Faz muito tempo que a literatura marginal deixou de ser exclusividade da periferia. Em verdade, é correto afirmar que seus pressupostos — seja de natureza temática, seja no tocante ao estilo — jamais estiveram tão incorporados à produção literária como nos últimos anos, quando até mesmo os saraus das regiões mais afastadas das grandes cidades servem de pauta para reportagens e cobertura midiática de toda natureza. Enquanto isso, nos bairros nobres, os cursos livres se debruçam sobre a produção poética que vem do subúrbio, ora nos textos em prosa, ora no Rap; de igual modo, nas universidades, os departamentos de teoria literária estudam o surgimento e a consolidação desse fenômeno. Nessas pesquisas, em meio a tantas referências, um nome não pode faltar: trata-se do escritor paulista João Antônio (1937-1996), intérprete do submundo, de quem a editora Cosac & Naify lançou há pouco Contos reunidos. Mais do que os textos de ficção do escritor, a coletânea traz, ainda, fortuna crítica, com artigos assinados por Antonio Candido, Alfredo Bosi e Tânia Celestino de Macedo, além de alentada apresentação do escritor Rodrigo Lacerda.
No texto de apresentação, Lacerda chama a atenção para o fato de que João Antônio passou um bom tempo numa espécie de esquecimento que, de certa maneira, se confunde com o contexto sombrio e melancólico da notícia de sua morte. Dito de outra forma, assim como o escritor, que morreu sozinho e teve seu corpo encontrado já em estado de decomposição, seus contos e crônicas estavam largados, dispersos, longe das editoras e da memória dos leitores. Rodrigo Lacerda menciona, a propósito, as palavras de Fernando Bonassi para ressaltar o quanto essa condição era constrangedora: “O escritor João Antônio aparentemente morreu sozinho nesse local ainda hoje chamado de Brasil e ficou vários dias em seu quarto. Eu digo aparentemente, pois desconfio que o escritor João Antônio estava morto nesse local ainda hoje chamado de Brasil algum tempo antes disso…”.
Provocações à parte, é realmente constrangedor que um autor como João Antônio, cuja obra remonta a autores como João do Rio e Lima Barreto, seja com freqüência esquecida por aqui. E diferentemente desses dois autores, João Antônio não está localizado num período pouco estudado da história literária (como é o caso de João do Rio), tampouco ficou marcado por determinado posicionamento político contrário aos interesses da agenda político-cultural do seu tempo (como foi o caso de Lima Barreto). O autor de Leão-de-chácara participou mesmo da geração de escritores que foi reconhecida pelos críticos em seu tempo. Mais, até: integrou a mesma imprensa cultural que, anos depois, o relegaria ao ostracismo. Assim como acontece nesse exato momento com escritores de igual talento, que, por um motivo ou outro, têm seu acesso ao grande público bastante limitado. A esse roteiro, deve ser acrescentado o fato de que João Antônio escrevesse um tipo de literatura que tem pouco a ver com o jogo de linguagem, com os esquemas de redação criativa — o paradigma do momento. Em vez disso, preferia as narrativas cuja prosa era mais direta — e, num primeiro momento, de estrutura mais simplificada. Engana-se, no entanto, quem imagina que a literatura era por esse motivo mais superficial ou rasteira. Havia, isto sim, um estilo genuíno e um autor consciente do que estava escrevendo.
E o primeiro aspecto que chama a atenção no texto de João Antônio é sua proposta literária, identificada no texto de Rodrigo Lacerda em duas passagens. Na primeira, existe a mostra do quanto esse mesmo autor que foi relegado ao ostracismo já gozou de certa glória literária entre a crítica especializada. “Foi um sucesso retumbante de crítica, graças à força e à sensibilidade do conjunto, e ao ímpeto de artesão do jovem escritor. Graças, também, à rede de relações literárias que soubera estabelecer, e ao fato de ser um legítimo representante das classes trabalhadoras no meio literário, o que já pegava bem nessa época (e pegaria ainda melhor logo depois).” Com efeito, João Antônio está incluído na categoria dos escritores cuja articulação do texto é fruto de um trabalho de reelaboração a ponto de os tiques estilísticos e certos cacoetes de redator estarem sublimados. Quem ganha com isso é sua literatura, com força suficiente para apresentar personagens que remontam à conturbada biografia do autor, como também pontuou Lacerda na passagem acima. Sobre isso, é interessante observar como o escritor era, com freqüência, situado como portador de uma voz não apenas oriunda da classe trabalhadora, mas, essencialmente, do sudeste brasileiro, numa espécie de regionalismo tardio. Consta, nesse aspecto, que fora comparado com o modernista Antônio de Alcântara Machado, cujos livros Brás, Bexiga e Barra-Funda e Novelas paulistanas são expoentes de uma prosa urbana que mescla a genuína fala popular com os dramas de uma classe média baixa (muitos e muitos anos depois, esse grupo ainda se encontraria sem outro representante legítimo nas letras). Em verdade, nem mesmo João Antônio se sentia à vontade com esse paralelo.
