Nos limites da razão

No romance "Uma tristeza infinita", de Antônio Xerxenesky, um psiquiatra que trabalha na Suíça do pós-guerra tem sua própria sanidade posta em xeque
Antônio Xerxenesky, autor de “Uma tristeza infinita”
01/12/2021

A melancolia sempre foi uma epidemia na literatura. Presente na vida de muitos escritores, o sentimento de aperto passa dos autores aos personagens, potencializando-os. Dos russos como Ivan Gontcharóv, que descreveu o fastio do protagonista de Oblómov, a norte-americanos, como Carson McCullers, autora de O coração é um caçador solitário, romance que narra a vida de melancólicos marginalizados num Estados Unidos rural. No Brasil, o mais célebre personagem é Brás Cubas, de Machado de Assis, por meio do qual o autor criou um emplastro contra o mal, tornando suas Memórias póstumas um clássico absoluto.

Ainda que a melancolia atravesse os séculos, sendo matéria para gerações de escritores de prosa e verso, autores contemporâneos têm trabalhado com o tema inevitável. Muitas histórias sobre a psique podem embalar mentes atormentadas, e uma delas é Uma tristeza infinita.

O novo livro de Antônio Xerxenesky é ambientado em um gelado vilarejo suíço, cujo cenário lembra muito o descrito por Thomas Mann em A montanha mágica. É pela vida de Nicolas, um psiquiatra do pós-Segunda Guerra, que o leitor se surpreende com o cotidiano de uma clínica para doentes mentais, onde surge o debate sobre melancolia.

Conflito inicial
Na trama, o casal Nicolas e Anna está em tempo de conflito. As vidas no monótono vilarejo empertigam a moça, ativa e inteligente, que abdica da profissão para acompanhar o marido durante o período num lugarejo helvético. Confinada em um provincianismo que beira o fantasmagórico, a rotina leva Anna a se atrair pela pesquisa científica, o que a leva a Genebra — e a agrada.

As viagens de Anna são uma libertação. Ver a civilização e ter contatos físicos. Conforme o casamento dos dois vive essa inconstância, o conflito de personalidades se evidencia e Nicolas fica cada vez mais absorto em seu trabalho na clínica.

No lugar, o americano grandalhão Lee é um mudo que está petrificado e chama a atenção do médico. Mary, também americana, rói as unhas com desejo canibal e sofre de crises de pânico, convulsionando em choro ao lembrar de seu trabalho em uma base militar nos Estados Unidos.

Na clínica, um espaço bastante privilegiado, diferente dos sanatórios tradicionais que ficam nas montanhas, a técnica do diálogo e da psicanálise é valorizada, sendo o doutor um crítico ferrenho de métodos medievais de tratamento, como o de choque. O trabalho relativamente monótono preenche seus dias e vai abrindo questões existenciais acerca do seu próprio estado.

No caminho de volta para casa, duas trilhas. A primeira, pela estrada do vilarejo, Nicolas vence sem muitas complicações. Na segunda, que passa pelo bosque, grandes abetos cercam um misterioso campo de segredos, com ruídos, vultos e impressões.

Crise interior
Ao longo da história, o protagonista conhece Emil, novo interno da clínica, um contador de meia-idade que sofre sintomas de esquizofrenia. Ele acredita ver o diabo e tem um peculiar senso de humor, o que leva o médico a tratá-lo com mais abertura, colocando-se à mercê dos desvarios do homem. Aos poucos, o ateu Nicolas trava uma batalha interna, espiritual, que se complica à medida em que o tempo e o lugar começam a sufocá-lo.

Preocupado com seus pacientes e intrigado com as histórias responsáveis por colocá-los ali, Nicolas é um hipocondríaco que tem medo da morte. A condição acompanha o personagem desde a faculdade de medicina em Paris, quando o jovem médico começou com os sintomas, tendo em mente estar se deteriorando — a exemplo do Ivan Ilitch, de Tolstói, só que sem tantas complicações. A descrição de Xerxenesky a respeito da hipocondria é arrepiante. O autor capta os flagelos de quem é assolado por essa condição.

Nicolas, um intelectual bem-casado, de boa vida, começa a questionar seu passado e sua sanidade. Para um psiquiatra, ele começa sofrer silenciosamente — o que desperta a curiosidade de Anna, que cada vez mais está envolvida em um projeto de pesquisa sobre bombas nucleares. “Pensar em radiação era também pensar em Anna, e também pensar em câncer, em uma massa crescendo dentro do corpo, coagindo células a integrarem seu exército de destruição silenciosa”, escreve Xerxenesky.

Estilhaços mentais
Personagens vão colocando em Nicolas dúvidas frequentes, o que o leva a recorrer a um antigo tratado sobre a melancolia, obra que viajou consigo desde a fuga da França, então tomada pelos nazistas. O pai alcoólatra e judeu e a mãe que trocou de sobrenome para se livrar dos campos de concentração são algumas das lembranças que inundam os pensamentos caóticos do doutor, que adotou um sobrenome tradicionalmente francês.

Mas os estilhaços da guerra, para o personagem, ainda estão presentes. É como se no ar pairasse uma fuligem invisível, parte do inferno que foi o campo de batalha que se converteu a Europa. Culpado por ter saído da guerra sem pisar no front, mas em conflito pelo embate entre ciência e religião, Nicolas vaga às vezes só, procurando pelo demônio de Emil.

O médico critica os regimes totalitários, a origem das doenças mentais, aproxima-se cada vez mais de um desfiladeiro, no sentido figurado da palavra. Envolto de cadeias montanhosas deslumbrantes e de fantasmas do passado, ele sabe que “a compreensão humana a respeito da melancolia continua pífia. O homem melancólico segue inacessível. Um remédio pode eliminar os sintomas, mas não as causas”.

A trama desvela o personagem principal, colocando-o no limite da razão. Um romance envolvente e profundo acena para a continuação. Afinal, com a modernidade batendo nas portas do vilarejo suíço e a ciência ganhando estátuas de Nobel por meio da tecnologia, o debate acerca dos transtornos mentais segue candente e, na boa literatura, faz-se necessário que o leitor saia do livro sentindo um frisson. O que é o caso.

Uma tristeza infinita
Antônio Xerxenesky
Companhia das Letras
256 págs.
Antônio Xerxenesky
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1984. É escritor e tradutor. Publicou os romances As perguntas (2017) e F (2014) e os contos de A página assombrada por fantasmas (2011), entre outros livros. Sua obra está traduzida para o francês, espanhol, italiano e árabe. Vive em São Paulo (SP).
Matheus Lopes Quirino

Jornalista, é editor revista eletrônica de literatura Fina e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo.

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