Não deixa de ser curioso que, com menos de 30 anos de idade, o escritor Santiago Nazarian apareça com seu quarto romance dando vez e voz a um jacaré irônico e reflexivo — assim é o protagonista de seu mais novo livro, Mastigando humanos, ousado e de certa forma bastante distinto de seus anteriores no conteúdo e na linguagem. Aliás, este “romance” destoa não apenas da sua literatura, mas de grande parte da ficção contemporânea feita pelos seus pares, o que já é um mérito do autor.
Eis este cáustico jacaré preocupado com a sua espécie e também com algum apreço pela dos humanos, mas nem por isso menos interessado em comê-los. A sua gula percorre todo o livro num sentido darwiniano de salvação (e seleção pouco natural) da espécie e das espécimes, no caso, claro, a dele próprio. Com suas tiradas inteligentes e humor ferino, conclui-se que antes ficar embaixo que no topo da pirâmide social, parece nos dizer esse réptil que vive literalmente no limbo à cata de algum naco de carne suculenta e detritos em geral. A despeito de morar em esgotos, seu “discurso” é o de alguém que paira sobre tudo e todos, o que lhe deixa um pouco cínico, muito afeito às coisas do espírito, por demais prático e sempre contundente em suas tantas opiniões.
Às vezes fica a impressão que Nazarian recorre a um animal do subterrâneo para pensar males e manias da nossa sociedade. Mas essa “intenção” do autor (que seria óbvia demais) pode ser apenas aparente porque há uma grande “brincadeira” em torno da construção desse personagem, num livro devidamente embalado pelo subtítulo de “romance psicodélico”, aviso para os incautos que pensam em incluí-lo na seção dos livros infanto-juvenis. Há diversas referências aos universos cult e pop e personas do mundo cultural (Doris Day, Alfred Hitchcock, William Burroughs, Kafka, Cher, Voltaire, etc.), mas, a despeito de o livro ter este “formato” jovem, elas podem passar despercebidas ou serem incompreensíveis para a maioria dos leitores jovens.
Mesmo assim, essa “intenção” do autor em criar personagens bichos será vista por alguns como tentativa de “falar através deles”, de fazer uma longa metáfora digressiva, por isso é tentador perguntar se Mastigando humanos faz paródia a Fazenda modelo — Novela pecuária, o emblemático livro de Chico Buarque de Holanda, repleto de alegorias e de grotesco, ou ainda A revolução dos bichos, de George Orwell, fábula que narra bichos tomando o poder em uma fazenda, dura crítica do escritor britânico sobre a traição de Josef Stálin à causa bolchevista. Sim e não. Há em Mastigando humanos diversas provocações ao mundo da gastronomia, da literatura e política, nossos decantados prazeres orais e mundanos (que o autor capta com sagacidade), mas lá pelas tantas a impressão é termos uma boa história sendo narrada. Esquecemos essas entrelinhas e entramos nas desventuras de seus personagens que é, afinal, o que importa.
Falamos na distinção desse livro em relação aos anteriores, mas vale destacar que a perspectiva do narrador coincide e reitera alguns elementos de seus livros já lançados. Existem sim algumas afinidades com eles — continua a percepção do mundo cão, mas neste caso com “a realidade” construída por bichos tentando conviver num saudável salve-se quem puder.
Assim sendo, já no primeiro romance de Nazarian, Olívio (2003, Prêmio Conrad Wassel), história de um garoto narrada por várias “vozes”, quanto A morte sem nome (2004), uma junkie-girl solitária, vagando pelas ruas de uma grande cidade, perdida e desamparada, adejando uma asa eternamente quebrada, e, finalmente, Feriado de mim mesmo (2005), um quase thriller em que não se sabe se é o relato de um sonho, pesadelo ou realidade, resistem a crítica social elaborada por um narrador onisciente irônico, às vezes cínico, e, em geral, desencantado com o mundo a sua volta. Em todos, dificuldades de relacionamentos, desencontros humanos, a solidão dilacerante dos grandes centros urbanos, certa desilusão no contato com o outro, sensações que vão se refletir numa indiferença com o futuro e num ceticismo que endurece e sufoca os sujeitos. Elementos que resultam num perverso automatismo e na constatação de falsa liberdade, a toda hora repisada por personagens que não se encaixam nas engrenagens sociais. Uma sensação de tédio e desamparo perdura nesses livros, com personagens beirando a histeria, sufocados por espaços sujos, caóticos e que representam o caos contemporâneo com sua urbis movida a sexo e a indiferença humana nas grandes metrópoles brasileiras. Mas, como é de se esperar, em Mastigando humanos saem de cena os humanos e suas turbulentas e intrincadas relações e entra esse jacaré no mínimo risível.
Com todas essas experiências (desde 2003 tem publicado um romance por ano), Nazarian vem melhorando mais e mais, depurando sua linguagem e temas. E o que poderia parecer menos ousado ocorre justamente o contrário — em Mastigando humanos, sobretudo, pelo aparente absurdo e inverossimilhança de sua empreitada ao criar este jacaré. Isso sem falarmos em alguns de seus simpáticos companheiros de misérias e esgotos (muitos comidos por ele), como o sapo Vergueiro, o cachorro Brás, o tonel (?!) Santana, o esquilo Patriarca e um menino de rua, entre outros, batizados com os nomes dos bairros (e estações de metrô) da cidade de São Paulo.
Cremos que esse livro flagra o “amadurecimento” do autor, quando ele alcança seu melhor momento. Ele continua não dispensando o escatológico, o grotesco, o kitsch — sim, esses elementos estão em Mastigando humanos, mas ao concluirmos sua leitura a impressão é que Nazarian está manejando melhor esses elementos (encontrados desde seu primeiro livro), oferecendo uma estrutura mais enxuta por ter diante de si este jacaré filosófico e igualmente faminto. Convincente, entramos sem vacilar nas suas reflexões, nos seus sentimentos e no humor ferino desse parente distante dos dinossauros que nada perdoa: ‘“Eu acho que, no fundo, o que você quer é viver como seus irmãos, de papo para o ar, sob o sol, vertendo num rio qualquer, rodeado de garças’. Isso dizia Voltaire. Mas não. Eu não acho que era aquele tipo de ócio que eu queria. Ócio bucólico. Eu queria mais o ócio do caos urbano”. Ou ainda: “Os ratos corriam desordenados, tentando manter a ordem, mas sem uma direção específica a seguir. Num primeiro momento, foi uma avalanche de salgadinhos, balas de goma e refrigerantes descendo até nós. Era apetitoso, sim, eu também curto essa junkie food, mas isso não sustenta ninguém”. Faminto mas lúcido, sem perder a razão e a ternura, melancólico, assertivo, “realista” e único, é o que atesta este jacaré (pouco modesto) que emerge das páginas de Mastigando humanos.