Nos intestinos da escrita

Miguel Sanches Neto narra em forma de diário a saga para escrever o romance "O último endereço de Eça de Queiroz"
Ilustração: Fabio Miraglia
01/11/2022

Um livro em potencial persegue o escritor. Durante sete anos, desde o período sabático que passei em Portugal, imaginei este romance que só consegui escrever quando tinha pouquíssimo tempo disponível, dada minha condição de reitor de uma universidade pública. Como mantenho um diário, é possível acompanhar aqui as alegrias e as agruras do romancista que desempenha em paralelo outra profissão.

Nasce a ideia para o romance

24 de agosto de 2015 (Braga, Portugal)
Projeto de um romance sobre Eça. Um jovem escritor passa um tempo em Portugal.

27 de agosto de 2015
À tarde vaguei pelo centro de Braga e fiz fotos dos poemas de um autor que se apresenta como Homem Mudo. Na cidade com tantas placas informativas nos prédios de interesse histórico, seus poemas cumprem uma função crítica.

4 de setembro de 2015
Inauguraram em Lisboa uma casa-museu-hospedagem em que o turista pode dormir na cama em que Saramago se encontrava com Isabel da Nóbrega.

1º de outubro de 2015
Vou colhendo impressões para o romance sobre Eça. Por enquanto, resta-me apenas uma escrita imaginária, que se desfaz em minha memória.

13 de outubro de 2015 (Lisboa)
Pela manhã, visitei o apartamento em que Saramago viveu anos com Isabel da Nóbrega. Está em estado precário, o que denuncia o abandono afetivo em que sua ex-companheira envelheceu, enquanto via crescer o renome do escritor que ela ajudou a formar. A conta de água ainda vem no nome de Saramago.

30 de novembro de 2015
Madrugada de insônia. Foi nesta roleta de pensamentos inquietos que se definiu melhor o projeto do romance sobre Eça, que saiu do imaginário turístico, dando lugar a Saramago.

27 de maio de 2016
Voltamos faz pouco tempo de Baião, no Douro. Visitei a casa que guarda móveis e outros pertences de Eça. Não é a casa em que ele viveu. Apenas passou algumas noites nela. Não é também o endereço de um antepassado de sangue.

30 de maio de 2016
Sonho com Saramago. Por quê? Não sei, faz tempo que não releio seus livros. Talvez já seja o romance, estou dentro da ficção que ainda vou inventar.

20 de julho de 2016 (Baião)
Ontem foi um de meus melhores momento em Portugal. Refiz o Caminho de Jacinto, dentro do romance A cidade e as serras.

A escrita do romance se impõe

18 de março de 2018
Hoje li uma crônica de convocação de espíritos — prática comum no século 19. Eça também participava destas tentativas de contato com o além. Veio-me a vontade de retomar a ideia do romance.

15 de julho de 2019
Desde que li uma matéria de um rapaz que largou o emprego para fazer uma oficina em Paraty, na Flip, e assim se tornar escritor, tive a intuição de que este era o perfil que eu precisava para meu projeto e, na tarde livre — recesso na universidade — escrevi as primeiras páginas do livro.

16 de julho de 2019
Já não tenho vida. Todo o tempo destinado ao romance picaresco. O narrador se chama Rodrigo S. M e está se revelando um personagem potente. Hoje, mais um capítulo. Depois do almoço, dormi em um cobertor sob minha mesa de escrita, sonhando o romance. Meu tempo é dele. Minha filha me disse que havia muito não me via tão alegre.

21 de julho de 2019
Terminei o terceiro capítulo, começado na quarta à tarde. O narrador, mentiroso compulsivo, se torna ao mesmo tempo risível e comovente. Minha ideia é passar do humor para o drama profundo no final. Mas o livro ainda não tem contornos, apenas uma direção.