O outro aspecto a ser destacado é o fato de que João Antônio talvez seja o único representante de certa literatura de “índole macha”, isto é, com personagens e ambientes que dão conta de dilemas e formação do homem tanto na perspectiva do caráter quanto em relação às aventuras pelas quais precisa atravessar para se tornar um sujeito experimentado. Esse é um dado que deve ser levado em consideração sobretudo em histórias como Meninão do caixote. Ali, tem-se a história de um garoto que, sem referências masculinas, se torna alvo fácil de um aproveitador, num caso que, antes de ser tema de literatura, se tornaria um prato cheio para discussões sobre a exploração de crianças. João Antônio, no entanto, não escolhe o caminho suave da denúncia. Em vez disso, decide mostrar o quanto o garoto desenvolve sua experiência de vida numa trajetória que pode ser comparada à de um herói sui generis. Isso porque seu grande feito, sua travessia neste que pode ser um conto de formação, se dá quando ele, enfim, se liberta da escravidão travestida de liberdade. No texto, para além dessa provação emocional, há espaço para momentos de lirismo, como o que segue: “Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando safadezas. O colégio me enfarava, era isto. Não conseguia prender um pensamento, dando de olhos nos companheiros entretidos com latim e matemática”.
Com isso, temos aquele que seria o embrião para a educação sentimental de muitas personalidades do final do século 20 no Brasil. Afinal, certo desprezo pela cultura e pelo saber permeou o imaginário popular do senso comum, que, por sua vez, elogiava a educação da “escola da vida”, como se esta, ainda que fora dos livros, fosse detentora de um saber superior. E é curioso como esse saber se desenvolve de forma orgânica, uma vez que este mesmo personagem —“um menino, não tinha quinze anos”— tomava consciência de sua condição à medida que também conseguia reparar no mundo que desabava ao seu redor. É dessa maneira que ele percebe, por exemplo, que o comportamento da mãe se torna mais irritadiço:
Veio uma repreensão incisiva. Mamãe nervosa comigo, por que sempre nervosa? Quando papai não estava, os nervos de mamãe ferviam. Tão boa sem aqueles nervos… Sem eles não era preciso que eu ficasse encabulado, medroso, evitando irritá-la mais ainda, catando as palavras, delicado, tateando. Ficava boçal, como quando ia limpar a fruteira de vidro da sala de jantar, aquele medo de melindrar, estragar o que estava inteiro e se faltasse um pedaço já não prestava mais.
É notável, aliás, como nos contos de João Antônio os personagens desenvolvem tamanha capacidade de perceber o mundo à sua volta; semelhantemente, também, eles reparam no desdobramento dos eventos que os rodeiam. Mesmo assim, não há em suas vozes qualquer marca de cinismo ou sarcasmo; existe, sim, certa ingenuidade ao perceber a vida como ela é, com suas frustrações, reviravoltas espetaculares e surpresa — sensações que são igualmente experimentadas por seus leitores à medida que lhes são revelados os desfechos das histórias. Um bom exemplo disso está em Fujie, história que trata de um triângulo amoroso. O caso é que a narrativa não apresenta um canalha traindo o seu melhor amigo por maldade ou coisa do tipo. O que se lê é um sujeito incapaz de controlar seu destino, um pobre-diabo pouco afeito a se relacionar com o pai, mas que encontra no amigo não apenas uma compensação, e sim um verdadeiro porto-seguro. E é exatamente este grande amigo que sofrerá o revés de sua traição. Se, do ponto de vista da moralidade contemporânea, alguém pode não considerar este um caso grave, da maneira como a história está relatada não há outra palavra para qualificar essa atitude que não seja repugnante. Ainda assim, para além do fato de João Antônio não impor um julgamento moral para com os seus personagens — na visão de mundo do autor, os protagonistas pouco podem fazer para reagir a este mundo tenebroso; eles são vítimas do meio, pré-determinado, ao qual fazem parte —, também é correto afirmar que o leitor, no limite, se identifica com este protagonista, da mesma forma para com os personagens de relevo concebidos pelo autor.
