Nos becos da memória angolana

Poesia de Ana Paula Tavares combina signos da modernidade e formas fixas da tradição oral para reordenar o caos do presente
Ana Paula Tavares, autora de “Como Veias Finas na Terra” Foto: Ozias Filho
01/03/2022

Ana Paula Tavares nasceu em 1952, na cidade de Lubango, sudoeste angolano, e foi criada por uma madrinha portuguesa desde os nove meses de idade; madrinha que prezava pelos hábitos e costumes portugueses em casa. Por conseguinte, recebeu uma educação portuguesa e, apesar de só ter deixado a casa da madrinha para se casar, durante a infância e a adolescência chegou a ter algum contato com as etnias locais de seu entorno, principalmente com a tradição de sua avó paterna, os kwanyama, etnia que habita uma zona vizinha de Huíla (região dos povos mwilas). Mais tarde, Paula Tavares (como ela assina em seus livros de poesia) buscou conhecer melhor as tradições de sua região por meio de leituras e de suas pesquisas como historiadora e arqueóloga.

Suas experiências de formação e busca nutriram uma memória pessoal e poética, acrescidas com a vivência do contexto social de colonização, da guerra pela libertação, das décadas de guerra civil posterior e do seu olhar perspicaz sobre o espaço de subordinação reservado à mulher na sociedade angolana.

Desde seu primeiro livro, Ritos de passagem, de 1985, a poesia de Paula Tavares distingue-se e sobressai em relação ao que estava sendo produzido na literatura angolana. A fatura da literatura angolana, além de não ser pródiga em vozes femininas, pautava-se pela exaltação à resistência, à revolução e à luta.

Segundo a professora Carmen Lucia Tindó Secco,

Desde o primeiro livro, Ritos de passagem, o eu-lírico assume a rebeldia do grito e denuncia práticas autoritárias oriundas tanto dos valores morais lusitanos herdados, como dos preceitos ditados pela tradição angolana. Em relação a esta, por exemplo, critica o alambamento, que prescrevia a troca das noivas por bois ou cereais.[1]

A denúncia se explicita no poema Rapariga, no qual o eu lírico se levanta e resiste contra a tradição que cerceia a liberdade das jovens solteiras “destinadas” ao casamento. A primeira estrofe já revela a condição do alambamento e da obrigação das moças apresentarem uma postura ereta com o uso forçado da tábua Eylekessa colocada em suas costas. Esta tradição está diretamente ligada ao padrão de beleza buscada por esta etnia.

O trabalho de ruminação da memória pulsa na poesia de Paula Tavares.

Rapariga

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram…
                          Sou do clã do boi —
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
                          a falta de limite…
Da mistura do boi e da árvore
                          a efervescência
                          o desejo
                          a intranquilidade
                          a proximidade
                                                 do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
                          concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

O eu lírico confessional assume as dores de todas as meninas oferecidas em casamento a homens que elas não conhecem. Elas crescem junto com o boi, quiçá brincam com ele desejando que não cresça, pois seu crescimento escancara o fim da infância e o casamento indesejado que se aproxima.

Nos rituais típicos do sul angolano, além da tábua de correção postural que anuncia estar a moça cedida ao casamento, as pulseiras surgem como símbolo da quantidade de animais que corresponderão à moça. A rapariga é filha de Tembo e filha de Huco, o que representa ser filha do povo, e oferecerá seu corpo e sua juventude em troca da “vaca sagrada” ao lhe ser concedido o “privilégio” de ser a primeira esposa de um homem.

Ilustração: Ana Paula Tavares por Oliver Quinto

Questões formais
Do ponto de vista formal, nota-se no poema (e em vários outros de sua produção) uma conjugação entre a tradição (temática, oralidade, o uso dos provérbios) e a modernidade (na disposição dos versos na página, a elaboração sintética, e o uso habilidoso dos enjambements — corte dos versos que reconfiguram a sintaxe e amplificam as possibilidades de significação).

Podemos dizer também que a poesia angolana, em geral, foi nutrida pelo diálogo entre o que se denominou de “oratura africana”,[2] a herança deixada pelos portugueses e o confronto com as questões históricas e sociais de Angola.

No caso de Paula Tavares, observa-se também a assimilação de procedimentos que são características da melhor poesia moderna. O que apontou, por exemplo, Ezra Pound — uma referência incontornável e mentor de muitos poetas modernos e de vanguarda — ao dizer que a poesia “é a mais condensada forma de expressão verbal”, e que a condensação, ou a síntese, está na própria essência do que seria a poesia e o fazer poético (a poiésis).

Imersão
Vejamos, como exemplo, o poema sem título do livro Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001.

CAOS
CACTUS
CACOS
mãos feridas d’espinhos
pousadas pássaros
no meu rosto.[3]

Os três primeiros versos do poema, grafados em caixa alta, gritam e sintetizam em cada verso/palavra a condição vivida pelo eu lírico, tanto física como existencial e socialmente.

