Há cerca de trinta anos, o nome da uruguaia Marosa di Giorgio sem dúvida circulava entre os leitores brasileiros mais cultos e antenados na fecundíssima produção literária do chamado neobarroco latino-americano. O poeta argentino Néstor Perlongher, que viveu no Brasil (radicado em São Paulo) de 1982 até sua morte em 1992, já mencionava “o encanto preciosista de Marosa di Giorgio” na coletânea de poesia neobarroca Caribe transplatino, de 1991, pela Iluminuras, com tradução de Josely Vianna Baptista.
Em 2023, portanto há quase duas décadas da morte de Marosa (1932-2004), ressurgem seu nome e seu “encanto preciosista” em Rosa mística, também com tradução de Josely Vianna Baptista, a quem, aliás, devemos o melhor da nossa biblioteca de literatura hispano-americana traduzida e publicada no Brasil.
O pequeno volume, em edição caprichada, reúne quarenta e um contos do período final de produção da autora: o conto-título do livro e quarenta contos curtos sob o título de Lumínile. O livro traz ainda um posfácio de Eliane Robert Moraes (curadora da coleção Sete Chaves de textos eróticos) e um breve ensaio de Gabriela Aguerre, ambos os textos levantando paralelos entre o insólito da obra de Marosa e a do franco-uruguaio de quase um século antes Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont.
O insólito é um dos atributos evidentes dos contos de Marosa, e o que se entende por sua “erótica” está constantemente enleado ao fantástico, como o selvagem ao sagrado, com elementos mágicos, místicos e oníricos articulados por uma imaginação prodigiosa. Ramificações intermináveis, turbulências na atmosfera e nos corpos, cópulas delirantes de sexos vegetais e animais, cópulas de almas no ar, todo esse movimento insaciável da imaginação de que falava Néstor Perlongher, a transformar a língua em texturas extravagantes, com energia passional “dilapidada no furor”, esse borbotar subversivo, de um barroco que encontra o surrealismo, exubera nesses “contos eróticos”.
Encanto preciosista
Remonta à infância rural em Salto, “florido e espelhante Salto do Uruguai”, nas palavras da própria autora, a matéria familiar com que ela cria seu insólito mundo profuso de bichos lúbricos, árvores, flores, anjos, falenas, orvalho, bem como as figuras femininas da mãe Clementina, da avó Marianna, da irmã Nidia, da prima Poupée, da tia Josefina, todas envoltas em pátina de fábula. Os “poemas”, como ela nomeia muitas de suas histórias coligidas na edição de sua obra poética reunida Los papeles salvajes, são fruto daquele “encanto preciosista” que o leitor também encontrará nos contos de Rosa mística, “poemas” que têm da poesia seu caráter autônomo e uma excêntrica exuberância com poder de desbordar em breves páginas.
Remonta também a essa infância no campo, entre papoulas, laranjas, bestas e sombras, a “zona espinhosa e deliciosa” em que a escritora, ainda menina, iria habitar dali em diante, na presença de um Deus nunca austero, mas alegre, que “às vezes se disfarçava de papoula” e um dia lhe disse que seu “único destino era escrever poemas”. À abertura de Los papeles salvajes, Marosa recorda “todos aqueles seres — de meus ossos e de minha alma — que viveram comigo na idade do bosque” e dedica sua obra reunida a seus pais, com estas maravilhosas palavras de amor santo:
À memória e em homenagem de Pedro di Giorgio, meu pai, homem do céu, que passou pela terra, com a cruz às costas, e para quem todas as palavras são miseráveis; à minha mãe, Clemen Médicis de di Giorgio, que pôs em minha vida verdade e sonho, a lebre mágica. À mamãe, agora, com os anjos.
No mundo das “viagens esplêndidas” de Marosa ao redor de seus jardins de sonho, mulheres fornicam com cães, furões, zebras, morcegos, seus mamilos se abrem como pequenas bocas, cochicham entre si, deles brotam flores, borboletas, pérolas, chamas. Há uma fascinante sacralidade nessas vorazes figuras femininas, como a do conto-título Rosa mística, que quanto mais copula mais se sente ascender, até tornar-se Deus. Um erotismo mágico, jubiloso, sempre imprevisível, copioso de nomes fantásticos, querubins, luzes, névoas, sedas, gazes, himens que são rompidos e devorados, fetos paridos ou abortados, com sexos que exalam brasas, gotas de azeite, água benta, sexos de onde brotam ovos de codorna, que são masturbados por uma vara ou uma língua comprida de carneiro, sexos violados por uma sombra, um hibisco, um planeta, ou uma cruz ou o Diabo.
São muitas as imagens frondosas que poderiam ser elencadas aqui, como “estrelas em ramos de nardo”, chuvas de luz e de pedras preciosas, roseirais “em forma de tâmaras e maçãs e em forma de peras”, “corolas vermelhas, róseas, amarelas, os bulbos eretos”, e ainda mais: também sobejam as primeiras frases dos contos de Marosa como exemplos de aberturas que são fulminantes em sua carga de surpresa. Eis algumas delas:
Disseram que estavam carneando uma mulher.; Foi até a caixa e apanhou os seios.; Cada um tem sua cruz; então fomos pegá-la.; Fui viver com as flores.; Era de noite e veio um planeta; deixei de lado meu lavor e o jantarzinho.; Seu nome era Ana Rosa Dina Vurulírov Delia Laura Aurora Lumínile.; O bosque de casuarinas onde um dia o Diabo apareceu.; Voavam almas brancas como a neve, em cima das casas; a alma de minha mãe, a de papai, dos avós e de desconhecidos.; Estava ligada ao maciço de cogumelos que crescia numa abside do quarto.; Caçaram vários anjos.; — Não sei — disse ao sair do sonho.
Marosa começou a publicar ainda jovem, aos 21 anos, em 1953, em sua cidade natal “perto da água e da lua”, também incursionou pelo universo do teatro, que considerava “outra forma de Poesia”, e a partir da década de 1980 já era figura bem conhecida dos cafés de Montevidéu (para onde se mudou após a morte de seu pai) e em leituras públicas de seus textos. Segundo seu biógrafo Leonardo Garet, Marosa “sabia as distâncias entre a autenticidade e o êxito, e entre esse e a honestidade intelectual. Preferia sempre a mesa do café à acadêmica e abordava com mesma naturalidade e interesse pequenos temas e os transcendentes”.
Com uma obra literária exuberante e completamente autêntica, que figura desde há décadas entre os grandes poetas transplatinos e os luminares do neobarroco, a autora torna agora a circular entre os leitores brasileiros, finalmente traduzida nessa feliz coletânea erótica, que cumpre ser uma bela amostra de seus jardins de seres e gozos fantásticos. Também mais do que uma amostra de sua obra, esse livro de Marosa bem servirá para adubar a imaginação de nossos escritores, ou, ao menos, inspirar-lhes uma mais ousada sede de viagem ao redor dos próprios canteiros.