Escritor de classe
Outro elemento que não escapa à literatura de João Antônio é a idéia de pertencimento de classe existente em seus personagens. Com isso, para o bem e para o mal, sua prosa revela personagens vivendo no limite, à margem do concreto, entre o remediado e classe média-baixa, pendendo mais para a primeira condição. Num momento em que poucas vozes das artes investem no segmento da suposta nova classe média, a classe C, é interessante observar como o escritor já concebia uma narrativa que, enfim, dava voz a uma população que, grosso modo, não é representada na literatura brasileira, como aponta o livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, fruto de um estudo acadêmico assinado por Regina Dalcastagnè e publicado recentemente pela editora Horizonte. Nesse sentido, a vantagem é que a obra de João Antônio larga na frente de gerações mais recentes que tentariam elaborar uma ficção que revela o que não é dito nesses grupamentos, quer nos textos consagrados, quer nos relatos oficiais.
Em contrapartida, é bem verdade que, em certo momento, a literatura de João Antônio se tornaria excessivamente esquemática ao apontar as vicissitudes de personagens que mais se parecem a pobres-diabos, sem eira nem beira, que vivem numa espécie de malandragem idílica: não possuem ocupação formal, mas não são agressores bárbaros e violentos. É o que se lê, por exemplo, no conto Malagueta, Perus e Bacanaço, um clássico do autor. No texto, o que se percebe é uma espécie de ode à malandragem, com seus personagens articulando, de forma ardilosa, uma maneira, um esquema, um meio de se dar bem não como método de (apenas) tirar proveito de determinada situação, mas, antes, de promover meios para sua própria subsistência. O trecho a seguir é bastante ilustrativo a esse respeito:
Haviam andado na noite quente! Bilhar após bilhar, namoraram mesas, mediram, estudaram jogos lentamente. Não falavam não. Picava-lhes em silêncio, quieto mas roendo, um sentimento preso, e crispados, um já media o outro. Iam juntos, mas de conduta mudada e bem dizendo, já não marchavam em conluio. Bacanaço, mais patife, resmungava aporrinhações, lacrava-lhes na cara que a vida na Água Branca poderia ter rendido mais. Espezinhava. E aquela tensão ia ficando grande. (…) Malagueta, arisco. Conhecia aquilo como a palma de sua mão. Para a ganância besta não haveria o que bastasse. Um esbagaçaria o outro e juntos estraçalhariam. O velho os alertou, que era bom o conluio.
A questão dessas vidas à margem foi observada pelo próprio autor, como se nota pelo texto publicado pela primeira vez em uma coletânea de contos de João Antônio na década de 1980. Para além das interpretações possíveis sobre o significado dessa história, chama a atenção o fato de o escritor assinalar que “tudo o que tenho feito em minha vida apenas tem me dado noções da minha precariedade. Um sentimento de falência, certo nojo pela condição dos homens e até ternura, às vezes; quase sempre — pena”. É como se o autor apresentasse os elementos centrais de sua prosa, ainda que a materialização disso tenha um significado um tanto esquemático a depender do texto. Em linhas gerais, no entanto, é correto afirmar que, mais do que sua preocupação, ser um escritor de classe fazia parte de seu projeto literário.
