Nossos terremotos

"Ruína y leveza", de Julia Dantas, é um romance que parte de um sofrimento para chegar a um recomeço
Júlia Dantas, autora de “Ruína y leveza”
04/12/2015

Você pode ser um refugiado de guerra ou estar bem no meio dela, entre explosões. Você pode viver uma das várias situações extremas de exclusão da sociedade, racismo, homofobia, ser um invisível na pobreza absoluta das ruas, consumindo alimento pela energia de poder lutar por outro. Você pode ter pouco ou pouquíssimo acesso a água potável. Você pode não ter nenhum acesso a um banho, a uma escova de dentes. Você pode ter perdido toda a sua família de forma bruta. Você pode ser vítima de violência sexual uma vez ou repetidamente. Quantas são as possibilidades de intensa infelicidade na vida humana? No entanto, a angústia, a depressão, a tristeza, o que chamamos de sofrimento não conhece graus de intensidade de acordo com os fatos, não respeita a comparação racional entre desgraças. A gente sofre e não quer sofrer, na lama ou num confortável sofá. Choramos diante da morte uma lágrima ou desesperadamente por perder o ursinho preferido. Somos nós, palácios e ruínas de carne, osso, alma; entre hematomas, pomadas, gesso, fraturas, demolições e reformas em andamento.

Ruína y leveza é um romance que parte de um sofrimento para chegar a um recomeço. A personagem central, Sara, a narradora do livro, tem pouco menos de 30 anos de idade, trabalha como publicitária em Porto Alegre, tinha um namoro tido como perfeito, por ela e pelos amigos. Mas o cara, Henrique, uma vez contou que teve um lance com outra mulher e, apesar das tentativas de perdão, Sara rompeu e desabou. O desencontro com a vontade de viver do mesmo jeito a levou a viajar. Daí o livro é também um diário de viagem, com muitos detalhes de cidades e vivências no Peru e na Bolívia. Mas dizer que é um romance de viagem reduz a história, que é muito mais de transformação, recheada por metáforas, texto fluido, reflexões e pensamento crítico. Costura bem-feita.

O capítulo inicial é um ataque fulminante. Velocidade e suspense. Claustrofobia crescente. Ele engana. O restante do livro tem outra intensidade na narrativa, é bem mais detalhado, descritivo em alguns momentos. Não pior por isso, apenas diferente. Nesse começo, quando ainda não sabemos o nome da narradora-personagem, ela e um outro rapaz estão em Potosí, na Bolívia, e contratam um mineiro local para um tour em uma mina de estanho. Quando descem por um buraco muito estreito, com a intenção de se aproximarem do aperto dos trabalhadores, acontece um terremoto:

Estico as pernas até encostar os pés na parede oposta. Forço as solas dos sapatos contra a terra, como se minha força sozinha pudesse segurar as placas tectônicas.

Passam-se quase 150 páginas para o leitor descobrir o que aconteceu, se saíram vivos dali. Esse percurso traz recortes da vida de Sara, separados de forma bem clara e alternada, em capítulos. São três, digamos, lugares da história dela. Dois deles em Porto Alegre: o amor de Henrique, causa de sua grande decepção; e a tentativa de se reerguer na areia movediça que se tornou a vida dela na capital gaúcha, atolada em álcool e excesso de trabalho. O terceiro é a viagem pelos Andes, grande parte no Peru, quando conhece o andarilho argentino Lucho, com quem se enfia na mina e vivencia com ele o terremoto.

A experiência na mina, logo no começo, é um acontecimento e ao mesmo tempo metáfora de tudo. O descer ao fundo poço, o medo do fim de tudo com o terremoto, o abraço e a pretensa proteção de uma pessoa próxima.

Sara é garota de classe média. Vive na camada que pode se chamar de elite na humanidade — boas condições de higiene, educação, cultura, família, diversão. Mas vive um vazio grande de uma hora para outra, que começa a abrir quando rompe o relacionamento com Henrique, um relacionamento que caminhava para casamento. Ela passa a questionar tudo. Em um momento, percebe que os amigos ao redor tampouco alcançaram grandes feitos. Um namoro dela com um garoto bem mais jovem, Diogo, que ganha a vida fazendo maquetes, a faz refletir: depois de anos de serviços prestados, ninguém tinha nada concreto para expor em casa, um objeto no qual apoiar as mãos e declarar com orgulho isso é o que eu vou deixar no mundo”. Referia-se à turma que trabalhava “com palavras jogadas no ciberespaço”, em marketing, notícias ou artes.

Canto de Galeano
Durante a viagem, Sara ganha de presente um livro escrito por Eduardo Galeano. É para lhe ajudar a ver tanta América Latina. Mas depois disso o livro não é mais citado. Nem parece implícito que o leu. Talvez funcione como metáfora. A moça aprofunda suas experiências na realidade do continente. De turista curiosa ela se torna uma viajante. Isso ocorre justamente em Cuzco, no Peru, quando conhece uma estudante peruana bem mais jovem. Cria-se uma amizade. Entra na casa da menina e até vai com ela a outra cidade, visitar a avó. É um lugar longe dos Andes, Peru-Amazônia, prestes a ser alagado para a construção de uma hidrelétrica. A obra é brasileira. A desgraça, universal. Os moradores, a maioria muito humilde, vão ser deslocados ao indefinido, apresentado pelas autoridades como um lugar melhor. Nos dias que passou conversando com a velha, descobrindo uma vida muito diferente da que se acostumou em Porto Alegre (mesmo confessando que essas experiências estão ali também, na periferia de sua cidade grande), Sara parece começar a descolar do passado e ampliar sua visão de mundo, seus conceitos sobre a vida.

Na volta a Cuzco, ainda ajuda a menina a resolver uma questão muito séria. E precisa para isso empenhar-se emocionalmente e financeiramente, dois aspectos frágeis desse instante dela. O que o texto passa é um amadurecimento da personagem.

“Turistas voltam para casa com malas mais pesadas. Viajantes voltam com mais leveza”, lhe diz Lucho. O episódio na mina, o que abre o romance, cava mudança profunda no que Sara deseja como destino.

Sonhos
Interferem na narrativa páginas cinzas sob o título Diário de sonhos, numerados. Depois de alguns deles, um diálogo entre Sara e Lucho esclarece: foram sonhos que teve quando era bem mais jovem, e os registrou num caderninho. O argentino conta que não se lembra dos seus. Mas a presença enigmática deles no romance pode ter leitura mais significativa. Por meio de situações próprias do inconsciente, eles transmitem sensações que podem dizer algo mais sobre momentos da narrativa. Então, a autora oferece outra dimensão da leitura.

O problema disso é que a interpretação de sonhos é normalmente uma especialidade de psicanalistas. Vale o jogo, a tentativa de tornar o leitor um analista, Sara no divã? Outra chave possível desse Diário de sonhos é a poesia que essas intromissões oníricas trazem. E aí, se o campo é o da literatura, Freud e Jung nos aliviam de seus olhares.

Ruína y leveza
Julia Dantas
Não Editora
208 págs.
Júlia Dantas
É gaúcha de Porto Alegre (RS). Tem 30 anos e cursou mestrado em escrita criativa na PUC do Rio Grande do Sul. Contos seus foram publicados em antologias. Ruína y leveza, seu primeiro romance, foi finalista do prêmio Açorianos, oferecido pela Prefeitura de Porto Alegre.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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