No vôo do Mandarim

"A voz do outro", de Carlos Machado, deve ser lido como se fosse uma caixa de ressonâncias ou uma cabeça atormentada por vozes de outros
Carlos Machado: tributo aos mestres, mas sem abrir mão de um destino próprio
01/08/2004

O novo escritor chega, não pede licença, circula discretamente pela sala onde acontece uma reunião de escritores consagrados, deixa seu livro em cima da mesa de centro e desaparece; e quando a festa dos mestres termina — depois de algumas trocas de tapas, grosserias, afrontas intelectuais cheias de afetações, descasos de pura inveja e outras indisposições (tudo isso também faz parte da literatura) —, nós passamos para fazer a faxina e então encontramos o tal livro, que repousa ao lado dos cinzeiros abarrotados, dos copos vazios e, visto a preguiça que nos acomete só de pensar em limpar tanta sujeira deixada pelos mestres, nós, desanimados e absortos, pegamos o tal livro e, quando percebemos, a leitura foi concluída numa só tacada. Ao fechar o livro, e só depois disso, é que a gente lê o nome do autor e descobre que é obra de um estreante. A surpresa maior se dá quando concluímos que o novo autor, logo de cara, preenche os requisitos básicos para ser tornar um daqueles escritores de quem a gente já espera por um próximo trabalho. Ou seja, ele fabula, usa de inventividade, põe lenha no imaginário, tem ritmo, ironia, lírica bem dosada e faz um questionamento sobre a existência de modo alegórico, manuseando criativamente símbolos e parábolas.

Ficha do penetra: Carlos Machado, 27 anos, curitibano, professor de literatura brasileira, estréia com A voz do outro, editado pela 7 Letras em projeto gráfico simples, mas de bom gosto.

São vinte contos curtos em que, pela fluência demonstrada, o escritor parece ter escrito, cada um, numa só puxada de fôlego; no entanto, isso não denota uma escrita automatizada, ao contrário, as narrativas porejam elaboração prévia. Curitiba aparece em vários contos como o espaço principal por onde circulam seres desajustados e personagens leitores a confundir a vida e a arte, espaço quase sempre de pesadelo e sonho. Porém, nada dessa Curitiba remete àquela provinciana, trevisanesca; é uma Curitiba que poderia ser qualquer outra metrópole moderna, onde os anônimos, até então perdidos na multidão (referências ao homem das multidões de Poe e ao flâneur de Baudelaire), deflagram situações e comportamentos dos mais insanos. Obsessão, dissimulação, sadismo e necrofilia surgem como traços marcantes nos contos O homem com um longo bigode (que abre o livro), Sopro e A voz do outro. Mais adiante esses traços recrudescem junto à esquizofrenia em ‘Kultur’ e em A voz do mesmo, em que novamente o cadáver (a voz calada do outro) proporciona o gozo final. Mas não é só do hediondo, do brutal, que se alimenta A voz do outro. O lírico reverbera em Ramos de rosas, metáfora sobre a Palavra e a comunicabilidade (ou ausência dela) entre os homens; é um dos pontos altos do livro justamente por inaugurar uma linha temática de caráter filosófico, que ressurge ainda em A colina (em que os personagens partem em busca de uma cidade “do outro lado”, “além dos muros”, parafraseando As cidades invisíveis, de Italo Calvino) e em Absurda angústia, que retoma a metáfora da travessia (agora parafraseando o Beckett de Esperando Godot) numa recusa a explicar a existência através do racionalismo. Aqui, Carlos Machado relativiza o cogito, desconstrói de vez a realidade para erigi-la novamente em alegorias e metáforas das mais expressivas e cativantes.

Este A voz…. deve ser lido (e ouvido) como se fosse uma caixa de ressonâncias ou mesmo uma cabeça atormentada por vozes de outros: Poe, Noll, Florbela Espanca, Kafka (A metamorfose parafraseada em Lepidóptera) e Dalton Trevisan. E isso, que bem poderia tornar a obra enfadonha e pernóstica (caso de tantos escritores que vivem por aí a querer elevar o nível de suas obras promovendo diálogos e encontros com outros autores bem mais talentosos do que eles), no entanto, é o que dá o cinetismo, o movimento que nos impulsiona a seguir com a leitura. Em busca de um vampiro escondido traz um Dalton que literalmente bate asas no final para desaparecer, “A mulher abre uma das janelas da boate. O animal dá algumas voltas por ela antes de desaparecer pela fresta: o dia está nascendo”. Entretanto, esse desfecho poderia ter fugido ao previsível, evitando a figura do morcego como metáfora das famosas saídas pela tangente de Dalton Trevisan. É que, se comparado aos bons desfechos dos outros contos, esse fica a dever.

Há ainda lugar para as mazelas sociais. Mas se engana quem pensa que o autor iria narrá-las deixando-se contaminar totalmente pela crueza do neonaturalismo, esse celerado que vem fuzilando e esfaqueando na jugular a dádiva da fabulação na ficção brasileira. Em Carícias, Aninha tem sua família assassinada dentro de um barraco da Vila Pinto, uma das mais notórias favelas da capital ecológica; no entanto, o autor lança mão do onírico e do poético para narrar um caso hediondo, o que intensifica o tom dramático e psicológico do texto, matizando-o de outras cores e possibilidades para a abordagem dos temas sociais na literatura atual. Há ainda uma forte crítica às narrativas de violência urbana no último conto, Vivas lembranças mortas, que traz a história de um professor de sociologia, reconhecido e bem integrado à vida social, “adorado por todos e todas”, que num dia de fúria, “não esperamos esse tipo de atitude de ninguém, mas acontece”, acaba por assassinar o amigo, que é o próprio narrador. O professor, ao se mudar de sua chácara para a metrópole, não se adapta ao ritmo urbano e começa a mudar de comportamento, essa transformação culmina num crime brutal, com o narrador a detalhar o próprio assassinato em todos os seus requintes de crueldade, “O golpe derradeiro foi quando enfiou a bengala no espaço que havia aberto na minha cabeça, onde até dava para ver o cérebro”, ou ainda, “…começou a me espancar, cada vez com mais força, com a bengala e com o pé, até tirar um pedaço do meu couro cabeludo…”. Pouco depois de ter jogado o leitor nesse ambiente de atrocidade, o narrador encerra, com ironia: “Bem, agora você pode virar-se do lado que melhor lhe convir e dormir. Perdoe-me a intromissão e a falta de tato”.

Enfim, com esse livro de estréia, Carlos Machado deixa seu tributo aos mestres, mas não abre mão de um destino próprio. E quando o assunto é literatura feita em Curitiba, sobre a qual muitos insistem em dizer que o vampiro Dalton lança uma sombra inexorável e inexaurível, é possível dizer também que com este A voz do outro, Carlos Machado assesta seu holofote contra essa temida sombra e desse modo vai abrindo passagem para uma outra Curitiba, estranha e densamente habitada por seres de alta periculosidade criativa como Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier, Jamil Snege, Wilson Bueno e Luci Collin. Seres esses, também, sempre dispostos a fazer o lado monocórdico de Curitiba desaparecer do mapa, como no conto Sopro: “Subi em cima do Mandarim com muito cuidado para não machucar suas pequenas asas. Ele voou. Ficamos escondidos entre as nuvens. Lá de cima acionei o botão e vi: toda a cidade desapareceu”.

A voz do outro
Carlos Machado
7 Letras
94 págs.
Paulo Sandrini

É autor de Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum e mestrando em Estudos literários (UFPR).

Rascunho