Os reluzentes óculos do dr. Athos Fadigati o anunciam como um homem distinto. Mas estamos diante de uma história de queda do herói. Podemos reconhecer que a literatura, para além de suas aspirações artísticas, reflete a experiência humana. Assim, também é natural que algumas das maiores obras literárias se ocupem de períodos de barbárie, nos quais o conceito de humanidade foi levado ao extremo. É o caso de Os óculos de ouro.
Publicado em 1958, o livro do italiano Giorgio Bassani perscruta a cruel gestação do fascismo. A intensa atividade militante do autor está inexoravelmente mesclada aos escritos de sua autoria, que o consagraram como um dos principais nomes de sua geração. A chegada da ficção de Bassani ao Brasil nos mostra que, antes do fenômeno Ferrante e sua Tetralogia Napolitana, a Itália já contava com um time de escritores disposto a escrever sobre o regime fascista e seu impacto no país.
Herói trágico por excelência, o dr. Fadigati vive na pequena cidade de Ferrara, terra dos anos de formação de Bassani. A narrativa tem início na década de 1930, em meio à eclosão da Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, Fadigati segue os preceitos da medicina moderna, o que agrada a comunidade local. Sem dúvidas um homem respeitável, ele reúne, por excelência, todos os atributos valorizados pela sociedade burguesa. Mas algo é estranho para essa sociedade. Fadigati não buscava uma senhora.
A partir desse ponto, surgem insinuações acerca da homossexualidade do médico. Bassani se apropria da temática pioneira em um período de forte repressão, tal qual outros grandes autores como Thomas Mann, Christopher Isherwood e Stephen Spender. Em exemplo dos preconceitos e da forte vinculação à normatividade da época, há referências à “inversão sexual” de Fadigati, chamado de “degenerado” por outra personagem.
Ainda que a linguagem direta de Bassani o distancie das experimentações pós-modernistas da época, a forma de Os óculos de ouro está classificada no limiar. A novela, uma das possíveis categorias para a narrativa, é usualmente vinculada à tradição literária, com dicção que remete ao clássico. Entretanto, grandes nomes da literatura como Thomas Mann e Franz Kafka subverteram o gênero em direção à literatura moderna. Contudo, a ficção também pode ser considerada um pequeno romance, que vai na direção contrária às radicalizações formais das décadas anteriores.
Embora Fadigati seja o personagem central da narrativa, funcionando como o fio condutor que a une, o próprio narrador reivindica a nossa atenção. Na abertura de seu relato memorialista, ele afirma: “O tempo começava a torná-los mais raros, mas não se podia dizer que fossem poucos os que ainda se lembravam do dr. Fadigati em Ferrara”. Dois tempos coexistem no livro: o dos acontecimentos narrados e o da própria narração. Mas o pretérito comanda Os óculos de ouro assim como os rastros do fascismo determinam os rumos da sociedade italiana.
Adiante, sabemos que o narrador era um jovem estudante de letras, vindo de uma abastada família judia. O doutor se insere, não sem suspeitas, entre seu grupo de amigos. Há indícios de que o médico aplaca sua solidão com eles, uma vez que percebe o desapreço dos mais velhos, descontentes com a expressão de sua sexualidade.
Juventude italiana
O livro oferece um panorama do cotidiano dos universitários abastados. Com o doutor Fadigati e o narrador, acompanhamos uma acurada descrição dos hábitos da juventude italiana e da cartografia do trajeto Ferrara-Bolonha. Longe da cidade pequena, os jovens se moviam com encanto pelas ruas, aproveitando dos prazeres que elas ofereciam.
Mais certeiro ainda é o retrato da burguesia italiana, marcada fortemente por seus preconceitos e pela adesão a um modelo de normatividade familiar, influenciado pelo fascismo. Dentro desse contexto, o protagonista Fadigati desvia desses pressupostos hegemônicos, tornando-se uma espécie de bode expiatório dessa sociedade condenada.
Como em grande parte das boas construções de personagem, há em Fadigati um equilíbrio entre o que ele próprio revela — principalmente aos seus jovens amigos — e o que é especulado sobre ele. Nas palavras do narrador:
Não há nada que mais excite o interesse indiscreto das pequenas sociedades de gente de bem do que a pretensão honesta de manter separados, na própria vida, aquilo que é público daquilo que é privado.
Os óculos de ouro se anuncia, desde o princípio, como uma narrativa de queda, uma vez que o destino trágico de Athos Fadigati está marcado na memória popular de Ferrara. A desonra do médico, em sentido semelhante à de David Lurie, personagem de J. M. Coetzee, se dá sob o signo de Eros. Fadigati se envolve com um dos amigos do narrador, um Adônis de olhos azuis, exaltado por seu corpo atlético. Dentro do ideal de perfeição clássico em todos os sentidos, o jovem Deliliers é a personificação da beleza grega que tanto encanta o doutor.
No pitoresco cenário litorâneo, é quase impossível não associar a paixão de Fadigati à outra ligação perigosa da literatura, também ocorrida em mares italianos. Trata-se do fascínio de Aschenbach, protagonista de Thomas Mann na novela Morte em Veneza, pelo jovem Tadzio. Contudo, enquanto as idealizações de Aschenbach restam como um devaneio secreto, a relação entre Fadigati e Deliliers é reconhecida à vista de todos, escandalizando a sociedade de Ferrara.
Um fato perturba a estabilidade do narrador, confortável em sua posição social: a incerteza acerca da promulgação das chamadas leis raciais, que se tornariam o Manifesto da Raça, em 1938. “Desde menino, eu escutava seguidamente falarem de uma eventualidade desse tipo para nós, judeus, sempre possível”, relata.
Alusões ao Duce, Benito Mussolini, instauram a atmosfera do livro, inserido no contexto histórico de ascensão do fascismo. Um dado curioso, na exploração do espírito contraditório da época, é a vinculação da burguesia judaica de Ferrara ao partido fascista, uma vez que grande parte dessa população considerava que a posição social distinta os protegeria da perseguição.
Exilado em sua própria terra, o narrador sente-se próximo do dr. Fadigati, outro excluído da hegemonia social. É esse lugar social periférico que cria o laço entre os dois homens e que, em parte, explica o tom do relato memorialista. Assim, o livro estabelece um paralelo entre a Itália fascista, a experiência dos judeus e a de Fadigati, visto como um membro desviante das normas sociais. A trágica figura do médico, padecido de amor, perdoa o seu algoz. Mas o narrador responde: “Ao ódio eu nunca seria capaz de responder senão com o ódio”.
A experiência do exílio marca profundamente o jovem judeu. Na difícil elaboração do próprio trauma, ele funde a sua ferida à trajetória de Fadigati, colocando-o no centro do relato. Dessa trama, ganhamos uma bela proposta artística. A temática do fascismo se repete na próxima obra de Bassani, O jardim dos Finzi-Contini (1962), considerada a sua magnus opus. Mas Os óculos de ouro é um rival à altura. Relato de um tempo de barbárie, o livro mostra o poder da humanização. Além de tudo, é uma bela lembrança do que a literatura pode ser: um jogo de espelhamento e identificação.