Noite de turbulências

Raimundo Carrero extrapola as características do romance e está sempre em busca de novas formas narrativas
Carrero: fuga da narrativa linear
01/01/2004

Ao redor do escorpião… Uma Tarântula — Orquestração para dançar e ouvir do pernambucano Raimundo Carrero não é definitivamente um livro para leitores ávidos por fatos, situações, grandes painéis históricos ou sociais. Ao contrário. O pouco que há de enredo em suas 164 páginas (há mais 22 com um ensaio sobre o autor) é o desejo de uma mulher, Alice, em matar o marido Leonardo após uma noite de sexo e gozo. O livro se passa nessa única e longa noite e toda a sua exígua história se resume nesse entrecho que nos faz ler não apenas como uma narrativa, mas também como uma possibilidade de texto que se esvai além-romance e até mesmo além-narrativa. Lido como romance, o livro certamente frustrará expectativas por estar preso a este pequeno “enredo”. Na verdade, ele se propõe a mais: atingir uma certa “sinfonia musical” (daí o subtítulo), orquestrada para mostrar dois corpos que dançaram e se amaram e agora se preparam para destruir um ao outro.

Tudo se resume a essa noite e a essa lenta agonia de Alice estendida num sofá com um revólver na mão espreitando Leonardo dormir. Mais tarde, ele percebe e vai fingir dormir e, assim, ambos acabam adormecendo. A “história” está paralisada nesse plot porque, na verdade, o autor deseja mesmo é estabelecer um novo rearranjo na escritura, a fim de narrar essa mesma “história” de diversas formas, o que torna difícil, inclusive, aprisionar o seu livro em algum gênero literário: Romance? Poesia? Música?

Se por um lado essa forma e as suas intenções são originais, o que realmente dá ao seu livro um caráter de “inovação lingüística”, por outro, em diversos momentos ela cansa o leitor. As inovações de Carrero tratam-se de uma pontuação que assume papel de personagem. As reticências pertencem a Leonardo, enquanto interrogações e vírgulas são de Alice. Os dois pontos integram o casal. Além disso, temos uma grande profusão de adjetivos e advérbios colocados em meio a dezenas de travessões que se sucedem em diversos parágrafos. Grande parte do livro é gasta narrando Alice apontando o revólver para o marido. Esse seu ato é revolvido em inúmeros adjetivos que oscilam de significado o tempo todo. Com isso, as sensações das personagens nunca chegam a um termo. Neste livro, nada é definido, nada é enfatizado porque tudo se resume a esse volteio, a esse permanente ir e vir sem fim.

Assim, as inovações não estão na disposição dos parágrafos nem em criar armadilhas (surpresas) para o leitor, mas num modelo narrativo que gira sempre em torno dessa mesma “história”, daí a opção pelo uso abundante, até excessivo, do travessão: “— Alice gargalhando no quarto sem parar — bela e reles — e apontando o revólver para o marido que dorme — ruidosa e reles — Alice gargalhando no quarto sem parar — ingênua e bela — o marido dormindo — aflita e leviana — Alice gargalhando — furna do vento — no quarto sem parar — rosto abismado — e apontando o revólver para Leonardo que dorme — choque de sombras — o marido dormindo —”. (p. 25).

No final de cada capítulo, o autor “explica” melhor sua história (o que não quer dizer que amplie as situações), ao retomar um texto, digamos, mais tradicional, ou seja, mais fluente. Nos últimos parágrafos os (tantos) travessões são esquecidos e a história é recontada: “Ela sabe, Alice na sonolência da ansiedade, na espera de assassinato, na luta pelo domínio do sono, Alice sabe, para dominar a ansiedade, para dominar a espera, para dominar o sono, esta mulher sabe, que na sonolência da ansiedade deve acarinhar a arma, que na espera do assassinato precisa alimentar o revólver, que na luta pelo domínio do sono deve amar a morte, esta mulher sabe, que o marido dorme na espera do assassinato, na ansiedade de acarinhar a arma, na luta para dominar o sono, Alice sabe, no domínio do sono, na espera do assassinato, na sonolência, ela sabe”. (p. 41).

