Colaborou Roberto Vigna
A graphic novel O mundo sem fim, com texto de Jean-Marc Jancovici e desenhos de Christophe Blain, trata das mudanças climáticas, da questão energética, do crescimento populacional. Trata, enfim, do risco de interferirmos no planeta ao ponto de torná-lo inabitável para humanos.
Precisamos falar tanto do texto quanto das imagens. É uma HQ, afinal de contas. E, como toda publicação do gênero, o todo é maior que a soma das partes.
Começaremos pelo texto.
O livro evita o pessimismo e o derrotismo que permeiam os canais de comunicação sobre o aquecimento global. Não chega a ser otimista, por outro lado. O cinismo sobre política e sociedade é parte presente em todo o texto.
O que falar e o que não falar são, de uma forma geral, escolhas igualmente dotadas de significado. O texto tem lacunas importantes, como o fato de que, através de acordos internacionais, novas tecnologias e mudanças de comportamento, nós conseguimos resolver o problema do buraco na camada de ozônio. Lacunas também são discurso, sempre.
Compreender a figura de Jean-Marc Jancovici é uma tarefa complexa e, por isso mesmo, interessante. Nessa obra, ele é um personagem que precisa ser lido dentro da tradição do diálogo socrático. Sendo que, aqui, Sócrates é o Christophe Blain enquanto Jancovici ocupa o papel do sábio. Um sábio com muitas nuances e aparentes contradições. Ainda assim, um sábio didático e claro. Essa constante dialética do personagem só o faz mais interessante.
Discurso fora do padrão
O mundo sem fim te surpreende a cada página. Jancovici tem um discurso fora do padrão tanto do capitalista selvagem quanto do ativista ecológico. Os dados que ele apresenta não são necessariamente novos, mas a estrutura da argumentação é.
Em Um mundo sem fim há um subtexto: o nacionalismo francês, em alguns momentos até mesmo Gaulleano, que ecoa no texto como uma charge política do Le Monde.
O livro passeia pelas principais grandes “soluções” propostas mundialmente, como reduzir a população a 1/3 da atual (Thanos tinha razão?), adoção da energia eólica e/ou solar, não consumir mais produtos de origem animal, parar de comer carne, entre outros. Esse é um dos pontos fortes da publicação.
A maior falha do texto é a visão demasiadamente francesa. A mesma que agora ecoa pela Nigéria e pela África como um todo. O pensamento de que o mundo é uma longa coleta de recursos e não de relações humanas é, em essência, colonialista. Curiosamente, Jancovici diz que não fala abertamente sobre superpopulação porque soa como neocolonialismo (talvez porque seja).
Não falar sobre janelas demográficas, a premissa do corpo estriado e sua implicação sobre a animalidade do humano e uma declaração ultrapassada sobre superpopulação dão uma sensação de um outro economista que viveu no século 19: Thomas Malthus.
Apesar dessas questões apontadas, é uma excelente história em quadrinhos científica. Em tempos onde a ciência ou é incensada como último biscoito do pacote ou refutada a partir de dogmas sem sentido, é um alívio ter em mãos uma publicação que trata a ciência com respeito e com crítica nas medidas certas.
Muito se fala sobre transição energética, sobre tipos de combustíveis diferentes etc. Jancovici trata do assunto de forma clara, objetiva, embasada e direta. A questão do combustível fóssil, por exemplo, é tratada a partir de fatos e não de emoção. Sabemos os problemas ambientais e esses não são evitados, mas O mundo sem fim não se furta de falar, por exemplo, que
O petróleo salvou as baleias. Antes, o óleo de baleia era usado para iluminação — inclusive para os faróis costeiros. A tal ponto que elas estavam ameaçadas de extinção. Principalmente as cachalotes. Era preciso ir cada vez mais longe para caçá-las.
Nessa página é reproduzido um desenho publicado na Vanity Fair em 1861 de um grande baile dado pelas baleias em homenagem à descoberta de poços de petróleo na Pensilvânia. Ou seja, não é uma informação nova.
Indo contra os raciocínios simplistas, óbvios e da moda, o texto defende o uso da energia nuclear. Essa é uma posição conhecida do autor, especialista em energia e clima. Para efeitos de transparência, é uma posição compartilhada pelos autores dessa resenha.
O capítulo de que mais gostamos é o A culpabilidade, onde diz:
O mundo da ecologia se divide em 2 categorias. Aqueles que querem a morte do pecador. E aqueles que querem sua redenção. Eu quero sua redenção. A culpa é inibidora da ação.
A culpa ser inibidora da ação é um conceito interessantíssimo que vem de Freud. Ele define o mal-estar como sendo essencialmente a sensação de culpa. O mal-estar, ainda segundo Freud, é o maior entrave ao projeto civilizatório. Jancovici vai queimar essa ponte e afirmar que a culpa é, direto e reto, esse entrave.
Nada contra queimar pontes. Entretanto, ao não explicar bem o conceito do mal-estar na civilização, Jancovici também evita (propositalmente?) falar da violência como expressão desse sentimento de culpa.
Todas essas significantes e expressivas lacunas são resolvidas na imagem.
As imagens
Falemos das imagens, então.
Christophe Blain, o brilhante ilustrador, é também um personagem no livro, assim como Jancovici. Ele faz o papel do leigo, dentro da estrutura do diálogo socrático. Curiosamente, é o ilustrador de Sócrates (Fulgencio Pimentel, 2018), livro de Joann Sfar, que conta as aventuras de um cachorro filósofo da Grécia Antiga. A dupla Sfar-Blain produziu também Blueberry: amargura apache (HQueria, 2020) e Héraclès (Dargaud, 2002). É autor também de En cuisine avec Alain Passard (Gallimard, 2011) e Quai d’Orsay (Dargaud, 2011). Ele gosta do gênero quadrinhos de não-ficção.
É uma das características da narrativa gráfica que as imagens atuem não como ilustração direta do texto mas como conteúdo primário. Ou seja, como narrativa. Não é surpreendente, portanto, que O mundo sem fim seja assim. No assunto, recomendamos o maravilhoso Lendo imagens (Companhia das Letras, 2001), de Alberto Manguel.
As imagens de Blain dão ao livro o equilíbrio e o contexto do conteúdo onde às vezes o texto falha. Falamos aqui além dos inúmeros infográficos. Falamos aqui do toque de humor e de crítica social na hora certa.
É, por exemplo, a imagem do Homem de Ferro bebendo petróleo de modo insaciável na página 91, que dá a entender o conceito do corpo estriado, que só será explicado na página 185. No Brasil, estamos mais acostumados a pensar mais em dopamina do que no corpo estriado. Não são sinônimos, mas são parceiros próximos.
O livro não tem requadros. Requadro é aquela moldura dos quadrinhos, delimitando a cena. A leitura de O mundo sem fim acontece fluidamente por causa das calhas. Calha é o nome que damos às margens entre conteúdos de uma mesma página. Também chamamos de calha o espaço que separa as colunas de um jornal.
Há uma certa poesia metalinguística em um livro com lacunas no texto que escolhe a calha como principal condutora narrativa entre cenas.
A graphic novel O mundo sem fim é daqueles livros que desejamos que todo mundo leia. Não apenas pelo prazer da leitura e beleza das imagens mas também pela necessidade social. E, principalmente, para embasar e fomentar o debate e a reflexão sobre nós, o mundo e nós no mundo.