Em meio ao caos social e aos sofrimentos gerados pela guerra, os seres se erguem como cactus, sobrevivendo na aridez dos afetos e revestindo-se de espinhos que, ao mesmo tempo que são armas de defesa, impossibilitam todo contato afetivo.

Difícil não referirmos o poema O cacto, de Manuel Bandeira, quando ele diz: “Era belo, áspero, intratável”. Cacto que “lembrava os gestos desesperados da estatuária”. Os cactos quase sempre nos lembram um gestual humano, caricato, congelado e desesperado, além de sua beleza intratável, como se fossem espantalhos da dor, ou da morte.

A opção por grafar a palavra em sua raiz latina também não nos parece casual. Reverbera o ‘us’ final da pronúncia das palavras ‘caos’ e ‘cacos’. Além disso, a sonoridade expressiva dos versos se acentua com as sílabas oclusiva velar (/k/) e dental (/t/). O som fica a serviço do sentido, em uma hesitação prolongada, como a definição clássica dada por Paul Valéry sobre o que seria poesia.

A palavra “cactus” é a síntese do poema, a imagem poderosa e unificadora do poema. Nela estão embutidas, como as “palavras-valise” de James Joyce, o “caos” e os “cacos”.

A desordem, a luta pela sobrevivência, os espinhos e o dilaceramento dos seres e do tempo desaguam no quarto verso, as mãos feridas d’espinhos. As mãos, símbolos do trabalho e também da manifestação do afeto, apesar de feridas e espinhosas, se oferecem como pássaros no quinto e no sexto verso a acarinhar o rosto do sujeito poético.

Interessante notar a síntese e a multiplicidade sutil de sentido, tão características do engenho da poesia, que o verso pousadas pássaros e como ele foi recortado possibilita.

Ao omitir na frase/verso o advérbio com valor conectivo — pousadas (como) pássaros — o sentido dos três versos conclusivos se expandem. Podem ser lidos como “mãos feridas d’espinhos (foram/estão) pousadas” e, por conta disso, ou mesmo assim, ou independente disso, “há pássaros no meu rosto” (no sentido de que a liberdade do voo, ou a alegria, já se expressam no semblante/ser do eu lírico).

Também podem ser lidos como “as mãos feridas pelos espinhos da vida e do tempo social estão pousadas/pousam com a leveza dos pássaros no meu rosto”, uma expressão profunda de ternura e carinho, apesar de tudo.

Foto: Ozias Filho

Ao se utilizar das formas fixas da tradição oral, entre os quais os provérbios, Paula Tavares reatualiza-os em profícuo diálogo com a memória, o presente e a tradição.

Símbolos e memória
O trabalho de ruminação da memória pulsa na poesia de Paula Tavares. A imagem do “boi” é a representação dessa ruminação e é recorrente em vários de seus livros.

Como se deu no poema Rapariga, de seu primeiro livro, também no Dizes-me coisas amargas como os frutos o eu lírico invoca a imagem do boi a partir da epígrafe inicial do conjunto: 

Boi, boi,
Boi verdadeiro,
guia minha voz
entre o som e o silêncio

É importante lembrar que a obra mencionada, de 2001, foi gestada ainda sob o impacto da guerra civil que se estendeu na Angola pós-independência até 2002. As tensões, o caos, as angústias, as mortes, a ausência do amado, a dor, reverberam em sua memória afetiva em diálogo constante com sua memória ancestral.

Como diz Carmen Lucia Tindó Secco,

Boi, “boitempo”, “boi da paciência”, metáfora das ruminações da memória. Alegórica imagem de uma história de silêncios, de sons que se perderam através de séculos, pelos planaltos da Huíla e pela areia do deserto vizinho. Ligado também aos ritos da lavoura sagrada, da fecundação da terra, o boi é um dos animais sacrificiais oferecidos aos deuses do panteão religioso dos povos pastores, sendo considerado intercessor entre os vivos e os antepassados. O culto a esses é uma prática comum aos povos bantu de Angola, os quais sempre acreditaram no poder advindo dos mortos, em termos de aconselhamento e de circulação da força vital.[4]

O sujeito poético pede a paciência necessária, a força e capacidade para forjar sua voz em meio à necessidade de erguê-la e a sabedoria para silenciar em uma Angola arrasada pela miséria e pelo sangue derramado.

Além das imagens e metáforas apontadas, inúmeras outras perpassam a obra de Paula Tavares como símbolos que se repetem: as dunas, lago, barro, teias, terra, frutas, mitos angolanos, etc. Além disso, seus poemas e livros iniciam-se com provérbios (Dizes-me coisas amargas como os frutos, título de um de seus livros, é um provérbio kwanyama), ditos populares, citações bíblicas, num diálogo polissêmico e intertextual constante.

Ao se utilizar das formas fixas da tradição oral, entre os quais os provérbios, Paula Tavares reatualiza-os em profícuo diálogo com a memória, o presente e a tradição.