26 de julho de 2019
Aproveitei para não sair de casa e me dediquei ao novo capítulo. Rodrigo S. M. chega a Lisboa. Eu não sabia por onde começar, ficava dando voltas mentais sem a menor ideia da primeira frase. Sou um escritor que precisa da primeira frase. Mexendo em um papel onde tomei notas sobre diversos assuntos, encontro a continuidade do romance: “Não desci em Lisboa, desci na língua portuguesa”. E a narrativa seguiu estas palavras.

27 de julho de 2019
O mais difícil em um romance igual a este é que não tenho a história. Ela se acumula em parcelas.

28 de julho de 2019
Levantei às 4h e vim para a biblioteca revisar o capítulo de ontem. São os personagens que jogam para a frente a narrativa. A entrada da catalã Txel na história deu ao romance uma nova dinâmica.

O risco de abandonar a escrita

4 de agosto de 2019
Todo o tempo livre que tenho dedico ao romance. O livro vai na frente, eu o sigo. Enquanto escrevo, a mão alegre sobre o teclado, surgem personagens e cenas.

17 de agosto de 2019
Fechei um capítulo iniciado dias atrás. Na hora de recomeçar, o medo de não conseguir. A retomada por isso é lenta. Mexemos no que já está escrito e quando menos percebemos o texto corre solto, levando-nos a lugares desconhecidos.

31 de agosto de 2019
Não saí de casa nem para ir ao jardim. O dia todo mergulhado em mim. O que significa mergulhado no romance novo. Em meio a tantas preocupações com a universidade, o romance me convoca a todo momento.

2 de setembro de 2019
Convivendo com o novo capítulo. Imagino cenas, escolho lugares, construo mentalmente frases, embora não tenha tempo de escrever durante a semana. Apenas no sábado posso dedicar um dia inteiro à história e, no domingo, meio dia para a revisão.

21 de setembro de 2019
Acordei de madrugada e vim para a biblioteca. Tentei retomar o romance no qual não mexo há uns dez dias. Não consegui nem abrir o arquivo. Fiquei fazendo outras tarefas e só às 10h30 entrei na história.

22 de setembro de 2019
Stephen King, em suas vinte regras para escrever, diz que a produção de um romance não pode ultrapassar três meses. Um tempo plausível para quem só é escritor. No meu caso, será um ano de trabalho, com as interrupções inevitáveis.

13 de novembro de 2019
Dias de muito trabalho na universidade. O escritor mora longe. Sobram para ele as horas mais improváveis, quando não tem mais força.

19 de novembro de 2019
Leio o romance As mãos e as luvas, de João Gaspar Simões, uma ficção perversa baseada em seu casamento com Isabel da Nóbrega (que depois viveria com José Saramago), e que no livro se chama Albertina, Tininha.

2 de janeiro de 2020
Hoje trabalhei a manhã toda na revisão, com muito medo no início. O narrador criminoso e lírico do livro vai causar revolta. Acho que entrei de novo no livro ou ele entrou em mim.

4 de janeiro de 2020
Revisei a parte escrita do romance e hoje escrevi um episódio totalmente histriônico. O narrador é um falastrão que mente o tempo todo, ora é burro, ora inteligente. Tenho que manter esta dubiedade até o fim.

5 de janeiro de 2020
O livro chegou a um impasse. Como ele tem algo folhetinesco, posso agregar novos episódios à vontade. Tenho apenas que cuidar para definir para onde ele vai crescer. Restam-me cinco dias de férias para tentar concluir.

6 de janeiro de 2020
O capítulo escrito ontem — Carta a Tininha — me agradou. Deveria estar feliz, mas estou sem vontade para nada. E isso interfere em minha imaginação. Pela primeira vez, não sei para onde conduzir o relato.

16 de janeiro de 2020
Achei a continuidade. O narrador vai ser cooptado para uma festa de nazistas por ser um ariano careca. Dia do aniversário de Hitler.

22 de janeiro de 2020
Tomei nota do próximo capítulo sem a menor vontade de trabalhar nele. As anotações em uma folha avulsa me olham e me acusam, com uma raiva que me assusta.

23 de janeiro de 2020
Tirei um novo capítulo do buraco negro onde moram as histórias não escritas. E estou novamente em um impasse. Não sei para onde enviar meu personagem cínico. Estes intervalos surgem para que eu tenha tempo de imaginar a continuação.