Assim, o projeto de Raimundo Carrero, autor de Somos pedras que se consomem (1996), Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, e ganhador de um Jabuti por As sombrias ruínas da alma (2000), pode soar bem-sucedido, porque o seu livro é inegavelmente bem-escrito e explora ao máximo as possibilidades e o esgarçamento de uma língua, mas também pode parecer não resolvido diante do tour de force que exige do seu leitor, ao provocar incômodo com um texto que não avança.

O livro foi construído a partir de um “quebra-cabeça” que não se resolve nunca, antes se dissolve em puro exercício lingüístico. São repetições e reverberações que por vezes cansam a leitura, isso, é bom lembrar, num tempo de narrativas e experimentações lingüísticas absolutamente desgastadas. Este é, aliás, o maior desafio que se coloca Carrero quando assistimos ao desgaste de diversas formas de narrar que pareciam originais, mas que fracassaram diante de um enfastiado leitor. Com suas “experiências”, Carrero deve ser comparado aos concretistas, aos experimentalistas, aos formalistas etc. Ele pertence à geração de Sérgio Sant’Anna, que já afirmou que a sua geração (João Gilberto Noll, João Silvério Trevisan) não alcançou o devido sucesso justamente a essa quebra da narrativa tradicional, praticada pela anterior. Mais que os alentados problemas de distribuição, divulgação e preço, seria a linguagem também um obstáculo para se alcançar um público-leitor mais amplo: “O público quer entretenimento e minha geração não faz isso. O público quer histórias, e os nossos livros são mais difíceis, exige do leitor um mergulho maior no seu próprio ser”.

A orelha de Ao redor do escorpião… Uma tarântula afirma que Carrero estabelece uma revolução literária e o compara (de forma bastante exagerada) à radicalidade estilística de um Guimarães Rosa e um Autran Dourado, em seu estupendo O risco do bordado. No final do livro, há um ensaio do professor de literatura brasileira Raymond Westburn, da Diamond Universidade, que conheceu Carrero no Internacional Writing Program da Universidade de Iowa. O professor, claro, situa o livro, enaltece como positivas suas inovações e elenca as influências do autor, que iriam de Osman Lins a Dostoievski. O texto por vezes beira o didatismo, mas também a prolixidade acadêmica. Desenvolve diversas idéias e, no geral, parece deslocado do livro por sua grande extensão.

Mas voltando ao livro, enfrentada a resistência inicial, vemos que o autor se propõe ainda em capturar esse instante na vida de um casal, repleto de associações de ódio, morte, dor e prazer. É assim que assistimos a essa verdadeira luta corporal (diria Ferreira Gullar), de resistência e ódio mútuos que se transmutam em linguagem, de um casal em crise após o sexo e o gozo. O livro é também essa metáfora para toda ordem de tormentos que perturbam o cotidiano e as relações de um casal, podendo ser lido ainda como o relato de um sonho, a vaga zona onírica do sono e do sonho que atormenta um casal. É a tarântula que serve de título ao livro e que invade sorrateira a “história”.

Por que Alice deseja matar Leonardo?, pode querer saber um atento leitor. O livro não responde. Carrero não pretende iluminar sua “história” com enredos e situações que se sucedem, mas talvez o mais interessante de seu livro seja justamente essa tentativa em contar em tantas páginas a mesmíssima situação (uma mulher a espera que um homem durma para assassiná-lo). E se digo talvez é porque a alguns o seu texto pode soar complicado e chato, enquanto a outros realmente inovador. De qualquer forma, Carrero deseja mesmo é exercitar ao máximo uma forma de narrar (algo distante das narrativas tradicionais), viver um pouco as “aventuras” da linguagem: É possível encontrar novas formas para se dizer eu te amo? Eu te odeio? O autor Raimundo Carrero deve crer que sim e nisso colocou boa parte do seu trabalho.

Ao redor do escorpião… uma tarântula?
Raimundo Carrero
Iluminuras
186 págs.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho