Há tempos a violência intriga e assombra a humanidade. Sociedades inteiras surgiram e desapareceram sob o estandarte da agressividade, sempre carregado por pessoas que não se importam em dizimar o próximo. E, ao que tudo indica, a capacidade de ferir, de causar mal e até mesmo de matar, está intrinsecamente ligada à nossa natureza.
O modelo do “bom selvagem” vivendo em um paraíso perdido, como proposto pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), já não parece tão convincente. No entanto, é preciso relembrar que, para o próprio filósofo, a História caminha na direção da violência. Estudos importantes apontam que o instinto violento é algo inerente à grande parte das formas de vida encontradas na natureza, incluindo a nossa. Pouco importa a distância, a cultura ou a tribo, a violência não é apenas uma construção social e cultural. Pelo menos é o que aponta o resultado das pesquisas.
O arqueólogo Lawrence H. Keeley, no livro War before civilization (Oxford University Press, 1996), dedicou-se ao estudo do uso da violência e da guerra em povos da pré-história e da atualidade. O resultado é desconcertante para os rousseaunianos otimistas: mais de 90% das sociedades que conhecemos têm a guerra como uma de suas principais atividades.
No reino animal, entre nossos parentes mais próximos, o caminho parece seguir na mesma direção. Na busca por uma resposta sobre a origem da violência, Richard Wrangham e Dale Peterson, autores de Demonic males: Apes and the origin of human violence (Mariner Books, 1997), descobriram a incrível inclinação dos chimpanzés machos a cometerem atos violentos de forma “covarde”. Uma ação típica não só entre a nossa sociedade, mas também em tribos de caçadores-coletores de diversas regiões do planeta.
Com ajuda da ciência, hoje, depois de muita controvérsia, é possível falar na existência de uma colaboração biológica para as causas do crime. Alguns séculos atrás, o médico e psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1835-1909) foi o primeiro a defender a ideia de que a origem para o comportamento violento que leva ao crime estava ligada ao cérebro. De início, seu trabalho foi visto como visionário, mas não demorou para cair em caminhos obscuros, no rastro da frenologia de Franz Gall, utilizado para a defesa de teorias alicerçadas no racismo e na eugenia.
Parece surpreendente que, mesmo após milhares de anos de evolução humana, estes instintos e inclinações não tenham sido adequadamente domesticados. A violência continua a ser nosso anátema, nossa marca de Caim. Uma mancha que continua a se espalhar por toda malha da história e que atinge todas as camadas. Para quem sofre com ela diretamente, fica o trauma, que impede o sujeito de assumir o controle da sua própria narrativa.
Autoficção e tragédia
Depois de arrebatar leitores e críticos com o seu primeiro romance, o escritor francês Édouard Louis apresenta uma narrativa mais dura e mais dolorida em História da violência (2020). Batizado com o nome de Eddy Bellegueule [Eddy Bonitão], o autor precisou lidar com piadas e xingamentos homofóbicos durante toda sua infância e adolescência. Em O fim de Eddy (2018), conta como foi crescer como homem gay em uma minúscula vila operária. Por conta da qualidade e da pungência da sua escrita, não demorou para o livro se tornar um best-seller e ser publicado em mais de 20 países.
Em História da violência, Louis se utiliza da autoficção (estilo que ajudou a consagrar nomes como Marguerite Duras e Karl Ove Knausgård) para relatar o inferno pelo qual passou quando foi violentado por um homem que havia convidado para sua casa às vésperas do Natal de 2012. A noite em questão havia começado com um simples flerte nas ruas de Paris, mas, como num piscar de olhos, terminou repentinamente com um estupro e atos brutais de violência que culminaram com uma tentativa de assassinato. Tudo isso descrito de forma quase visceral:
Quando ele apontara seu revólver, a pergunta que eu me fazia já não era: Será que ele vai me matar, porque naquele momento já não me restava nenhuma dúvida, era irreversível, ele ia me matar e eu ia morrer, naquela noite, no meu quarto, eu me rendia às circunstâncias com aquela capacidade que cada indivíduo tem de ceder e de se adaptar a todas as situações, é só olhar para a História, mesmo nos contextos mais antinaturais e atrozes, os homens se ajustam, eles se adaptam…
Mais do que apenas narrar o trágico episódio, Louis exibe os rastros psicológicos deixados pela experiência traumática pela qual passou, como a falta de ar constante; a busca incessante por qualquer coisa que o ajude a não pensar naquelas terríveis horas; o medo de ser novamente atacado e a aversão pela pessoa na qual involuntariamente havia se transformado.
Não bastasse sofrer nas mãos de um desconhecido pelo qual havia se apaixonado em um encontro casual, Édouard teve ainda que lidar com outras questões problemáticas, como a burocracia da lei e a perda de sua própria história. O livro é intercalado por diversas vozes, que por vezes parecem se confrontar para ver quem deve assumir o controle da narrativa. Boa parte de História da violência traz longos diálogos de sua irmã com o marido, nos quais ela conta os detalhes do que havia acontecido com Louis, sempre com aparente autoridade.
Além disso, existem as interrupções constantes feitas pelos policiais, que não se esforçam para esconder comportamentos homofóbicos e xenofóbicos. Também fica evidente a pressão sofrida para que Louis prestasse queixa e os procedimentos exaustivos conduzidos por pessoas de índole no mínimo duvidosa. Os depoimentos, exames clínicos necessários e a reconstrução do crime obrigam o jovem a contar várias e várias vezes a mesma coisa, fazendo com que a sensação de ser agredido e subjugado por uma força maior que a sua viesse à tona a cada momento.
Em meio a esse turbilhão de sensações e emoções que se digladiam na cabeça do narrador, a prosa de Louis cria imagens muito claras e sem floreios, por vezes cruas, das cenas que descreve, mas sem perder certa qualidade etérea que aguça e atrai o leitor. Entre suas referências como escritor estão nomes como Michel Foucault (1926-1984), Simone de Beauvoir (1908-1986) e Didier Eribon, seu ex-professor e amigo pessoal.
“Tenho traços em mim de autores que eu amo”, disse Louis em entrevista para a Folha de S. Paulo. “Penso apenas em frases que funcionam, que são legíveis. A verdade tem o seu ritmo, de certa forma. É minha única preocupação.”
Para encontrar os traços da violência, não é preciso fazer uma arqueologia muito profunda, já que ela nos cerca a cada esquina, a cada passo. Entretanto, é preciso muita coragem e determinação para escavar e levar à luz a violência sofrida no próprio corpo. Ao fim do livro, uma coisa fica bastante clara ao leitor: Édouard Louis é um escritor de coragem e determinação.