Em Autobiografia do algodão, da mexicana Cristina Rivera Garza, a memória comunitária, expressa por pessoas e plantas, é quem nos narra a história. Mesclando ficção e história, relatos e documentos, a autora vasculha o passado de seus familiares que viveram nos dois lados da fronteira entre México e Estados Unidos e que, como muitos outros nos séculos 20 e 21, viram o deserto do estado de Coahuila ser transformado em uma imensa plantação de algodão, por meio de um sistema de desvio de água para irrigação massiva. O romance narra duas viagens a uma cidade perto da fronteira. A primeira é realizada pelo escritor José Revueltas (1914-1976) na década de 1930, ao acompanhar como representante oficial do Partido Comunista do México os esforços dos camponeses nas plantações de algodão enquanto planejam uma greve, e a segunda pela própria escritora interessada nos seus antepassados.
José Revueltas aparece como personagem histórico que sinaliza as pegadas que serão seguidas por Garza para a reconstituição de um passado mal contado. Em 1934, o intelectual esteve no Distrito de Irrigação 4, na fronteira noroeste mexicana. Ao lado de trabalhadores, participou de assembleias, ouviu petições e observou o deserto se movendo de lugar enquanto as plantações de algodão se levantavam. Neste mesmo ano, ele publicou um dos livros que será uma referência para Garza, El luto humano. Revueltas chegou a ser preso e levado de prisão em prisão, incluindo a de segurança máxima, Las Islas Marías.
A pesquisa de documentos e a partir da obra de Revueltas, mas também de nomes como a da escritora e teórica Gloria Anzaldúa relevaram a história não apenas de camponeses e migrantes no final do século 19 e início do século 20 na fronteira entre Coahuila e Texas, mas das raízes familiares da própria escritora.
Quando comecei a ler El luto humano, pensei que José Revueltas havia cometido um erro de projeção mesoamericana ao descrever vários personagens de um romance baseado na fronteira norte do México como indígenas. Levei anos para entender que seus olhos de testemunha presencial haviam visto muito bem o território.
Assim, na junção de diferentes fontes, em pleno século 21, Autobiografia, mais do que revelar um capítulo pouco conhecido da história mexicana, o das plantações de algodão na região fronteiriça, hoje assolada pela violência do tráfico, mostra como ainda há muitas histórias por serem contadas, muitas delas que explicam o xadrez político e econômico do mundo. No caso da do México e dos Estados Unidos, a guerra contra o narcotráfico e a subsequente violência da região.
O livro também reafirma uma das preocupações da autora em obras anteriores e em seu trabalho acadêmico. Cristina Rivera Garza é socióloga, doutora em História e professora em um doutorado em Escrita Criativa, por ela fundado. Seus romances têm abordado a interface da história com a ficção a partir de “processos abertos”, o que inclui a participação ativa de leitores, também tema de suas investigações como crítica. É o que pode ser conferido nos ensaios Os mortos indóceis: Necroescritas e desapropriação (2024), Grieving (2011) e Geological Writings (2022), os dois últimos ainda não traduzidos para o português.
Diante da atual crise ambiental, Autobiografia nos apresenta uma escrita que investiga os rastros geológicos dos processos históricos e sociais na fronteira mexicana. Esta prática de escrita, que põe a história em revisão a partir de procedimentos literários, escava vestígios e imagina criticamente a história sonegada. Neste livro, além de seu trabalho mirar outras perspectivas históricas, ganha relevo os formatos utilizados na costura do texto. Na América Latina, além de Garza, esse tipo de escrita identifica as obras das argentinas Selva Almada e Gabriela Cabezón Cámara, e do mexicano Héctor Toledano.
A escrita como vestígio geológico
O que mais chama atenção na obra é o empenho de projetar na ficção o seu desejo de reconstituição de uma história de si a partir do outro, tensionando a própria classificação dada a seus textos: ficção. Não se trata, no entanto, de nada parecido com o que temos lido com o rótulo de autoficção, embora seja possível localizar zonas de contato entre as experiências de escrita de diferentes autores e também marcas biográficas como quando Garza fala da irmã, assassinada pelo ex-namorado em 1990, e tema do premiado O invencível verão de Liliana, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2024.
E não é apenas a noção de autoria que é questionada no texto de Garza. Ao mesmo tempo que a autora evoca uma presença que se mistura à ficção criada, borrando as fronteiras entre o ficcional e o não-ficcional, ela também desapropria documentos históricos antes “privados”. Assim, o arquivo também é colocado a serviço do mutualismo de linguagens empreendidas no livro. Isso explica por que pesquisadores como a colombiana Carolina Sánchez se refere a Autobiografia do algodão como “ensaio autoficcional” e “romance-arquivo”. Qualquer dessas classificações, mais que nomenclaturas, nos ajudam a ler a obra com atenção às duas forças centrípetas que apontam a violência na região, a disputa ambiental e a política.
A autobiografia, neste caso, desloca-se do “eu” associado à constelação biográfica ao assumir uma voz coletiva. O “nós” portanto é o autobiografado no romance, um nós composto por muitos tipos que ocupam os territórios descritos no livro, incluindo duas categorias que foram alijadas na história oficial: mulheres e plantas. Assim, o romance se insere no que a escritora Saidiya Hartman nomeia como “fabulação crítica” por também ser uma história “com e contra o arquivo”.
Garza utiliza fotos, registros civis, cartas e diários, associando-os a trechos de outros livros, pesquisas realizadas em bibliotecas e entrevistas e a história de seus avós e bisavós. Ela também inclui na ficção telegramas do escritor José Revueltas como quem atesta a realidade, retirando a história das plantações de algodão do esquecimento. A autora performa um arquivo alternativo ao que se sabe da região que alimentou um sonho megalomaníaco do governo da capital mexicana, resultando na alteração do ecossistema, do clima, em prol do capitalismo, sem se converter em benefícios aos trabalhadores e comunidades locais.
A literatura de Garza é, por fim a possibilidade de reparação das curvas intocadas pela história: “às vezes, um livro é uma forma de regresso: uma refamiliarização e um reparo. A conversa que é retomada depois de anos de sigilo”. Ou como sentencia a própria autora em Autobiografia: “re-escrever, que é ressuscitar”.