22 de fevereiro de 2020
A história quer ser escrita. Não sou maior do que ela.

23 de fevereiro de 2020
Para incluir Braga nos lugares literários, reli O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor, de Luiz Pacheco. Saiu um capítulo apimentado para entrar no estilo de Pacheco. Fiz uma abordagem erótica da Nossa Senhora do Leite, imagem que está na Sé, a mais antiga catedral do país.

24 de fevereiro de 2020
O romance exige um realismo de estrutura. O leitor lê melhor quando o resultado final tem a mesma ordem da escrita. O segredo de um texto ágil é a produção comandada por um vetor narrativo.

27 de fevereiro de 2020
Depois da janta, com o resto de energia que tinha, escrevi 707 palavras do romance. Ele está com as brasas vivas, é só assoprar.

O romance entra na parte final

26 de março de 2022
Em meio à crise da pandemia, dediquei-me à escrita do romance, terminando o primeiro capítulo da parte final. O narrador está se transformando em um alguém mais humano.

29 de março de 2020
Noite mal dormida, mente em atividade, expandindo-se. Quando eram 16h30, mais um capítulo estava rascunhado. Parei o trabalho para conviver um pouco com a família.

1º de abril de 2020
São 22 horas e começo meu plantão literário. Não sei o que conseguirei escrever neste estado de exaustão. Tomei banho e me troquei para me dedicar ao romance.

8 de abril de 2020
Nestes dias de muito trabalho online na universidade, não consegui me dedicar ao romance. Escrevi uma página ontem, mas com uma leveza que mostra que o livro está indo pelo caminho que o capítulos anteriores abriram. Quanto mais fortes estas narrativas já escritas mais tendem a ocorrer encaixes. Há momentos em que percebo os cliques das peças se juntando.

10 de abril de 2020
Levantei cedo para trabalhar no capítulo adiado. Havia 500 palavras, fiz mais 1.500. À tarde, revisei o material e organizei mentalmente o próximo capítulo enquanto corria 10 km na esteira aqui da biblioteca.

26 de abril de 2020
O livro vai se encaminhando para o final. Fiz a passagem do narrador em contato com o chão fértil do Douro.

25 de maio de 2020
No sábado, dia de trabalho intenso no romance. Nem saí da biblioteca. Resultado: um capítulo de duas mil palavras e o próximo pensado em linhas gerais.

22 de maio de 2020
Aproveitando uma folga, trabalhei até a hora do almoço no romance. E agora à noite na revisão. Faltam talvez dois capítulos para concluir o copião.

29 de maio de 2020
Escrevi uma página e meia do penúltimo capítulo do romance, que está com 79.500 palavras. Por que esta ânsia de concluir? Pois estou na fase em que as pessoas mais desaparecem. Por isso escrever, para não morrer. Também por vício. Gosto de concluir as coisas.

1º de junho de 2020
Sempre jogo fora o primeiro capítulo do romance. Agora pensei em jogar fora o último antes de o escrever, o que deixaria a narrativa mais misteriosa. Se isso se sustentar, concluí o romance ontem.

O medo da primeira leitura do conjunto

7 de julho de 2020
Ainda nem mexi no arquivo do romance.

15 de agosto de 2020
Temo encontrar não o livro que escrevi e sim o que se escreveu contra meus planos.

22 de agosto de 2020
Semana de muitos compromissos e de tensões. Na segunda de madrugada, comecei a revisão. Tive a impressão de que o início é um pouco lento.

29 de agosto de 2020
Comecei a gostar deste livro com o qual convivo imaginariamente desde 2015. O narrador criminoso tem força lírica.

Revisão é igual a insatisfação

17 de setembro de 2020
Concluí a primeira revisão. Não tenho tido tempo de passar as alterações para o arquivo. O romance se deixa ler bem, mas não sei se é por meu apego a ele ou por suas eventuais qualidades.