Sobre isso, Antonio Candido, na “Fortuna crítica”, observa que João Antônio estabeleceu não somente um estilo direto, mas “uma espécie de uniformização da escrita, de tal maneira que tanto o narrador quanto os personagens, ou seja, tanto os momentos de estilo indireto quanto os de estilo direto, parecem brotar juntos da mesma fonte”. O crítico repara que narrador e personagem se fundem, formando um lençol homogêneo, forjando o próprio universo criado em suas histórias. Nesse aspecto, vale a pena destacar que muitos daqueles que, sem citar o escritor, emulam seu estilo são incapazes de elaborar um projeto semelhante. Em outras palavras, os imitadores não passam de copistas envergonhados, mas que, numa prosa precária, sob o subterfúgio, referendado por certa visão escolástica, de reproduzir a “fala do povo”, sequer conseguem alcançar verossimilhança em suas descrições. Assim, em vez de construir um cenário, produzem, com efeito, um castelo de cartas na areia movediça de suas limitações. E o resultado é um arremedo literário que só funciona conforme os arquétipos frágeis da pós-modernidade. João Antônio, por sua vez, goste-se ou não da temática, propôs histórias que dialogavam efetivamente com um contexto urbano, cultural, lírico e intelectual que efetivamente pertenciam às franjas, à periferia, ainda quando esta era não somente evitada, como também invisível ao seqüestro das elites educadas e cheias de boas intenções.
E João Antônio só alcança isto graças a um domínio pleno da linguagem. Isso quer dizer que temos em mãos o melhor dos prosadores brasileiros do século 20? Muito longe disso. Ocorre que o autor de Abraçado ao meu rancor sabia o que estava fazendo. E sua prosa remonta ao que há de mais bem elaborado na literatura brasileira do século passado, como Lima Barreto, lembrado por Antonio Candido no texto que acompanha o livro. Diz o catedrático: “tratando-se de João Antônio, é quase inevitável evocar Lima Barreto, um de seus prediletos, inclusive pela capacidade de remar contra maré”. Assim como Lima Barreto, João Antônio destoava do português castiço, preferindo uma expressão mais coloquial e inteligível. Assim como Lima Barreto, João Antônio observava ao seu redor com o incômodo olhar da melancolia, sem a atitude blasé de certa intelligentsia, mas com a consternação dos constrangidos em ver “o jogo triste da vida”, expressão que pode sintetizar suas histórias.
Palco da melancolia
Se a temática de João Antônio pode ser traduzida por uma espécie de recidiva do spleen, também é certo que esse mal-estar tem lugar para acontecer: São Paulo, cidade que possui apenas um tom de cinza, o triste, sobretudo nos bairros destacados por João Antônio: não se tratava daqueles espaços artificiais concebidos para a fina flor da boemia proto-intelectual paulistana, assim como a paulicéia já não era mais desvairada; em vez disso, o que se tem é o contexto do desengano permanente, da capital da solidão onde a única válvula de escape parece ser o olhar desconfiado e a rejeição de suas formas aparentemente mais simplórias. Se o Brasil não é para amadores, a cidade de São Paulo, ensina João Antônio, é para almas que possuem mais do que vontade de vencer: é necessário que o instinto de sobrevivência desbrave os caminhos, rompendo as portas fechadas, ao mesmo tempo em que a sensibilidade vai sendo deixada de lado.
De forma notável, o escritor da literatura de índole macha defende que só a força de caráter pode vencer as batalhas travadas todos os dias nas esquinas dos bairros que, mesmo não aparecendo nos jornais, representam o habitat do morador de São Paulo, como se observa no conto Natal de Cafuá:
Agora a caminho da subsistência. À Lapa, buscar pão e carne na subsistência, viagem de todas as manhãs. Eu gostava do volante, adorava o volante. E mais, gostava daquelas idas à Lapa, porque me deixavam sozinho, atravessando a cidade toda, todinha. E bairros, e bairros, lá ia eu. Santa Cecília, Perdizes, Pompéia, ia tão contente no caminhão, que o caminhão parecia meu.
Localizações que, na pena de João Antônio, remontam a outro escritor de mesmo nome e igual pretensão: no Rio de Janeiro do início do século 20, João do Rio compôs uma radiografia da vida urbana na capital federal em A alma encantadora das ruas. À sua maneira, João Antônio compôs um diagnóstico equivalente da vida nos bastidores de São Paulo. Assim como João do Rio, João Antônio foi esquecido pela intelectualidade, sendo lembrada de tempos em tempos sua relevância.
Na coletânea Contos reunidos, o João Antônio que reaparece é multifacetado: o prosador das franjas da cidade, o escritor que defende a sólida formação de caráter, o contista que redescobre a cidade alcançando o todo através de suas partes, e, enfim, o autor cujo texto enxuto, seco e de corte preciso, consegue ser dono de uma obra capaz de equacionar princípios e estilos. Eis um motivo para não esquecer João Antônio.