Um escritor que escrevesse como ficção a história política brasileira a partir de 1945 seria acusado de inverossímil.
Saindo de uma ditadura, o país elege um presidente conservador e legalista, depois o ditador volta como líder populista, se mata e abre caminho para um presidente desenvolvimentista que passa a faixa presidencial a um arrivista que renuncia e cria as bases para uma ditadura militar. Vinte anos de torturas e opressão, o Congresso elege um presidente que não toma posse, deixando o poder para o líder de um partido conservador, que sai da Presidência desgastado, favorecendo outro arrivista. Depois de anos de democracia e liberdade uma crise política gestada no Congresso, aliada a mecanismos jurídicos, leva ao poder um deputado que por trinta anos nada fez além de desafiar os preceitos democráticos.
Isso de fato aconteceu.
Degeneração, o novo romance de Fernando Bonassi, embora não tenha a política como foco principal, reflete toda essa instabilidade institucional, afinal não é vão o alerta de Luiz Ruffato: “quem quiser compreender, em profundidade, o Brasil pós-ditadura militar tem que ler a obra, coerente e fecunda, de Fernando Bonassi”.
O enredo do novo romance apresenta um homem tentando liberar o corpo do pai, um ex-policial (ou apenas um ex-informante?), morto em um hospital de São Paulo na véspera do segundo turno da eleição presidencial de 2018. O drama do protagonista se confunde com a estrutura política do país, permanentemente presa a um universo de chantagens e favores nem sempre republicanos.
Na esteira de apenas dois dias, tempo ficcional do romance, é reavivado o conflito entre pai e filho, que se agrava com o surgimento de doloridas verdades, como metáfora da história brasileira. Este desvelamento vai construindo uma ampla temporada de traições e tramas irreversíveis. E quando, enfim, chega o confronto inevitável, tudo é tarde, já não há espaços nem tempo para conciliações.
Na destilação desses sentimentos pobres está a desestruturação familiar. Não é apenas o protagonista que vê descer a máscara heroica do pai. Todos veem e se assustam com o monstro que surge no lastro das ações daquela ditadura nascida numa atabalhoada renúncia e que ameaça voltar, pelo menos em espírito, no dia seguinte à morte do velho informante.
Há uma cena bem representativa desse clima tétrico.
Num cemitério, ao visitar a tumba da avó, o protagonista se encanta com a miséria de uma cova, com uma cruz caída onde se lê: Sepultura 1106 – Carlos Marighella, 5/12/1911 – 4/11/1969. O pai o recrimina pelo gesto de compaixão. Era um tempo em que ainda a polícia impunha medo, um tempo que ganhava outros contornos sociais:
Lembra que nessa época os seus amigos fardados já não se exibiam de uniforme pelo bairro — soldados encagaçados com as reviravoltas no estado de coisas, abandonavam as carcaças das fardas nas esquinas em que colaboravam e voltavam para casa como paisanos.
Embora não deixe isso explícito ou escancarado, Bonassi põe o dedo na ferida sempre aberta do conservadorismo, político ou não. É sempre o novo tentando, quase inutilmente, inutilizar a barreira que atravanca avanços progressistas.
É preciso conceder que a minha irmã caçula, a sua princesa, ela foi mais bem-sucedida em envergonhá-lo do que todos nós juntos. Como nenhum de nós, irmãos de sangue, ou mesmo minha mãe, pobre coitada, como nenhum outro membro da sua família, a minha irmã o envergonhou bastante, é preciso dizer. Ela lhe criou imensos problemas, o fez passar por inúmeros dissabores, o aborreceu em diversas ocasiões, e ainda precisou de seus favores e que você pedisse favores em nome seu e dela a quem lhe desprezava, constrangia nos cartórios de protesto, na décima oitava delegacia, nos quartéis da força… Isso nunca lhe fez bem à saúde… E precipitou sua queda…
Agora era ele, o protagonista, quem botava a vergonha num saco e saía à cata dos antigos amigos do pai morto, gente que tanto desprezava, para pedir favores e liberações. Como sempre o conservadorismo precisa de bodes expiatórios para sobreviver em sua má dinâmica, sobretudo nos subúrbios, espaço tão presente na prosa de Bonassi, onde uma classe média baixa se equilibra, na medida do possível, entre a violência e a desesperança.
A síntese da sociedade, ou pelo menos de seus sentimentos mais caros, marca essa família não tão estranha quanto parece. O velho ia às delegacias assistir às sessões de espancamento. O filho narrador tenta fugir da condição de espelho, mas se afunda no sentimento mesquinho da xenofobia, do desprezo pela impossibilidade que carrega e que não o deixa dar um passo além do subúrbio. Ou seja, como num processo permanente de recorrência, a roda da vida gira para voltar ao lugar de origem. É mais ou menos como nosso ciclo histórico. Desgraçadamente estamos sempre de volta àquilo que mais nos fere e marca.
O que mais assusta nisso tudo é que Fernando Bonassi está inserido numa escola literária que podemos chamar de novo realismo, a mesma vertente de autores como Marçal Aquino e Luiz Ruffato. Como nos ensinam no ensino médio, escudados num texto de Massaud Moisés, “genericamente, o vocábulo (realismo) designa toda tendência estética centrada no ‘real’, entendido como soma dos objetos e seres que compõem o mundo concreto e social. Neste caso, é possível entrever a existência de escritores realistas desde sempre”. Destarte, se no passado a escola fez a festa de Machado de Assis e Raul Pompéia, recentemente encantou autores como Antônio Torres e Sérgio Sant’Anna e, enfim, chega revitalizada na prosa de Ferréz e Maria Valéria Rezende.
Bonassi com sua obra, sobretudo com este novo Degeneração, leva o realismo à sua essência mais concreta. A descrição do subúrbio, das pessoas atônitas, da violência gratuita, da desumanidade dos hospitais, da necessidade de favores e proteções antirrepublicanos, tudo enfim, descreve uma sociedade ferida e doente. No entanto, uma sociedade mais real do que sonha todas as nossas esperanças.
Degeneração é um livro dolorido por expor nossa impossibilidade de reação às mazelas contemporâneas. E nos deixa com saudades de Monteiro Lobado cuja maior dúvida era saber se o Jeca teria capacidade de reagir à pobreza. Como a saúva não acabou com o Brasil, chegamos aonde chegamos, infelizmente.
Bonassi nos conta isso com uma linguagem gélida, mas viva, real.
Reclamo do tempo de espera e da inutilidade de tudo isso, já que estamos falando de quem e do que morreu, mas, para minha surpresa, o funcionário técnico de laboratório e folguista de necrotério, ele defende com veemência o suposto rigor da papelada, a burrice da burocracia, as vias coloridas acumuladas, estatísticas desperdiçadas e a perda de tempo generalizada como necessária à verdadeira prática da justiça, já que nos matamos muito uns aos outros, de fato.
Bonassi trabalha com metáforas, e assim nos diz o quanto estamos mortos e que a queixa, mesmo ao bispo, é inútil.