Vejamos alguns exemplos recolhidos em vários de seus livros:

Chorar não chorar
A planície fica na mesma
PROVÉRBIO CABINDA
[Ritos de passagem, 1985]

… lá onde és amado constrói a tua casa
PROVÉRBIO KWANYAMA
[O lago da lua, 1999]

Dizes-me coisas tão amargas
como os frutos…
KWANYAMA
[Dizes-me coisas amargas como os frutos, 2001]

Um cesto faz-se de muitos fios
DITO UMBUNDU

O facto de dormirmos na mesma esteira
Não significa que temos os mesmos sonhos
PROVÉRBIO BURKINABE
[Como veias finas na terra, 2010]

Foto: Ozias Filho

A articulação que Paula Tavares faz dos provérbios em seus livros me parece mais orgânica e ultrapassa o sentido de meros indicadores culturais da obra.

Sentidos ricos
Paula Tavares reencena, com a utilização dos provérbios e ditos, as várias vozes e sentidos que os perpassam num jogo intersemiótico, a meu ver, muito mais rico do que as citações e trechos utilizados como epígrafes em vários contextos literários da tradição ocidental.

A articulação que Paula Tavares faz dos provérbios em seus livros me parece mais orgânica e ultrapassa o sentido de meros indicadores culturais da obra, ou abertura para um novo texto. É como se ela ruminasse o tempo e a memória reconfigurando e reordenando o caos do momento presente e, ao anotar o provérbio (indo além de sua oralidade), cria uma alquimia própria.

O poeta e professor angolano Abreu Paxe estudou os provérbios em seu doutoramento e nos ajuda a compreender a complexidade que está em jogo nos provérbios. Ele anota:

[…] o provérbio constrói estruturas relacionais que nos levam a compreendê-lo deste modo: uma série da cultura em que as fronteiras entre o que é escrito e o que é visualidade são elididas. Nisso emerge o jogo entre o que se grafa em papel, o que se grava na madeira ou o que se pinta na pedra. Vemos aí o que se traz e o que se apresenta à busca de um entendimento dos processos de “recriação” nos tráfegos do provérbio que nos faz deslocar, não apenas para entender as poéticas deste, as fronteiras que apagam as diferenças entre o escrito e o visual, ou o oral, mas para perceber modos de saberes da criação popular, ligando o conhecimento do narrativo aos aspectos da apreensão concentrada de determinados universos da comunicação. Aliás, estão em causa fenômenos da natureza e fenômenos culturais, como também sua transmissão.[5]

Vale citar mais uma vez Carmen Lucia Tindó Secco, agora em seu posfácio à poesia reunida de Paula Tavares:

Dominando o fogo sagrado de conhecimentos universais e a chama de oferendas das tradições locais, o sujeito lírico dos poemas de Paula ora se assume como histor, tecendo fios de estórias e da História, ora se apresenta como aedo, tramando novelos de lã e labirintos de seda, metáforas da teia textual em que se converte a poesia da autora, uma poesia carregada de epos, na medida em que traz, por entre os veios intimistas dos desejos e sentidos, uma trama coletiva de recitações procedentes tanto de tradições orais da sua terra e de seus livros anteriores, como de sua bagagem artístico-cultural e de suas leituras de outros poetas não só africanos, mas de outras partes do mundo.

O que a poesia de Paula Tavares forja ao se utilizar desses recursos da tradição oral é a possibilidade de organização de seu mundovisão (se me permitem o neologismo), como faziam os antigos griots em suas narrativas, e ao mesmo tempo a fusão dos signos da modernidade e da tradição tornando-os, com a fatura de seus textos, a chama potente de uma poesia que ultrapassa o presente histórico e as referências conectadas a ele.

Para concluir o texto que já se estende, devemos registrar que as motivações poéticas de Paula Tavares se ampliaram desde seu primeiro livro, mas sua poiésis já se revelava complexa, atual, e com uma força estética surpreendente em sua trama coletiva de vozes.

 

Nota

[1] SECCO, Carmen Lucia Tindó. A magia das letras africanas: Angola e Moçambique. São Paulo: Kapulana, 2021.

[2] Termo cunhado por volta de 1970 pelo linguista ugandense Pio Zirimu como rejeição ao que o Ocidente chama de literatura ou narrativa oral. Sua ideia era apontar para um sistema oral estético que não precisasse validar-se a partir da literatura. Esse tema merece estudo e pesquisa mais extensiva.

[3] TAVARES, Paula. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. p. 131.

[4] SECCO, Carmen Lucia Tindó. A magia das letras africanas: Angola e Moçambique. São Paulo: Kapulana, 2021. p. 211-212.

[5] PAXE, Abreu Castelo Vieira dos. A migração fractal do provérbio: práticas, sujeitos e narrativas entrelaçadas. [Tese] Doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC, 2016.

 

Edson Cruz

E poeta e editor do site Musa Rara.

Rascunho