dessa obra. “É conservador, mas é verdadeiro”, disse meu amigo.

Não tivesse lido o último da Bensimon, eu provavelmente defenderia uma literatura que apontasse um devir, que não representasse o contemporâneo tal como o vemos nas ruas — antes, buscasse o que ele deveria ser. Tendo lido esse romance (e visto como a mimesis é igualmente bem-sucedida, ainda que represente um outro lado da realidade), percebi que fugir da representação não era a solução, mas sim fugir de livros que repisam estigmas patriarcais — ainda dominantes, mas já decadentes.

Em suma: era uma questão de gosto. Se gosto de ler romances para conhecer outras vidas possíveis — mas não necessariamente ler várias vezes a mesma história, levemente repaginada, sob o olhar do homem médio de sempre —, é do meu interesse que eu procure ativamente por tais narrativas. Como uma cuja protagonista tenha as opiniões a seguir — sem que isso necessariamente signifique algo além de um modo de pensar sobre a moda.

Eu gostava da idéia de estar me tornando mais atraente e, na minha compreensão particular de psicologia da moda, isso não queria dizer tornar-se mais feminina. Ao contrário, minha tendência era rejeitar tudo o que estivesse contaminado com os conceitos de fragilidade ou excesso de fofura, como laços, petit-pois, rendas, sapato boneca, acessórios dourados, estampas de coração. Aquilo não tinha nada a ver comigo.

Some, à mimesis não conservadora, uma narradora em primeira pessoa não ensimesmada, que não é do tipo “me aceitem como sou, só o que tenho é o meu olhar” (pois que — em um romance relativamente curto — consegue nos dar acesso a um número bom de personagens), e talvez entenderá por que gostei do livro.

Questão de gosto, eu sei.

Próxima curva
Aquela viagem era mais um fracasso irresistível. 

Encaminho-me para o final citando dois pontos em que Todos nós adorávamos caubóis se diferencia (positivamente) de minhas leituras recorrentes.

1. Não consigo me lembrar de muitas narrativas estilo road trip protagonizadas por mulheres. Ok, há o filme Thelma & Louise — mas o aspecto mais libertador da viagem delas só ocorreu depois de virarem foras-da-lei, quando uma mata o estuprador da outra. Bom ver outro tipo de história sendo contada.

2. A página 45 (e muitas das seguintes). Abstendo-me de maiores revelações (“sem spoilers, por favor”), importa dizer que, para alguém acostumado a sutilezas, elipses, vaguezas, metáforas ou simples omissão no que concerne ao tema em questão (em especial, na literatura brasileira contemporânea), surpreendi-me com a franqueza do romance. Há casos em que não falar abertamente de um tema deixa tudo mais interessante, até mesmo assustador — creio que seja o caso das flores azuis do Flores azuis, de Carola Saavedra. E há casos como o de Bensimon.

Dispenso o filme de caubóis — não são todos que os adoram. Em vez disso, aproveito para pensar o que Carol Bensimon estará aprontando ali, na próxima curva, em seu próximo livro. Será mais uma boa viagem? Será mais um fracasso irresistível?

Certamente estou torcendo por tempo bom e por um bom motor.

Leia entrevista com a autora.

Todos nós adorávamos caubóis
Carol Bensimon
Companhia das Letras
192 págs.
Carol Bensimon
Nasceu em Porto Alegre, em 1982. Estreou com as narrativas de Pó de parede (2008). Em seguida, publicou Sinuca embaixo d’água (2009), ganhador da Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Literária. É colunista no jornal Zero Hora e uma das integrantes da edição Os melhores jovens escritores brasileiros da revista inglesa Granta.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho