No quartinho dos fundos

Ao resgatar memórias familiares, "Saia da frente do meu sol" é um potente diálogo entre o visual e o verbal
Felipe Charbel, autor de “Saia da frente do meu sol”
01/09/2023

Não circulava pela casa, não quando podia ser visto por alguém. Ele se levantava antes do sol, e só nessa hora morta do dia é que meu tio se dava o direito de escapar da sua toca. […]

Acho que meu tio dava tanto valor a essa hora de silêncio no comecinho do dia que, se alguém parasse na sua frente e fizesse sombra, ou então se perguntassem a ele se tinha algum pedido que queria fazer, se desejava alguma coisa — pode pedir o que quiser —, Ricardo nem se daria ao trabalho de abrir os olhos:

“Só quero que você saia da frente do meu sol, gente boa”.

Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel, é um livro composto por muitas camadas, inclusive valendo-se de fotografias e materiais extraliterários (recortes, anotações, documentos) para configurar seu universo híbrido. O foco da narrativa, de caráter autobiográfico, é o tio-avô de Charbel, Ricardo, figura que ocupou um lugar apartado em sua história familiar, uma espécie de agregado, literalmente morando no quartinho dos fundos da casa de parentes. Apesar de ser o centro da narrativa, a história do tio é contada por meio de uma série de lacunas que o narrador investiga e faz questão de mencionar, tornando o processo de composição do livro uma parte essencial de sua estrutura.

A presença das fotografias exerce um papel fundamental no jogo que a obra estabelece, pois permite que o leitor, através desses retratos, também vá construindo a figura do tio por sua conta, ainda que o narrador forneça explicações e interpretações para essas imagens. O tio Ricardo canta Nelson Gonçalves (A volta do boêmio) ao ver o sobrinho chegar de uma noitada e, para mim, também evoca personagens de Nelson Rodrigues. Penso que essa minha associação só foi possível por conta das fotografias. Ler sobre Ricardo é diferente de vê-lo retratado especialmente em sua juventude, com um ar meio zombeteiro, cigarrinho na mão e uma elegância de malandro (sobretudo na foto que encerra a obra).

A ambientação nos subúrbios cariocas também pode ter me levado a essa “sensação rodriguiana” e a menciono apenas para marcar uma especificidade do livro — o diálogo do visual com o verbal que se processa no ato da leitura e estabelece um tipo próprio de recepção. As fotografias atiçam nossa imaginação, pois geram narrativas fazendo com que pensemos no contexto daqueles retratos, também procurando as respostas que a família do narrador oculta ou prefere não encarar — “seu tio é uma pessoa complicada”. O uso de imagens como um recurso narrativo aparece na obra de alguns escritores, entre os quais destaco W. G. Sebald, puxando fios que dialogam com o texto. Saia da frente do meu sol se vale dessa estratégia.

Passado e presente
Um gatilho essencial para a escrita do livro é a caixa de fotografias encontrada pelo narrador no armário de sua avó. Como uma espécie de madeleine proustiana, a caixa funciona como uma revelação, colocando passado e presente em confronto. Ali surgem alguns dos retratos de Ricardo que o livro apresenta. Em determinada passagem, o narrador diz:

Para John Berger, “o verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível, por derivar de um jogo, não com a forma mas com o tempo”.

O jogo com tempo — o ir e vir entre passado e presente, seja através das fotografias e documentos antigos, seja através da busca do narrador por uma forma de abordar seu objeto ou ainda através da evocação de sua história familiar — é um ponto central da obra. Quando somos crianças ou jovens, temos impressões meio borradas de alguns parentes que, na vida adulta, se modificam a partir de experiências próprias que acabam por deslocar nosso olhar. O narrador faz esse movimento através de uma reflexão não apenas sobre o tio, mas também sobre si próprio, sua família, seu lugar no mundo e sua trajetória a partir do momento em que decide se concentrar na história do tio (“falando dele, é de mim que falo”).

A história de Ricardo, uma “vida minúscula”, para mencionar a associação feita com o livro de Pierre Michon, se torna “maiúscula” quando a encaramos com o devido distanciamento temporal e pensamos sobre os significados de ocupar “o quartinho dos fundos”. A “excentricidade” do tio Ricardo provoca um misto de fascínio e curiosidade tanto para o narrador que investiga como para o leitor que acompanha o processo. Ricardo é aquele que “não se enquadra” — “Meu tio desprezava as figuras de autoridade — desprezava qualquer um que insinuasse a ele que seria melhor levar a vida dessa ou daquela maneira”. As justificativas ou hipóteses para o comportamento do tio vão se revelando ao longo do livro, contrapondo aspectos históricos e culturais de um Brasil do passado e do presente.

Aspecto simbólico
O hábito de Ricardo de acordar cedinho para aproveitar os primeiros raios de sol e a própria presença do sol na narrativa (inclusive na liberdade que transparece nas fotos finais de praia) evocam seu aspecto simbólico de iluminar ou trazer à luz o que está escondido. Um aspecto fundamental da obra está na questão da homossexualidade (ou bissexualidade) de Ricardo. Seu lugar no quartinho dos fundos também se associa ao fato de esconder algo considerado “vergonhoso” aos olhos da família e da sociedade da época (a maioria das fotos é de meados do século 20). O “não dito” é deduzido pelo narrador através de comentários que ouviu ao longo da vida — “Seu tio era um homem de vícios”; “Tinha um ou outro desvio, mas não era má pessoa”; “Se amigou dos cantores da época”; “Até que não dava pinta”.

Há todo um universo que o narrador tenta desvendar sobre a sexualidade do tio, sobretudo a partir de interpretações das últimas fotografias. Ele descobre um saquinho de fotos dentro de outro saco de fotos na tal caixa amarela contendo apenas retratos de homens. Mais uma vez, o narrador reitera esse lugar do esconderijo:

Closet, armário, quartinho dos fundos: essa era a geografia reservada a quem, mais que ter um segredo, era um segredo. Acho que meu tio acabou se conformando com essa disposição do espaço físico: havia algo de monástico, certa resignação no modo como ele ocupava o seu cubículo. Vai ver ele achava que era assim que as coisas sempre tinham funcionado, era como o mundo girava, estava longe do ideal, mas era o que tinha para fazer hoje, fazer o quê?

“Ô Banguense, tive de aprender a jogar o jogo.

Nessa lógica do esconderijo, o “jogar o jogo” que, na boca de Ricardo, tem esse ar desprendido e brincalhão também esconde uma “reclusão imposta” a muitas pessoas que não puderam vivenciar sua sexualidade abertamente. O livro nos transporta para essa época em que o preconceito era grande e acabou por tolher sujeitos como Ricardo, relegando-os a uma vida às sombras, às margens e na velhice, a um quartinho dos fundos.

O narrador nos diz que não quis reconstruir a vida de Ricardo por não achar que isso é possível. No entanto, através dos fragmentos e retratos que temos é impossível não imaginar diversas histórias tendo Ricardo como protagonista, essa figura lacunar, jocosa e espirituosa que, pelo contexto da época em que viveu, não pôde se assumir por completo. Daí a relevância e encanto das fotografias finais nas quais, na praia e entre os seus, Ricardo aparece pleno, exibindo seu corpo e podendo ser quem era, à luz do sol.

Saia da frente do meu sol
Felipe Charbel
Autêntica
134 págs.
Felipe Charbel
é escritor, ensaísta e professor de Teoria da História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de Janelas irreais: um diário de releituras (2018) e Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini (2010).
Lívia Bueloni Gonçalves

É doutora em Teoria Literária pela USP, professora de literatura e tradutora. Autora do livro Em busca de Companhia: o universo da prosa final de Samuel Beckett (Humanitas/Fapesp, 2018)

Rascunho