27 de setembro de 2020
Mandei-o a Luciana Villas-Boas. Ele percorre agora o seu caminho, longe de meu domínio. O depois de um livro é menos importante do que o seu durante.

5 de janeiro de 2021
Em regime de meio expediente, embora oficialmente em férias, consegui revisar três vezes o primeiro capítulo. Este tem que ser o mais esférico possível, polido como uma bola de aço.

7 de janeiro de 2021
Mal imprimo a nova cópia do capítulo longamente pensado e retrabalhado, no mínimo três vezes a cada dia, e surge a necessidade interior de ler mais uma vez e depois outra e outra. Pela extensão, o romance é traiçoeiro, porque muita coisa volta e é preciso eliminar as repetições.

14 de janeiro de 2021
O medo do escritor diante da primeira revisão de um romance. A cada capítulo vivo este temor. Escrever é não deixar de incluir nada. Revisar é não deixar sobrar nada.

16 de janeiro de 2021
Noite mal dormida, o que me empurrou para a biblioteca às 3 da manhã. Caí direto na revisão do romance. Reescrevi cinco ou seis vezes os parágrafos, em uma luta física com o livro. A cada melhoria de uma frase, sinto-me recompensado. A simples troca de uma palavra é o triunfo da literatura.

24 de janeiro de 2021
Meu melhor reservo para o romance.

6 de fevereiro de 2021
Avaliando os capítulos impressos antes e depois, vem a sensação de que as páginas ficaram mais limpas, como se antes houvesse uma poluição de palavras.

11 de fevereiro de 2021
Romance em revisão lenta. Problemas da universidade muito intensos, o que me absorve de maneira quase completa. Agora o ritmo é de um capítulo por semana.

13 de fevereiro de 2021
Hoje, o dia será do romance. Vou concluir a revisão do capítulo que se arrastou por toda a semana e tentar ler em voz alta, uma única vez, as 40 páginas que faltam. Conceber o capítulo como um soneto em versos livres.

14 de fevereiro de 2021
O plano de fazer leituras corridas dos últimos capítulos não deu certo. Permaneci com o método de um por dia. Na revisão, o livro inteiro é questionado a partir de detalhes.

3 de março de 2021
Levantei às 3 da manhã e vim trabalhar. Concluí a revisão do penúltimo capítulo. Cortei 25 páginas, de capítulos inteiros a pequenas palavras.

Nos intestinos do romance

22 de janeiro de 2022
Comecei a trabalhar nas sugestões certeiras de Luiz Schwarcz e Emilio Fraia. São pequenos ajustes de textos até agora — fiz 50 páginas. Nesta fase não releio todo o romance, apenas tento resolver as questões levantadas. É um serviço sujo. Estou agora nos intestinos do romance.

26 de janeiro de 2022
Reorganizei os capítulos, tirando as idas e vindas no tempo, e comecei o trabalho de retalhar a narrativa. Vou deixá-la 30% menor para limpar o texto dos excessos de delírio do narrador. Nada que não seja necessário sobreviverá nesta última versão.

1º de março de 2022
Carnaval. Concluí a reforma dos últimos capítulos. Um trabalho corrido para não perder o ritmo final da narrativa, que é crescente. Talvez o valor deste livro seja colocar o leitor em um lugar incômodo. O romance padrão do agora pacifica o leitor, dando a ele a certeza de estar do lado certo da humanidade. No meu livro, quero que ele se sinta mal ao acompanhar um narrador criminoso.

9 de julho de 2022
Nestas semanas, revisei o texto já preparado pela editora. Foram mais de 400 alterações. Das iniciais 212 páginas no word restaram 38, o que achei bom. Este relato de um narrador mitomaníaco não pode se alongar muito. Assim, o romance ganhou mais velocidade, sem perder a natureza farsesca da primeira fase, em que Rodrigo S. M. mente para si mesmo, passando por uma pequena e precária redenção na segunda fase, em que ele assume o próprio nome e se reencontra com seu eu rural.

O último endereço de Eça de Queiroz
Miguel Sanches Neto
Companhia das Letras
184 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho